27 março 2009

Capítulo II: Amizade

O sol já quase se punha quando Kuroi achou que já estaria longe o suficiente. Encontrava-se agora numa pequena povoação onde ninguém parecia conhecê-lo, o que fazia com que se sentisse francamente aliviado. Enquanto procurava um lugar onde passar a noite, pensava no rumo que iria tomar daí em diante. Não conhecia bem o país e nem sequer tinha meios para viajar em busca das pessoas que mataram a sua mãe. Já cansado de andar, sentou-se num banco numa rua quase vazia, de costas para os passeios.
Ficou algum tempo a fitar o céu enquanto escurecia, até que de repente sentiu algo a enterrar-se-lhe na cabeça.
-É teu, não é? Deixaste-o cair à saída do parque e quando vi que também vinhas para aqui decidi apanhá-lo. Para a próxima tem mais cuidado. - disse uma voz.
Era o seu chapéu. Kuroi levantou-se e voltou-se para trás para ver quem lho devolvera.
-Obrigado...
À sua frente encontrava-se um rapaz pouco mais novo que ele, bastante alto, com cabelo castanho claro, olhos azuis acinzentados e que vestia umas calças jardineiras muito largas por cima de uma camisa de manga curta. Olhava-o fixamente e tinha um ar perplexo. Parecia estudá-lo com o olhar.
-Que raio... TU ÉS O AKAITE!!!!!! - gritou de repente, apontando-o. Kuroi estremeceu.
-Está calado! Se te ouvem estou frito!
O rapaz recuou um passo, ainda incrédulo, mas calou-se.
-O meu nome é Kuroi. Akaite é só uma alcunha e nem sequer gosto dela. - Disse, enquanto ajeitava o chapéu na cabeça. Depois, voltou a olhar para o rapaz. - E tu és...?
-Chamo-me Kime Makoto. - Respondeu o rapaz prontamente, já refeito da surpresa. - Sou um grande fã teu!
-A sério...? - Respondeu Kuroi, embaraçado. Desviou o olhar, numa tentativa em vão de evitar mais perguntas.
-O que é que fazes aqui? - Prosseguiu Makoto - Há bocado parecia que estavas a fugir!
-E estava... desabafou Kuroi. - Mas não tens nada com isso. Agora se me dás licença, dava-me jeito continuar a procurar um hotel. E de preferência não digas a ninguém que me viste aqui.
Dito isto voltou as costas e continuou a descer a rua.
-Não há nenhum hotel nesta cidade, - disse Makoto. - mas se quiseres podes ficar em minha casa esta noite. Temos um quarto vago e eu ficava muito feliz se aceitasses!
Kuroi olhou para cima e suspirou.
-Não tenho opção, pois não? Já está a escurecer.
-YES! - Gritou Makoto. - É por aqui. - E apontou na direcção contrária daquela em que Kuroi estava a ir.

