30 setembro 2009

Capítulo VIII: O poder de dois irmãos

Após uma curta despedida em Montville os três amigos fizeram-se à estrada, na direcção da pequena cidade costeira de Sommerton.
A viagem, que durara dois dias, decorrera sem incidentes de maior. A registar, apenas uma discussão entre Sochin e os rapazes por terem comido mais de metade dos mantimentos numa única refeição.
Kuroi, Makoto e Sochin encontravam-se agora parados na entrada da cidade.
-Já era altura de nos dizeres quem vieste visitar, não achas, Senpai? - Desabafou Makoto. - Visto que, pelo que dizes, vai viajar connosco.
Kuroi fitou o amigo com uma expressão confusa.
-Não vos disse? - Perguntou.
Os irmãos fizeram que não com a cabeça.
-Nem acredito que me esqueci...
-Esquecido. - Cortou Makoto.
Kuroi, ignorando-o, continuou.
-Viemos aqui falar com o meu irmão Ken'ichi. Não falo com ele desde que éramos pequenos.
-Não sabia que tinhas um irmão! - Exclamou Sochin.
-É meio-irmão. Da parte do meu pai. - Explicou o mais velho.
-E o facto de não sabermos que tinhas um irmão, também de esqueceste de nos contar? - Disse o mais novo.
-Oh, Makoto, cala-te. A sério.

***

-Já me passavas o mapa. - Remoeu Sochin, seguindo Kuroi e o irmão às voltinhas pela cidade.
Kuroi suspirou e passou o mapa para trás de si, cansado de tentar encontrar a direcção certa. Como de costume, conseguira perdê-los a todos numa cidade tão pequena.
-Ora, rua principal... Idiota. Nós ESTAMOS na rua principal!
-Hey! - Exclamou o rapaz, levando com o mapa enrolado na cabeça. Esfregou o local onde Sochin lhe batera e procurou o número da porta.
Makoto abafou uma gargalhada.
-Senpai, como é o teu irmão? - Perguntou, tentanto restablecer a seriedade da situação.
-Quando estive com ele pela última vez não passava de um miúdo tímido. Também por isso não espero uma grande recepção, mesmo não nos vendo há anos.
Makoto e Sochin não puderam evitar sentir um nó no estômago. Parecia-lhes horrível que dois irmãos não soubessem nada um do outro durante tanto tempo. Kuroi, por sua vez, não estranhava a situação.
Procurou por entre as casas um edifício que não lhe custou a encontrar. Era uma espécie de garagem, com uma porta larga de correr e um andar superior, onde se localizavam as únicas janelas. As paredes estavam pintadas de azul claro e branco, e o portão de ferro tinha uma pintura azul escura descascada.
-Deve ser aqui. - Constatou o mais velho. - A morada confere.
Os dois irmãos olhavam para a casa com um ar admirado. Sochin estranhava a forma da construção, mas Makoto parecia maravilhado.
-É um atelier! - Exclamou.
Kuroi deu três pancadas leves no portão, que tremeu com um estrondo. Ouviram-se passos vindos do interior e um arrastar de metal do portão a abrir-se.
Viram surgir à porta um rapaz mais velho, com uns 18 anos, e muito alto. Tinha o cabelo preto e curto e olhos de um castanho-avermelhado. Trazia vestido um fato-de-treino com algumas manchas de óleo de motor e tinha uma expressão de profundo aborrecimento.
-O que é que querem? - Perguntou. - Isto não é lugar para miúdos.
-Estou à procura do meu irmão Ken'ichi, acho que ele vive aqui. O meu nome é Kuroi. - Respondeu. - Conhece-o?
O rapaz mais velho mirou-o de alto a baixo, incrédulo.
-Kuroi? És mesmo tu? - Perguntou, chocado.
Kuroi esbugalhou os olhos. Nunca imaginou que o seu irmão estivesse tão diferente.
-Idiota, porque é que não disseste que eras tu, miúdo? - Continuou Ken'ichi, sorrindo.
-E sabia lá eu que eras TU! - Gritou Kuroi.
Makoto e Sochin entreolharam-se, estranhando a situação.
-É ele o teu irmão? - Disse Makoto, apontando.
Kuroi assentiu.
-Mas afinal... que história é esta de não reconheceres a própria família? - Perguntou o mais velho na brincadeira, colocando a mão com força em cima da cabeça do irmão.
-Digo o mesmo! - Respondeu este, sorrindo. - Mas pronto, também se passaram uns bons anos. O que tens feito?
-Bem... não tenho feito grande coisa. Como podes ver saí de casa, estou a gerir um negócio como mecânico...
-Certo. Nada de especial. -Murmurou Sochin, de forma audível.
-Não fiquem aí fora, entrem! - Disse Ken'ichi. - O quarto está um bocado desarrumado mas devem ser capazes de encontrar o sofá.
Os três amigos entraram pela fresta aberta do portão para um rés-do-chão enorme cheio de carros, motas e outros veículos em reparação. Ao fundo, um pequeno lance de escadas fazia comunicação com um piso superior. Subiram as escadas e dirigiram-se para a divisão que servia de quarto, onde reinava o caos.
Espalhados sobre o tapete estavam CD's, revistas e alguns (poucos) livros. Uma caixa aberta com ferramentas espalhadas em redor adornava a área circundante ao móvel de uma pequena televisão. Ao canto, perto da janela, estava um sofá-cama bastante grande mas quase imperceptível. Pelas paredes contavam-se inúmeros autocolantes de vários temas.
A rapariga fez uma expressão estranha ao ver toda aquela desarrumação, mas Makoto não se parecia importar minimamente. Tinha ficado fascinado com todos os veículos que vira no andar de baixo e só pensava em tentar consertar um. Kuroi vinha atrás, conversando animadamente com Ken'ichi.
-Parece que de tímido não tem nada. - Constatou o rapaz mais novo, sorrindo. - Acho que me vou dar bem com este tipo.

