20 novembro 2010

Capítulo XVI: O Feiticeiro da Água

-Sochin, passa-me essa mala. Temos de tirar o carro e a bagagem deste navio antes que volte a levantar âncora.
A jovem assentiu e ergueu, com algum esforço, uma mala azul-escura que estendeu na direcção do irmão.
Este segurou-a pela pega facilmente com uma única mão, colocando-a na bagageira do velho jipe descapotável, enquanto com a outra mão afastava o cabelo louro dos olhos com um ar preocupado.
Não reparou quando a rapariga, já no limite das suas forças, lhe tentou passar um enorme saco de ferramentas. Parte do saco caiu de encontro ao chão de madeira do porão, mas a área em que se incluía o pesado martelo encontrou nicho sobre os seus ténis gastos e mal apertados, que por sinal tinham um par de pés no seu interior.
Um grito lacinante cortou o silêncio há muito instalado entre os quatro últimos passageiros a desembarcar. Até esse momento, tudo o que se ouvira de forma perceptível haviam sido algumas frases soltas.
-Nii-chan! Estás bem?? - Guinchou Sochin, preocupada.
Makoto olhou de relance para Kuroi, tentando não parecer fraco, e assentiu.
-Isto já passa. Vamos desembarcar.
Kuroi disfarçou um suspiro, desviou o olhar para as tábuas do chão e arrastou os pés, lado a lado com Ken'ichi, pela prancha de desembarque.
O mais velho procurava o capitão para lhe agradecer ter disponibilizado o porão para levarem o carro, mas decidiu não o interromper ao vê-lo, debruçado sobre a balaustrada e fumando o seu cachimbo, dando ordens sem nexo aos marinheiros apenas para os manter ocupados.
-Ainda não me contaste sobre a tua conversa com o Makoto ontem de manhã. - Desabafou em voz baixa o rapaz de cabelo castanho, colocando os braços atrás da cabeça e fitando o vazio, afectando desinteresse.
O meio-irmão colocou a mão sobre o seu ombro.
-Nem tu sobre a tua conversa com a Sochin. Estamos quites.
O outro forçou um sorriso, avançou rapidamente e parou em frente do resto do grupo.
-Bem, chegámos a Hodes! A paragem aqui vai ser longa, por isso sugiro que aproveitem para apreciar a paisagem e relaxar!
-Kuroi-kun, fica-te pelos sermões. És uma ruína como quebra-gelo. - Comentou a rapariga, embaraçada.
O rapaz pigarreou.
-Obrigado pelo feedback positivo, Sochin.
-Bem posso apreciar a paisagem, vai ser o meu postal de despedida deste mundo.
O mais novo dos rapazes soava grave e sério, apesar de não ter ainda mudado a voz como seria normal na sua idade. Foi ignorado pelo amigo.
-Ken, deve haver uma estalagem aqui perto. Importas-te de a procurar e de irem reservando os quartos?
-Não há problema, - Respondeu o mais velho - mas não vens connosco?
-Estou cada vez mais debilitado, é melhor procurar ajuda médica ainda hoje. Junto-me a vocês mais tarde, OK?
Sem esperar resposta, virou as costas. Preparava-se para penetrar na rua principal da cidade quando sentiu que uma mão esguia mas firme lhe segurava o pulso.
-Não vais mesmo dar-lhe uma hipótese...? - Sussurrou-lhe Sochin, sem que os outros reparassem.
-Tem paciência. Tudo se resolverá a seu tempo, e estou certo de que será pelo melhor para todos.
Dito isto, avançou para a multidão até a rapariga o perder de vista.

***

-Já vejo a estalagem, é ali à frente! - Exclamou Ken'ichi, apontando para um edifício de madeira de dois andares.
-Bah... tanto me faz onde é. - Resmungou Makoto, de mãos enterradas nos bolsos, chutando uma pedra solta na calçada com olhar ausente.
A irmã, que ia um pouco mais à frente, voltou-se para o loiro com o olhar fixo nele.
-Não consegues parar de pensar nisso e tentar distrair-te? Olha só para este dia magnífico! - Exclamou.
-Para mim está igual a um dia de trovoada. Um dos últimos dias que vamos passar neste mundo.
-Makoto-kun... posso contar-te uma coisa?
O rapaz desviou a sua atenção para o mais velho.
-O quê...?
-Os dias de sol como hoje costumam deixar o meu irmão de mau humor, já estou habituado a isso. Mas não é algo assim que o faria tomar uma decisão precipitada. Tem confiança nele.
-O que é que vocês não me estão a contar? E para ficar de mau humor com um dia assim, o que raios é ele? Uma coruja?
-Não, um semi-deus! - Riu Ken'ichi, seguindo caminho.
O loiro estremeceu. Nunca pensara em Kuroi como mais do que um humano com uma força e sentidos fora do comum, mas sabia bem que ele era descendente de Tyfar.
-Mas ainda estou à espera da resposta à primeira pergunta! Hey, Sochin, Ken'ichi-san!
Não obteve resposta. Os outros dois já prosseguiam caminho, alguns metros à frente.
Com um suspiro correu a juntar-se a eles, sentindo ainda um nó no estômago.