***

Após poucos minutos, chegaram à entrada de uma casa baixinha, branca e adornada com tijolos em volta da porta. Mesmo em frente encontrava-se um jipe descapotável com ar antigo mas bem tratado.
-É teu? - Perguntou Kuroi, apontando para o carro.
-Pode dizer-se que sim. - Respondeu o outro, orgulhoso. - Tirei-o de uma sucata há uns anos e reparei-o. Já não se fazem carros tão bons como este!
Kuroi olhou mais atentamente para o jipe, que realmente aparentava ter estado em muito mau estado e depois reparado com perícia. No capot era visível uma chapa metálica com rebites à volta.
-Sabes guiá-lo?
-Claro! - Respondeu Makoto. Caso contrário não o mantinha aqui.
Sacou de uma chave que tinha no bolso e abriu a porta da casa.
-Sochin, a comida chega para três? - gritou.
-Se não enfardares tudo o que está no tacho, acho que sim! - Respondeu-lhe uma voz feminina, vinda daquilo que parecia ser a cozinha. - Mas trouxeste alguém para jantar?
-Sim, podes vir cá só por um segundo? - Disse Makoto, fechando a porta.
-O.K., já vou!
Alguns segundos depois Kuroi viu uma rapariga sair pela porta da divisão. Era bonita, um pouco mais nova e mais baixa que Makoto, também tinha o cabelo e os olhos claros e usava uma t-shirt com gola à marinheiro e um laço e folhos largos em baixo, que fazia lembrar a roupa de uma colegial. Usava também uns calções justos até ao joelho.
-Boa noite, - começou Kuroi. - Espero não incomodar.
Tal como fez Makoto, a rapariga também parecia estudá-lo.
-Mano, este tipo não é o mesmo que tu foste ver lutar esta tarde no torneio? - Disse, com uma cara estranha.
Makoto assentiu.
-Sim, é o Akaite.
-Kuroi. - Corrigiu ele. - Já disse que prefiro que me tratem pelo nome.
Sochin lançou a Makoto um olhar reprovador.
-Com licença... - Disse, puxando o irmão pelo pulso.
-Que ideia é a tua? Já sabes que me irrita profundamente aguentar quando tu te pões a ver estes tipos a lutar na televisão, agora trazer um para jantar é demais! - Sussurrou para Makoto.
-Sochin, não estás a perceber! Ele não tem onde passar a noite e, além disso, sempre quis conhecê-lo! Dá-me um desconto, sim? - Pediu o rapaz.
Sochin suspirou.
-Está bem. Mas só porque me estás a pedir. Que fique bem claro que odeio toda a espécia de lutadores.
Os dois voltaram-se novamente para a frente.
-Passa-se alguma coisa? - Perguntou Kuroi.
-Não foi nada. A minha irmã estava a perguntar-me em que quarto é que tu ficavas. Não te preocupes, vamos mas é jantar antes que arrefeça.
Os três dirigiram-se para a cozinha. Kuroi puxou uma cadeira e sentou-se com os dois irmãos.
Enquanto se servia de um pouco de Oyaku Donburi (Arroz de Frango), pensava em qualquer coisa para dizer, visto que o silêncio que se fazia sentir já pesava.
-Então... vocês vivem aqui sózinhos? - Perguntou.
Makoto fez que sim com a cabeça.
-Na maior parte do tempo, sim. Os nossos pais são biólogos e passam a maior parte do tempo fora de casa, mas de vez em quando passam por cá. De qualquer modo eu já tenho 14 anos e a minha irmã 13, por isso não há grande problema. Arranjamo-nos bem.
-Estou a ver... vocês têm sorte, apesar de tudo...
-Chamas a isto sorte? - cortou Sochin. - Quase nunca os vemos! Mas esquece. Não ias perceber.
-Têm sorte, na medida que a minha mãe foi morta por pessoas que eu nem conheço e o meu pai saiu de casa antes disso e das poucas vezes que o vejo fico a achar que é maluco. Só isso.
Mais uma vez, o silêncio abateu-se sobre eles. A rapariga fitou Kuroi nos olhos e engoliu em seco.
-Lamento...
-Deixa estar, Não podias saber. De qualquer modo já estou habituado a viver sózinho. - Disse, pegando nos talheres e começando a comer com naturalidade.
-Kuroi-san, provavelmente não queres falar disto, mas... porque é que estavas a fugir?
-A fugir? - Perguntou Sochin, admirada. - Pensei que o tivesses convidado para jantar depois do combate!
Kuroi não conseguiu evitar um sorriso.
-É uma longa história, mas para resumir eu ando à procura das pessoas que mataram a minha mãe há já uns anos e decidi que antes de me fazer à estrada devia pelo menos aprender a lutar melhor, por isso juntei-me à F.U. para treinar. Só que quando eles perceberam que me podiam usar em combates reais prenderam-me e obrigaram-me a vir com eles e desde há três anos para cá que sou forçado a lutar em torneios. Hoje finalmente consegui encontrar uma falha na segurança que tinham montado para me vigiar e aproveitei.
"Forçado a lutar uma ova... cá para mim este tipo zangou-se porque lhe cortaram no salário milionário...", pensou Sochin.
-Queres dizer que lutavas de graça e nem levavas o dinheiro dos prémios? - Indignou-se Makoto.
-Sem tirar nem pôr. - Respondeu Kuroi.
-Grandes filhos da mãe...
"E lá se vai a minha teoria...", pensou a rapariga, "Mas ainda acho que este tipo não pode ser boa rês. Os lutadores são todos a mesma escumalha. Apesar de este até ser giro..."
Olhou mais uma vez para o rapaz e sentiu-se corar, mas tentou afastar essa ideia da cabeça.