***

Mera e Edgar ouviam atentamente tudo o que se passava, escondidos nas traseiras da casa.
-Então este é o irmãozinho do Kuro-chan... que fofo. Acho que nos vamos divertir com ele, não achas, Edgar?
Edgar assentiu, sorrindo maldosamente.
-Vai ser um prazer fazê-lo em postas.
Mera, indignada, deu-lhe um pontapé na canela.
-Nem penses! Podes ficar com os pirralhos se quiseres, mas os irmãos Seishin são para mim!
-Sim, Mera-sama! - Gemeu Edgar, esfregando a perna.
-Agora temos de estar atentos, por isso cala-te. Quando tiverem uma resposta os miúdos não devem tardar em abrir o portal, e nós temos de passar por esse portal!
O corpulento Edgar acenou afirmativamente sem uma palavra. Enquanto escutava a conversa vinda do primeiro andar, tirou do bolso uma carteira de fósforos e acendeu o cachimbo.

***

-Hey, Ken...
Ken'ichi voltou-se para o irmão, que estava espalhado no sofá, ocupando-o quase todo. Encontrava-se agachado no chão, a tentar apanhar alguns objectos e roupa espalhada que ia atirando para o armário. Makoto e sochin não estavam na oficina, pois tinham ido dar uma volta para ver a praia.
-O que foi? - Perguntou o mais velho, atirando uma camisola por cima do ombro.
-Bom, já deves ter percebido que não estou só de passagem.
-Também calculei que não. Aconteceu alguma coisa?
Kuroi assentiu.
-Lembras-te do que te contei quando nos conhecemos?
-Estás a falar da tua mãe, de Dreffel e dos portais? - Respondeu Ken'ichi.
-Exacto. Na altura pediste-me que te dissesse quando encontrasse um humano capaz de me levar a Dreffel, para poderes vir comigo. E encontrei, é a rapariga que veio comigo. O outro rapaz é o irmão mais velho dela.
O outro sorriu.
-O meu pedido continua de pé. Quando é que estás a pensar partir?
-Assim que estiveres pronto. - Respondeu Kuroi. - Se queres mesmo vir podes começar a fazer as malas, e é melhor trazeres alguma arma. Nunca se sabe o que vamos encontrar por lá.
Ken'ichi assentiu. Após alguns segundos de hesitação olhou pela janela.
-Não te cheira a fumo?
Kuroi desviou primeiro o olhar para o irmão e depois para a janela enquanto tentava sentir alguma coisa.
-É tabaco.- Disse. - Vem das traseiras.
Nesse momento Makoto e Sochin, já de volta, entraram no quarto.
-O que aconteceu? - Perguntou o rapaz ao ver as expressões sérias de Kuroi e Ken'ichi.
-Isso é o que vamos descobrir. - Disse Kuroi, saltando pela janela.
-Isto é um primeiro andar! - Exclamou o mais velho, escandalizado.
-E depois? Anda!
Ken'ichi suspirou, respirou fundo e saltou atrás do irmão.
-E nós o que fazemos? - Exclamou Makoto, debruçando-se do parapeito.
-Vocês fiquem aí, isto pode ser perigoso. Nos já voltamos! - Respondeu Kuroi, correndo em perseguição do duo de assassinos.
-Desconfias de alguma coisa? - Perguntou o mais velho, seguindo-o.
-Acho que estamos prestes a esbarrar com uma das razões pelas quais vais ter de andar armado.
-Tenho uma chave de fendas. Serve como arma?
-Não me faças rir. Só se a atirares à cabeça de alguém.
Ken'ichi soltou uma pequena gargalhada e continuou a correr.
-Estão ali! - Exclamou o mais novo.
Mera e Edgar corriam o mais depressa que podiam, mas os dois irmãos rapidamente os alcançaram. Quando a distância se tornou escassa, Kuroi desapareceu e reapareceu na frente dos dois.
-Penso que deixámos um pequeno assunto por resolver. - Disse calmamente. - O que significa isto?
Levantou a manga esquerda, deixando a descoberto a cicatriz da queimadura que Mera lhe fizera em Nightfall City.
A rapariga sorriu com um brilho maldoso nos olhos.
-Gostas? É uma pequena recordação para ti e para os teus amiguinhos humanos. Uma mulher gosta sempre de ser recordada com ternura por aqueles que deixa para trás.
Kuroi, furioso, voltou a cobrir o braço e atirou-se na sua direcção com o intuito de a atingir. Foi impedido pela mão forte de Edgar, que lhe agarrou o pulso com extrema facilidade.
-Tens algum problema, rapazinho? - Brincou o homem, sorrindo sombriamente com os olhos a faiscarem na sombra do chapéu.
Alarmado, Ken'ichi lançou-se contra as costas do corpulento comparsa de Mera para o distrair.
-Ken, espera! Não consegues afectá-lo com ataques físicos com essa força! - Exclamou Kuroi, tentando libertar-se.