***

Kuroi vagueava pelas ruas da cidade, nostálgico.
Todo aquele movimento típico das cidades dreffelianas recordava-lhe a sua infância em Shinai, amarga mas simples e inocente. Mas Dreffel mudara muito desde esse tempo. Agora que estava no continente, deparava-se com um mundo humanizado, modernizado, muito diferente do que se recordava, mas ainda com a mesma sensação de familiaridade.
Inspirou fundo, mas parou de repente quando uma dor indescritível lhe tomou conta dos pulmões. Estava na hora de deixar de lado o saudosismo e procurar ajuda rapidamente.
Avistou uma ruela mais movimentada e interpelou uma mulher de cabelo alaranjado e aspecto afável que parecia menos apressada.
-Desculpe... - Começou - Sabe dizer-me onde vive o médico da cidade?
Ela voltou-se com um sorriso acolhedor e ponderou por um segundo antes de responder.
-Não sei se pode ser considerado um médico, mas há alguém que te pode ajudar. Vive na última casa daquela rua. Mas se fosse a ti não ia ter com ele hoje... está de mau humor.
Kuroi estranhou este conselho e decidiu insistir.
-E amanhã...?
-Não é boa ideia, amanhã ele também vai estar de mau humor.
-Mas a senhora será por acaso... uma vidente?
-Não, querido! É que ele está sempre de mau humor...
-E como é que fazem quando ficam doentes?
-Aqui ninguém se atreve a ficar doente sabendo que o curandeiro local é ele.
-Bom... obrigado pela informação. - Respondeu Kuroi enquanto voltava as costas, perturbado.
-Não tens de quê! - Respondeu a mulher com um sorriso rasgado.
Afastou-se na direcção que lhe havia sido indicada, confuso. Que tipo de homem poderia ter um mau humor tão pronunciado que causasse medo numa cidade inteira?
À medida que se aproximava do fundo da rua, notou que os edifícios eram cada vez mais antigos e alguns estavam mesmo abandonados. Quando finalmente chegou à última casa, uma pequena construção de pedra grosseira com telhado coberto de colmo, não havia ninguém em seu redor. Era como estar numa cidade-fantasma dentro de uma metrópole.
Bateu à porta, que se abriu ligeiramente com um chiar de dobradiças.
-Está alguém em casa? - Perguntou em voz alta, enquanto avançava lentamente para o interior.
-Quem pergunta? - Respondeu do fundo de uma das divisões uma voz masculina, grave e forte, mas surpreendente e inesperadamente imatura. - Odeio ser incomodado.
-O meu nome é Seishin Kuroi. - Disse, procurando o sítio de onde a voz saía. - Venho de fora à procura de um médico e indicaram-me esta casa.
-Era o que me faltava, um estrangeiro. Aqueles estúpidos nunca param de me mandar pessoas, ainda há três meses tive que tratar de um tipo que perdeu um braço. Já era altura de arranjarem um médico e me deixarem em paz.
Finalmente, o outro revelou-se à porta de um quarto.
Era um rapaz não muito mais velho que Kuroi, de estatura média e que não aparentava ser muito mais forte que qualquer adolescente da sua idade. Tinha o cabelo azul muito escuro, quase preto, e os olhos de um tom lilás também azulado. Trazia vestida uma camisola ocre de linho grosseiro, com a gola alta e toda ela muito larga, e umas calças castanhas dobradas abaixo do joelho sobre umas botas pretas. O seu olhar era gélido e intimidatório, mas não se assemelhava em nada à figura assustadora que Kuroi tinha em mente.
-Não sou estrangeiro. - Corrigiu Kuroi. - Nasci em Shinai, a Leste daqui.
-Estou a ver... com esse apelido, presumo que sejas um mestiço. Já agora, o meu nome é Luke d'Evans.
-É um prazer conhecer-te. - Afectou o mais novo, tentando sorrir enquanto lhe estendia uma mão.
-Não posso dizer o mesmo. - Respondeu rispidamente o outro, indiferente. - Entra neste quarto e tira a camisola. Vou preparar-me para fazer um exame rápido.
Kuroi assentiu, indignado com a atitude do outro. Esperou que Luke regressasse sentado numa cama simples e dura, o que não demorou muito. Poucos minutos depois, este voltava com uma selha cheia de água e as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Pousou a selha no chão e fez-lhe sinal para que se deitasse.