***

Na manhã seguinte, Kuroi levantou-se mais cedo do que o habitual. Ainda morto de sono abriu a porta do quarto onde ficara a dormir e arrastou-se para a casa-de-banho do outro lado do corredor. Tomou um banho rápido e estava a enxugar-se quando ouviu bater à porta.
-É a Sochin, posso entrar? - Perguntou a rapariga.
-Claro, entra. - respondeu ele.
Sochin abriu a porta e entrou, sorridente, dando dois passos em frente sem olhar.
-O meu irmão está na sala e diz que quer falar contigo assim que pude... O QUE RAIO?
Arregalou os olhos. Kuroi olhava para ela, só com uma toalha enrolada na cintura, enquanto esfregava a cabeça com outra toalha.
-O que se passa? - Perguntou o rapaz.
-E ainda perguntas... se fazes favor veste qualquer coisa da cintura para baixo antes de dizeres que posso entrar! - Gemeu ela, enquanto tapava os olhos com as mãos. Uma gota de suor escorreu pela sua testa.
-Oh, claro... desculpa, não estou habituado a estar numa casa onde há raparigas. Vou já vestir-me.
Dito isto, levou as mãos à toalha e preparava-se para a tirar.
-PERVERSO! NÃO VAIS FAZER ISSO À MINHA FRENTE! - A rapariga gritou, aterrorizada. Correu pela porta fora e fechou-a, respirando fundo. - Vá, veste-te depressa!
Apesar do choque inicial, Sochin não conseguiu evitar levar as mãos à boca. Apetecia-lhe rir às gargalhadas por causa do que acabara de acontecer.
-Pronto. O que é que estavas a dizer? - Perguntou Kuroi, abrindo a porta e saindo de lá já vestido, mas ainda com a toalha na cabeça. Tirou-a e pendurou-a nos ombros.
-O meu irmão quer falar contigo ali na sala. - Repetiu a rapariga, por entre risos.
Kuroi tentou lembrar-se de onde ficava a sala e, quando finalmente entrou, encontrou Makoto sentado num sofá à sua espera.
-A tua irmã é estranha, não é por nada... - Disse.
-Eu ouvi-a gritar daqui. Não há problema, ela tem sempre ataques destes por nada. Mais importante, hoje vais partir para a cidade a Norte daqui, não é?
Kuroi assentiu e sentou-se no chão em frente de Makoto com as pernas cruzadas.
-Boa. Nós vamos contigo! Não te importas, pois não?- Respondeu o rapaz, com um sorriso rasgado. Kuroi ficou a olhar para ele.
-Vêm comigo? Como assim?
-Eu e a Sochin decidimos que vamos contigo quando fores embora, caso não tenhas nada contra. É que estamos fartos de estar sempre no mesmo lugar e ainda por cima vais-te aborrecer a viajar sózinho.
-Por mim tudo bem. - Respondeu Kuroi, sorrindo também. - Mas tens a certeza que a tua irmã está de acordo com isso? Quer dizer... Ela não parece simpatizar muito comigo.
-Eu estive a falar com ela há pouco. Foi difícil convencê-la mas ela acabou por concordar. De qualquer modo, tenho a certeza de que vai acabar por perceber que não és má pessoa.
-Esperemos. Não quero que se chateiem por minha causa quando mal acabámos de nos conhecer... - Kuroi sentiu uma sensação estranha. Pela primeira vez, não ia viajar sózinho e isso de certo modo confortava-o. - E quando partimos?
-Assim que estiveres pronto, - respondeu Makoto - porque já noticiaram o teu desaparecimento no jornal.
Estendeu-lhe um jornal enrolado no qual pegou. No cabeçalho podia ler-se "Lutador da Fighters Union desaparece sem deixar rasto" e o resto remetia para um artigo de página inteira com alguns detalhes do desaparecimento, nunca referindo uma fuga, e também declarações de membros da empresa sobre o facto. Poisou o jornal em cima da mesa e sorriu.
-Vamos já, não tenho nada para levar. Mas ia gostar de ver a cara da gerência quando finalmente chegarem à cidade e virem que já cá não estou...
Makoto não pôde evitar sorrir também. Nesse momento Sochin surgiu à porta carregada com meia dúzia de sacos enormes.
-Vamos? - Perguntou. - Já tenho tudo o que quero levar além dos básicos!
"De certeza que o carro vai andar com tanta coisa em cima?", pensou Kuroi para consigo.
Em dez minutos o jipe estava carregado e pronto para partir. Makoto ligou o motor e virou o carro na direcção da estrada principal. Carregou a fundo no acelerador e, meio às curvas, foram-se aproximando com uma rapidez enorme da saída principal.
-Tu tens a certeza de que sabes mesmo conduzir isto? - Perguntou Kuroi - Sem ofensa, mas guias como um psicopata!
Makoto deu uma gargalhada.
-Tem calma! Estou só a divertir-me um bocado enquanto temos a estrada só para nós!
-Sempre o mesmo. - Suspirou Sochin. - Ainda nos matas a todos! Mas porque é que eu venho sempre atrás das tuas ideias sem nexo?
Ignorando o comentário da irmã, Makoto continuou até à saída da cidade. Tornaram-se visíveis algumas estradas que cruzavam com aquela em que se encontravam e, mais ao longe, uma ponte por cima de um rio. Kuroi sentiu o jipe abrandar e estabilizar. Finalmente Makoto estava a conduzir normalmente.
-Não faças isto outra vez! - Desabafou a rapariga. - Mais um bocado e eu vomitava!
No banco traseiro, Kuroi debruçava-se para fora do carro para tomar um pouco de ar enquanto segurava o chapéu com uma das mãos. Makoto segurou o volante só com uma mão e tirou do porta-luvas um mapa dobrado.
-Se não me engano, o nosso próximo destino é Nightfall city, certo?
Kuroi assentiu.
-A esta velocidade estaremos lá pouco depois da hora de almoço, acho eu... - Continuou Makoto. - Tenho assinalada uma estalagem pelo caminho, podemos abastecer-nos lá e prosseguir sem demorar muito tempo. O que acham?
Sochin e Kuroi acenaram afirmativamente.