O rapaz, já levado pelo impulso, embateu com força em Edgar, fazendo-o estremecer. Após o embate foi impelido para trás, tombando no chão.
-Ken!!! - Exclamou Kuroi, fazendo ainda mais força para soltar o braço. Vendo que o seu esforço era inútil, utilizou o punho livre para socar o estômago do homem com toda a sua força, conseguindo assim que ele o largasse. Correu para ajudar o irmão a levantar-se, mas foi impedido por Mera, que levantou uma barreira de chamas em sua volta.
-Que desapontamento. Voltas as costas a um adversário, pareces um amador. - Disse a rapariga.
Edgar avançava para Ken'ichi, que acabara de se levantar. Tentou atingi-lo, mas este desviava-se agilmente.
Kuroi cerrou os punhos e desapareceu de dentro do círculo de labaredas, reaparecendo atrás de Mera.
A rapariga, sem tempo de usar o seu poder, rodou sobre os calcanhares, voltou-se rapidamente e empurrou-o como pôde, aproveitando a distracção para se distanciar.
Ken'ichi desviou-se de um ataque de Edgar e resvalou para perto de Mera. De um salto, agarrou-lhe as pernas, fazendo-a cair e imobilizando os seus braços de seguida.
Kuroi aproximou-se do ajudante e tentou atacá-lo novamente, sendo recebido com um murro que o lançou contra o irmão, fazendo-o largar Mera.
Esta aproveitou a ocasião para se escapar. Ganhou alguma distância, concentrou-se e entre as suas mãos surgiu uma esfera incandescente.
Mirou, divertida, os dois irmãos e repeliu a esfera na sua direcção.
De repente, ouviu-se um zumbido e um projéctil vindo de trás passou muito perto do ombro de Kuroi. Chocou com a bola de fogo antes que os atingisse e explodiu a escassos metros.
-Mas que...
Kuroi voltou-se para trás. Montados numa motorizada, Makoto e Sochin aproximavam-se rapidamente. Presa por uma correia às costas do rapaz estava um enorme embrulho em forma de tubo com um grande rasgão numa das pontas do papel atado por cordéis.
-E diziam vocês que não demoravam! - Exclamou Sochin, com um sorriso cúmplice.
-Desculpa lá ter trazido estas coisas em pedir, - Disse Makoto para Ken'ichi - Mas pelo que vejo a situação é mesmo desesperada.
Retirou o papel para deixar a descoberto uma arma enorme que parecia uma bazooka, tirou-a das costas, parou a motorizada e arremessou-a para o outro com uma certa dificuldade.
Este, apesar de ferido, levantou-se rapidamente e apanhou a arma pela correia, como se fosse muito leve.
Ele e Kuroi entreolharam-se, com ar vitorioso.
De um salto, separaram-se. Ken'ichi apontou a enorme arma ao pescoço de Edgar, que ficou imobilizado contra uma parede. Kuroi acercou-se de Mera, que tinha tombado com o impacto da explosão. Atirou um punho fechado na direcção da jovem, que cerrou os olhos.
Os segundos passaram lentamente. A rapariga voltou a olhar e viu a mão do rapaz a escassos centímetros da sua testa. Kuroi estava ofegante, quase sem forças, e sangrava de pequenos cortes no rosto e nas mãos também provocados pela explosão.
-Mera... mete isto na cabeça. - Disse, pausadamente. - Não quero saber o que pretendes com isto... Não me importa se me persegues por dinheiro ou por diversão, mas lembra-te bem disto. Tu nunca... nunca irás cumprir esse teu objectivo antes de eu cumprir o meu. É algo que eu tenho que fazer e nem tu nem ninguém me vai impedir!
Mera ficou estática por uns segundos, depois baixou a cabeça e esboçou um sorriso triste. À medida que o rapaz tombava, exausto, sobre os joelhos, o seu corpo desvaneceu-se.
Reapareceu atrás dele e curvou-se para lhe falar ao ouvido.
-Podes ter ganho desta vez. - Sussurrou-lhe. - Mas eu vou voltar, e vou garantir que da próxima vez que nos virmos vais precisar de mais do que sorte para me vencer. E quando te derrotar... vou acabar com todos vocês, um por um.
-Já ouvi essa tua conversa vezes demais. - Balbuciou o rapaz. - Fica calada para variar.
Mera ignorou-o e desapareceu. Voltou a aparecer junto de Edgar e agarrou-se ao seu braço. Num abrir e fechar de olhos ambos se desvaneceram, e Ken'ichi baixou a sua arma.
-Esta maldita não vai desistir. - Suspirou Kuroi, levantando-se com dificuldade.
-Então foi assim que se escaparam da última vez... - Murmurou Sochin.