-A ferida é interna na zona do abdómen, certo? - Perguntou.
-Sim! Como é que...
-Voz tremida e o reflexo inconsciente de apertar essa zona com os braços ao andar.
-Impressionante! Nunca vi ninguém com uma capacidade de leitura tão extraordinária! - Comentou Kuroi, abismado com a dedução do outro.
-Tens visto muito pouco. Mudando de assunto, alguma vez viste uma técnica de cura por água?
Kuroi abanou a cabeça negativamente.
-Boa, era o que me faltava. Um novato. - Desabafou Luke. - Basicamente, assim que eu começar não respires, não te mexas e não fales. Tenta manter o corpo descontraído. Vou passar alguma energia mágica através desta água para o teu corpo, primeiro para localizar o problema e uma segunda vez para o resolver.
-Energia mágica... és um feiticeiro?
-Uau, afinal ainda há quem saiba que existimos. - Ironizou o outro, agachando-se junto da selha. Com um movimento rápido das mãos, fez erguer da água uma esfera líquida e ligeiramente irregular, que pairava acima da palma da sua mão direita. - Vou começar, prepara-te.
Após proferir estas palavras, ergueu a esfera junto da cama ao nível dos seus olhos e lançou-a repentinamente contra o peito de Kuroi.
O rapaz teve a sensação de que iria ficar encharcado assim que a água o atingisse, mas em vez disso sentiu uma onda de energia gélida penetrar a sua pele e espalhar-se até às extremidades do seu corpo. Sentiu-se desconfortavelmente cheio, mas controlou-se para não se mover. Repentinamente, a energia começou a retrair-se como uma maré em direcção ao ponto de origem, e o corpo expeliu a água em forma de pequenas gotas que se voltaram a unir sob a mão do feiticeiro.
Ao vê-lo voltar a colocar a água na selha, Kuroi reparou que a sua expressão entediada se tornara numa expressão perturbada.
-Como é que... fizeste isto? - Perguntou o feiticeiro.
-Uma rixa. - Explicou o rapaz, sentando-se na cama. - Fui atingido com um soco e no dia seguinte, ao acordar, comecei a sentir dores que foram piorando.
-Seishin... - Começou Luke, fitando-o pela primeira vez nos olhos. - ...Isto não é uma hemorragia comum. O que eu encontrei com este exame foram vestígios de energia de Terra, poder mágico na sua forma mais pura. Consigo eliminar essa energia e reparar os danos, mas vai ser extremamente doloroso e nem eu posso dizer quantas sessões serão necessárias até que a cura seja total.
"Magia de Terra...", pensou Kuroi para consigo. "Como é possível que o Genji, o mais fraco de todos nós, já ter dominado o seu alinhamento elemental a este ponto? O que se passa aqui...?"
-Hey, mas estás a ouvir-me ou quê? - Gritou Luke, sacudindo-o por um ombro com uma expressão de indignação.
-Desculpa, estava a pensar numa coisa. O que disseste? - Balbuciou o rapaz de cabelo castanho, atrapalhado.
-Raio do rapaz... Estava a perguntar se queres fazer já a primeira fase. Vai tornar o processo de cura mais rápido, mas também é bastante debilitante pelas dores que causa.
Kuroi assentiu, determinado.
-Já cheguei até aqui, não é altura para recuar. Tenho amigos que contam comigo para os proteger, e não é nestas condições que o farei.
-Não esperava menos de um Sucessor. - Rematou o mais velho. - E sim, também me apercebi disso.
Kuroi sentiu um arrepio, encolheu os ombros e voltou a deitar-se. Em menos de meia hora, Luke d'Evans lera-o completamente. Não podia permitir que se espalhasse tão cedo que era um Sucessor de Tyfar, mas naquele momento o seu segredo e a segurança de todo o grupo estavam nas mãos daquele feiticeiro. Tinha de confiar nele.
-Vou começar. Podes respirar desta vez, mas não te movas seja qual for o grau de dor que sintas. Vou ter de controlar a água no teu corpo para libertar os pontos afectados pela energia, e é um processo muito delicado. Devo demorar cerca de uma hora, a julgar pela tua estrutura celular.
-Estou pronto.