***

Quando finalmente chegaram a Nightfall City, perceberam a razão de ser do seu nome. Era uma cidade bastante grande, com grandes maciços de prédios que não deixavam passar a luz do sol, e por isso os candeeiros de rua estavam acesos apesar de ainda ser muito cedo. As ruas eram largas e tudo parecia novo e em bom estado. Deixaram o jipe estacionado perto de um jardim e os rapazes decidiram explorar as redondezas, enquanto que Sochin se voluntariou para encontrar um local onde pudessem ficar durante a sua estadia na cidade, para depois se juntar a eles.
-Alguma vez tinhas estado aqui? - Perguntou Kuroi, enquanto caminhavam. - Pareces conhecer bem este sítio.
-Quando éramos pequenos os nossos pais trouxeram-nos aqui algumas vezes... no entanto, já não me lembro de tudo. - Respondeu Makoto.
Ao dobrarem uma esquina, viram surgir um edifício com aspecto simples e uma tabuleta que indicava que se tratava de um bar.
-E se fôssemos tomar alguma coisa? Já estou cheio de sede! - Sugeriu o mais novo.
Kuroi concordou e entraram. O lugar era tão simples por dentro como parecia por fora, com apenas algumas mesas e um balcão de vidro onde se encontravam expostas bebidas e alguns bolos. Acercaram-se desse balcão e fizeram sinal ao barman, um velhote baixinho mas com ar simpático.
-Um sumo de uva, por favor. - Pediu Kuroi.
-Para mim pode ser um copo de água com gás. - Acrescentou Makoto, antes que o velhote se fosse embora. - Sumo de uva? Não sabia que já bebias vinho...
Kuroi riu-se.
-Normalmente prefiro-o antes de fermentar, se é que me percebes... Mas se deixar a garrafinha aberta uns tempos também não fica mau. Já agora... é impressão minha ou todos os edifícios que vimos eram comerciais? Não consegui ver nem uma casa de habitação por estas bandas.
O velhote poisou dois copos e garrafas sobre o balcão à frente deles e meteu-se na conversa.
-Nightfall City é uma cidade mercante, a maioria das pessoas que aqui vêem estão só de passagem. Mais ou menos como um mercado enorme, mas ainda há pessoas que aqui vivem, na periferia...
Makoto assentiu.
-Normalmente as pessoas vêm aqui para fazer negócio e quando se vão demorar ficam num dos quatro hotéis nos extremos Norte, Sul, Este ou Oeste da cidade, onde ainda é possível apanhar alguma luz durante o dia. Pelo menos, foi o que o meu pai me contou quando cá estivemos da última vez.
-É exactamente isso. - Concordou o velhote. - Mas vá, bebam o que têm nos copos antes que deixe de estar fresco.
-Mano, já temos quarto! - Gritou Sochin, da porta.
-Foi rápido... - Comentou Kuroi. - Qual é o hotel?
-Quarto 666 do Hotel Norte. Aqui estão as vossas chaves. - disse ela, dando uma cópia da chave a cada um.
-...Seiscentos e sessenta e seis? Não podias ter arranjado um número menos aterrorizador? - Perguntou Kuroi, pegando na respectiva chave. - Francamente isto não me agrada.
-Não havia mais nenhum vago. Parece que uma companhia alugou o hotel quase todo para uma espécie de festa que vai haver aqui perto... Mas não interessa. Francamente não me parece que vá sair um servo do cornudo de debaixo da cama só por causa do número do quarto. Já agora... isso é vinho?
Apontou para a garrafa no balcão atrás de Kuroi com o ar mais sério do mundo, onde ainda se viam umas gotas do sumo arroxeado. Ele e Makoto disfarçaram um risinho de troça.
-Não percebo qual é a piada... ele é mais velho que nós mas ainda assim não é muito bonito andar a beber álcool!
Assim que leu o rótulo da garrafa e percebeu do que se tratava, corou e começou a rir também.
"Não percebo o que é que tem este tipo...", pensou para consigo, "...mas talvez o tenha julgado mal. Talvez, por uma vez, o meu irmão tenha razão...". Ao pensar nisso ainda se riu mais.
Kuroi sentia-se verdadeiramente livre pela primeira vez em muitos anos. Não percebia bem porquê, mas havia algo que o fazia confiar naqueles dois irmãos que conhecera apenas no dia anterior como nunca tinha sido capaz de confiar em ninguém em muito tempo. Era estranho, mas não fazia ideia do que iria ter de enfrentar a seguir e não se sentia preocupado. Era como se já não importasse.