***

-Outra vez... COMO É POSSÍVEL?
Mera andava de um lado para o outro, furiosa, tentando perceber o que correra mal.
-Mera-sama, se me permite... - Começou Edgar.
-Está calado! - Cortou a jovem. - Já sei. Já compreendo de onde veio toda aquela força!
Edgar nem se atreveu a responder.
-...Não me vais perguntar de onde...?
-De onde vem aquela força, Mera-sama?
-ESTÁ CALADO! - Gritou ela. O homem encolheu-se, parecendo ridículo para o seu tamanho. - Ele só tem conseguido vencer porque aqueles humanos estão com ele. Se da última vez o miúdo não tivesse inundado o quarto, e se agora não tivessem aparecido com aquela arma, nós teríamos vencido de qualquer uma das vezes!
Depois, fazendo uma pausa, continuou:
-Subestimámos aqueles pirralhos. Da próxima vez que nos cruzarmos, eles serão o primeiro alvo a abater.

03 setembro 2009

Capítulo VII: A segunda luz

Os pingos de chuva batiam com força na janela do quarto. O vento gemia baixinho enquanto os primeiros raios de luz tentavam irromper pelas cortinas.
Kuroi sacudiu ligeiramente a cabeça ensopada e apertou com força o cobertor enquanto abria os olhos com uma expressão de desagrado.
"Esqueci-me outra vez da janela aberta durante a noite... que porcaria", pensou para consigo, ajoelhando-se na cama para a fechar.
Depois de trancar o fecho deixou-se cair para trás sobre o colchão e suspirou. Os dias de tempestade como aquele acalmavam-no, mas deixavam-no cansado..
Alguns minutos depois saía já da pensão, embrulhado num sobretudo e com o chapéu a cobrir a cabeça da chuva que parecia engrossar a cada momento.
Saiu de debaixo do toldo da porta e apressou-se na direcção da casa dos Kime, respirando com dificuldade o ar pesado e húmido.