***

-É muito estranho o Kuroi ainda não ter chegado. Acham que aconteceu algo?
Sochin fitou Ken'ichi, que se sentava encostado à cadeira com os braços cruzados no lado oposto da mesa.
-Conhece-lo melhor que nós. - Respondeu. - É o teu meio-irmão.
-Sim, tens razão... - Constatou o mais velho. - Da forma como o conheço, é bem possível que se tenha perdido. Não importa, há-de voltar.
-Mas vocês importam-se de mudar de assunto? Já não vos consigo ouvir falar nele. - Resmungou Makoto, que estava sentado entre ambos e debruçado sobre o tampo da mesa.
-Vais dizer que não estás preocupado? Está a demorar tanto tempo...
-Ele sabe tomar conta de si mesmo, ao contrário de mim. - Disse o rapaz rispidamente, levantando-se da cadeira. - Vou dar uma volta e apanhar ar fresco. Se não voltar até anoitecer, muito provavelmente tive alguma atitude imatura e meti-me em sarilhos, e vou precisar de uma ama-seca que me vá resgatar das garras de algum bando de criminosos.
-Nii-chan...
O loiro sorriu tristemente e enterrou as mãos nos bolsos.
-Estava a gozar. Só preciso de estar um pouco sozinho, pôr as ideias em ordem. Não se preocupem comigo.
Tanto a rapariga como o mais velho suspiraram de alívio.
-Até logo, então. - Disse Ken'ichi.
Sochin não proferiu uma palavra, fitando algum ponto no chão com melancolia. Quando Makoto saiu, voltou a erguer o olhar.
-Andam os dois às cabeçadas na parede. - Desabafou o mecânico. - Já começa a irritar.
-Ken'ichi-san, o que achas que o Kuroi-kun estará a pensar? Ele disse-me antes de nos separarmos que tudo se resolveria na altura certa, mas quanto mais tempo passa mais tensão existe entre eles... Davam-se tão bem, nem parecem os mesmos!
-Eu sei. O Kuroi está a agir de forma muito diferente, nem parece dele. Tenho a certeza que, no fundo, também está muito em baixo. Já o teu irmão parece que vai explodir.
A rapariga assentiu tristemente.
Durante alguns minutos, o silêncio tomou conta da pequena mesa de bar da estalagem.
De repente, no meio dos sons de fundo, ouviu-se um abrir e fechar da porta de entrada. Ninguém pareceu reparar em algo tão comum naquele lugar, mas os dois amigos voltaram-se de imediato.
Kuroi juntava-se a eles, pálido e ligeiramente trémulo.
-Yo. - Disse, sentando-se no chão junto a uma cadeira vazia.
-Não pareces muito melhor. - Disse o mais velho. - Não encontraste ninguém?
-Pelo contrário. Mas ainda não estou curado, vai demorar o seu tempo. O primeiro tratamento foi apenas... desagradável.
-Que tipo de médico existe num mundo como este? - Perguntou Sochin, já nem se dando ao trabalho de estranhar a aversão do rapaz a cadeiras.
-Um tipo estranho. - Disse Kuroi, fazendo depois uma pausa. - Vejo que o Makoto não se dignou a esperar que eu voltasse. Não o censuro, no lugar dele eu também não me falaria.
-Já decidiste alguma coisa em relação a esse problema? - Atirou o mais velho para o ar.
-Já sei precisamente o que fazer, e era sobre isso que queria falar convosco agora que ele não está aqui.
Os outros dois voltaram-se para o rapaz, assentindo.
-Primeiro que tudo, é imperativo que ele não saiba de nada nem antes nem depois. Decidi pô-lo à prova. Ken, lembras-te do Daisuke?
-Como poderia esquecer... mas que tem isso a ver com o nosso problema? - Respondeu o meio-irmão, sem compreender.
-Já passou muito tempo, mas recentemente tenho tido um pressentimento de que ele está a tentar dizer-me algo... Acho que ele quer que o use.
-Usar? Mas quem é esse Daisuke? - Interrompeu Sochin, confusa.
-Um... velho amigo. - Respondeu Kuroi, sorrindo. - Bem, vamos organizar-nos. Sochin, preciso que encontres o Makoto e o convenças a ir contigo à praça principal da cidade daqui a umas horas. Ken, preciso que venhas comigo procurar algumas coisas na cidade. Desculpa pedir-te isto, mas se encontrarmos alguém, não estou em condições de me defender sozinho. Também preciso de aproveitar e arranjar outra roupa, esta já não está em condições de ser usada por muito mais tempo.
-Mas importam-se de me explicar que plano é esse? Não estou a perceber nada! - Desabafou a rapariga.
-Já vais perceber. O que eu quero testar é... - Respondeu o rapaz, afastando dos olhos uma madeixa de cabelo castanho. - A capacidade do teu irmão para se defender efectivamente numa rixa contra um desconhecido. Isso... ou se tem a sabedoria suficiente para a evitar.