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Edição a 19 de Abril de 2010: As ilustrações foram substituídas por remakes melhores. ;3

19 março 2009

Capítulo I: Recomeçar

Prólogo:


-Mamã, vamos brincar! - Gritava um rapazinho do lado de fora de uma janela.
-Agora não, meu querido. A mamã está muito cansada. - Respondeu uma mulher magra e bonita, de cabelo preto liso e muito brilhante e olhos púrpura que não pareciam reais. - Vai brincar com os outros meninos.
-Mas eu quero brincar contigo! Porque é que estás assim? É só desde que o papá se foi embora!
A mulher olhou carinhosamente para o menino e puxou com uma mão o cabelo para trás de uma orelha pontiaguda.
-Amanhã eu brinco contigo, meu filho. Mas sabes que eu não tenho tanta energia como o teu pai, que é humano. Tenho mesmo de descansar.
O pequeno acenou com a cabeça.
-Percebo. Mas amanhã tens de brincar comigo, está bem?
-Está bem... - respondeu com um sorriso amável - palavra de ninfa.
A rapazinho largou o parapeito da janela e saiu a correr para junto de outras crianças que o esperavam. A mulher recostou a cabeça na almofada de um divã, as roupas esvoaçantes pendiam-lhe do corpo, e adormeceu.
Quando o pequeno regressou, ao pôr-do-sol, vinha vermelho e cansado, mas feliz. Subiu lentamente os degraus da casa que mais parecia um templo e abriu a porta, que parecia gigante comparada com o seu tamanho.
-Mamã, já cheguei!
Como resposta, apenas ouviu umas passadas rápidas e pesadas que não reconhecia. Não via qualquer sinal da sua mãe.
"Talvez se tenha deixado dormir... vou acordá-la com jeitinho.", decidiu. Entrou na divisão em que estava a sua mãe quando lhe falara e o que viu deixou-o sem palavras.
-Não pode ser...
A divisão estava completamente destruída. Nos móveis e nas paredes estavam manchas de sangue ainda frescas. Na janela, uma silhueta fantasmagórica carregando um sabre e o corpo da ninfa já sem vida saltava o mesmo parapeito em que o menino se pendurara há poucas horas atrás.
-NÃÃÃO!!!!!!!! - Correu para a janela, desfeito em lágrimas, ainda sem acreditar no que via. Tentou avistar a silhueta, mas esta desaparecera completamente. Gritou.
-PORQUÊ? O QUE É QUE ELA TINHA FEITO DE ERRADO???
Por sua conta, naquela divisão em ruínas, naquele mesmo instante, sentiu um ódio terrível. Mas não queria vingança. Apenas perceber o porquê.