***

-Ainda está a dormir?! Mas como é possível?
-Estou a dizer-te, mãe, ela não acorda nem por nada!
Ame respirou fundo e saiu da cozinha disparada em direcção ao quarto dos dois irmãos. Makoto seguia-a com passadas largas.
-Sochin, estás aí? Vou entrar! - Gritou, abrindo a porta.
Sochin remexia-se por entre os lençóis, aparentemente alheia aos gritos da mãe e aos abanões do irmão. Tinha as maçãs do rosto e o nariz bastante corados.
-Está a arder em febre. - Disse outra voz.
Voltaram-se. Kuroi encontrava-se atrás deles, pendurando o sobretudo e o chapéu molhados no trinco da porta.
-Senpai, como é que...
-A porta estava mal trancada e eu entrei. Mas não é altura para falar disso, deviam chamar um médico. - Disse, olhando para Sochin, que agora gemia qualquer coisa que não conseguiam perceber.
-O meu marido já trabalhou como médico, vou chamá-lo. - Respondeu Ame prontamente, dando meia volta e saindo apressada.
Makoto fitou Kuroi, que se encontrava ainda de pé junto à porta. Fez-lhe um gesto de cumprimento com a cabeça, que logo foi retribuído, e pigarreou para quebrar o silêncio.
-...Achas que é grave...? - Murmurou. - Ela está tão vermelha...
-Ainda agora cheguei, estou a tentar descobrir. Mas acho que agora devias preocupar-te contigo mesmo. Sentes alguma coisa de estranho?
-Não, nada... estou perfeitamente normal.
Foram interrompidos pelo barulho dos passos de Ame e do marido, que entraram preocupados pelo quarto dentro.
-Está mesmo a arder em febre. - Constatou o pai dos dois irmãos, depois de tirar a temperatura a Sochin. Mas não tem os sintomas normais de uma gripe, nunca vi nada assim.
Kuroi, hesitando ligeiramente, aproximou-se da cama.
-Eu... eu já vi esta doença. Não é uma gripe.
Makoto fitou-o, curioso.
-Então o que é isto, Senpai? Eu também nunca vi nada assim.
-Há pouco disseste-me que te sentias bem, não é verdade?
Makoto acenou com a cabeça.
-Isso significa que ela esteve nalgum lugar onde apanhou a doença mas que tu não estiveste com ela.
-Mas isso é impossível! Sabes bem que nos últimos tempos andámos sempre juntos!
Na expressão séria de Kuroi abriu-se um leve sorriso.
-Esta noite parece que não.
-Estás a dizer que a minha filha saiu de casa esta noite e ninguém reparou? - Indignou-se Ame. - E onde teria ela ido?
Kuroi voltou-se para ela e fez sinal para que não falasse alto. Remexeu nos bolsos do casaco até encontrar um pequeno frasco cheio de um líquido arroxeado pouco homogéneo e fez com que Sochin o bebesse. A rapariga tossiu ligeiramente e abriu os olhos com uma expressão sonolenta.
-...Kuroi-kun!!! - Exclamou, abraçando-o a tremer.
Kuroi, apanhado de surpresa, tentava libertar-se dos braços de Sochin.
-Bolas, os humanos reagem mesmo bem a isto!
Makoto correu para a irmã, aliviado.
-Sochin, o que aconteceu? - Perguntou, puxando a irmã, que ainda tremia, para longe do amigo. - Nem sabes o susto que nos pregaste!