***


-Mãe... MÃE! NÃO!!!!!
Um rapaz acordou completamente espavorido no meio do chão. Era alto e magro, por volta dos 15 anos, com o cabelo castanho escuro comprido apanhado atrás por uma faixa e olhos verdes, e encontrava-se coberto de pequenas gotas de suor. Tinha a cara vermelha e a respiração ofegante.
"Outra vez o mesmo sonho", pensou. "Como se não me bastasse lembrar-me disso todos os dias, agora já nem de noite me posso tentar esquecer... nem que seja por um momento..."
Respirou fundo e levantou-se do chão. Os cobertores da sua cama estavam todos enrolados. Não queria voltar a adormecer, por isso assomou à pequena janela da sua roulotte e abriu lentamente o vidro.
-Já é quase meio-dia - murmurou. - Mal saio de um pesadelo sou forçado a entrar noutro...
Nas outras caravanas do parque começou a ouvir algumas vozes. Provavelmente tinha sido o último a acordar. Voltou a fechar o vidro e a cortina e dirigiu-se aos tropeções para o outro lado da apertada roulotte, onde tinha uma bacia com água e uma toalha. Lavou a cara e enxugou-se, quando de repente ouviu bater à porta.
-Akaite-sama, - disse uma voz hesitante por detrás da porta - não se esqueça de que tem um combate daqui a meia hora.
-Não precisas de o repetir. Eu sei tratar das minhas coisas!
A voz por detrás da porta não lhe respondeu e o jovem pensou que se devia ter ido embora.
Akaite não era o seu nome verdadeiro. Mas era assim que era conhecido por todos, pois sempre se recusara a dizer o seu nome às pessoas com quem trabalhava há já três anos. Era um lutador profissional bastante dotado, e por isso mesmo tinha sido obrigado a ficar pela empresa que organizava os combates. A verdade é que treinar com a empresa não o incomodava, o que ele realmente odiava era ter de lutar contra a sua vontade.
Enfiou pela cabeça uma t-shirt branca e vestiu uns calções vermelhos, e à saída da roulotte enfiou um par de ténis com um ar desgastado. Ignorando as pessoas à sua volta, dirigiu-se para o centro de uma concentração, onde se encontrava um ringue de combate. No centro do ringue, esperavam-no um homem bem vestido, baixo e gordo, com cara de safado, e um outro muito alto e musculado, vestido só com uns calções, que se entretia a olhar para a multidão com uma expressão desafiadora.
Passou por debaixo das cordas com desenvoltura e juntou-se aos dois, muito contraído. No mesmo instante, o homem baixinho e bem vestido sacou de um microfone e deu dois passos em frente, começando a gritar:
-Senhoras e senhores, amantes do desporto, finalmente o combate por que tanto esperavam! E agora, para a final do torneio de lutadores da Fighters Union, o tricampeão Suarez contra a mais recente estrela do mundo dos combates, o rapaz que ainda não foi derrotado, Akaite!!!
-O quê? - Riu-se Suarez, o homem dos calções - O tão falado Akaite Mão Vermelha é este pirralho? Não me façam rir!
-Já começa... porque é que não me podem levar a sério uma vez, só para variar? Evitava que tivesse de lhes dar com tanta força... - Murmurou o rapaz para consigo.
Ambos os lutadores se voltaram de costas e avançaram para cantos opostos do ringue. O baixinho continuava a falar.
-Relembro-vos que este é um combate totalmente sem regras! Aquele que derrubar o adversário , o deixar inconsciente ou matar é o vencedor desta final!
O rapaz engoliu em seco. Arrepiava-o a ideia de ser permitido matar o oponente como forma de ganhar o combate.
-Agora... COMECEM!
Suarez tinha um sorriso rasgado no seu rosto cínico. "Akaite" olhava para ele, tentando encontrar um ponto fraco. O brutamontes avançava para ele a passos largos, mas não se preocupou.
O punho de Suarez cruzou o ar com uma força tremenda, mas para o jovem ele movia-se em câmara lenta. Com uma rapidez incrível desviou-se do murro, saltou e antes que pudesse ser visto lançou um pontapé que acertou em cheio nas costelas do oponente. Este contraiu ligeiramente a expressão, mas não abandonou o seu ar sarcástico. Quando "Akaite" atingiu o chão sentiu um golpe fortíssimo nas costas e viu-se forçado a tossir.
"Este é resistente", observou. "Ou então finge muito bem."
Ignorando o sabor a sangue que começava a sentir na garganta, correu para Suarez e deu outro salto.
-Já não me vais apanhar com esse truque, pirralho! - Gritou o outro.
"Akaite" sorriu levemente e desapareceu do ar. Reapareceu no mesmo instante atrás dele e espetou-lhe um murro na coluna com uma força impensável para um rapaz daquela estatura. Suarez perdeu os sentidos e tombou. De todos os lados, a multidão gritava, uns aplaudindo e outros vaiando o vencedor. O rapaz baixou o olhar e cerrou os punhos.
Da mesma maneira como entrara, saiu do ringue ignorando tudo o resto e voltou para o parque de campismo sem uma palavra aos jornalistas que o cercavam com perguntas. Todos estavam admirados com a velocidade com que um miúdo de cerca de 15 anos derrotara o tricampeão de combates.
Voltou à roulotte, que se encontrava na zona mais afastada do parque, e voltou a olhar pela janela com uma expressão indiferente. Nesse instante, reparou que todos se tinham concentrado junto ao ringue e que só agora os guardas da empresa voltavam aos seus postos.
"Se eu conseguir passar até à entrada sem me reconhecerem e depois sair a correr... podia ser que..."
O seu coração começou a bater mais depressa e as pupilas dos olhos contraíram-se. Era a sua oportunidade de fugir dali. Sem hesitar, correu para o seu armário e tirou de lá uma camisola, um casaco e umas calças e vestiu-os à pressa. Sacou de uma faca, encostou-a à base do pescoço e cortou o cabelo por aí com um movimento brusco. Para esconder a cara, pôs um chapéu de lona que estava espalhado pelo chão enterrado quase até aos olhos e encostou-se à porta da roulotte, a respiração acelerava de ritmo a cada segundo. Quando os guardas passaram, e certificando-se de que não era visto por ninguém, esgueirou-se para fora da caravana, sempre a baixar a aba do chapéu para os olhos. Misturou-se com um grupo de pessoas que iam a sair do parque, trincando o lábio inferior para aliviar o nervosismo.
Estava cada vez mais próximo da entrada. Aqueles momentos pareceram-lhe os mais longos da sua vida, enquanto avançava em pequenos passos e quase a pisar os calcanhares do rapaz à sua frente. Se por acaso fosse reconhecido por algum dos guardas ou se o mandassem descobrir os olhos tirando o chapéu, estava tudo acabado.
Estava agora a dois passos da entrada. Estava tão tenso que só queria gritar, mas conteve-se.
Um passo. Sentia um nó fortíssimo no estômago. Um dos guardas olhou-o fixamente enquanto saía, mas "Akaite" evitou o seu olhar. Tentou concentrar-se em esconder a cara sem dar nas vistas.
O seu pé esquerdo tocou o chão ao de leve, e então olhou em volta. Estava do outro lado do portão.
"P-passei! Estou livre!"
Uma alegria tremenda apoderou-se dele. Inspirou profundamente e largou a correr sem olhar para trás quando o guarda que o fixava olhou noutra direcção.
O chapéu caiu-lhe com o vento, estava agora com a face a descoberto, mas não importava mais. Mesmo que não estivesse de costas para todos, à velocidade a que ia seria impossível reconhecê-lo com as roupas e o cabelo diferentes. Só dariam pela sua falta muito provavelmente à hora de jantar, quando fossem bater à porta da roulotte e a encontrassem vazia.
"O meu nome é Seishin Kuroi... e juro que nunca mais deixará de o ser!!!!"
















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Edição - 22 de Março de 2010: As ilustrações foram substituídas por novas versões melhoradas.