-Eu estive lá, mano, eu estive lá! Tenho a certeza! - Depois, olhando para Kuroi, sorriu timidamente. - Eu cheguei a Dreffel, também sou capaz!
Kuroi, já refeito do susto, sorriu de volta para Sochin.
-Isso são boas notícias. Consegues lembrar-te de como o fizeste?
Sochin acenou.
-Consigo lembrar-me bem, mas é estranho... eu estava a dormir e quando acordei já não estava no quarto. Acho que fui parar a uma espécie de ruela numa cidade, vi até algumas pessoas que não repararam em mim, mas depois perdi os sentidos e retornei aqui.
-Acho que apanhaste uma doença que é muito comum por lá, e como não tinhas defesas ficaste em mau estado. - Respondeu Kuroi. - Ainda bem que me restava este frasco de remédio. Trouxe-o quando vim para cá mas nunca precisei dele.
Sochin levantou-se lentamente e ia calçar um par de chinelos quando Kuroi a olhou reprovadoramente e empurrou para trás, voltando a deitá-la.
-Nada de sair da cama antes de eu deixar. - Murmurou. - Não tenho paciência para uma epidemia mundial.
Sochin fez uma expressão intimidada e encolheu-se entre os cobertores.
-Então... partimos quando ela recuperar? - Perguntou Makoto.
-Ainda não, há algumas coisas que eu tenho de fazer antes disso. - respondeu Kuroi, tirando o chapéu do trinco da porta e colocando-o. - Quando ela estiver curada ainda preciso de falar com uma pessoa. Com um pouco de sorte consigo convencê-lo a vir.
Makoto estava prestes a perguntar "Que pessoa?", quando foi interrompido por Kuroi, que continuou a falar.
-Já agora, podes vir comigo um minuto? Precisamos de comprar alguns mantimentos e preciso de ajuda para colocar tudo na mala do carro. Além disso devias afinar o motor para ter a certeza de que aguenta a viagem, porque o caminho até à cidade para onde vamos é longo e não temos sítios onde parar.
-O.K.! - Respondeu o rapaz, levantando-se dos joelhos e seguindo Kuroi.

***

-Que interessante... a pirralha consegue abrir portais. Não é divertido, Edgar?
Edgar riu malevolamente.
-Divertidíssimo, Mera-sama. Mal posso esperar para acabar com aqueles anõezinhos de uma vez por todas.
Mera olhou para Edgar com uma expressão ameaçadora.
-Tu só serves o aperitivo. Cabe-me a mim tratar da sobremesa e esmagá-los completamente.
Mera vigiava os acontecimentos do topo de uma árvore com um par de binóculos, encavalitada nos ombros de Edgar.
O homem grunhiu qualquer coisa sobre também gostar de sobremesas.
-Mera-sama...
-O que foi agora? - Indignou-se Mera, baixando os binóculos e olhando para o corpulento ajudante.
-Estou sem lume! - Queixou-se Edgar, apontando para o cachimbo.
Mera suspirou, esticou um dedo e na ponta surgiu uma pequena chama brilhante. Aproximou-a do cachimbo, que logo começou a fumegar, e apagou-a.
-Devias mesmo arranjar uns fósforos, seu idiota.
Edgar grunhiu baixinho novamente e Mera continuou a observar os acontecimentos pela janela.

***

-Senpai, estava aqui a pensar...
-O que foi agora? - Perguntou Kuroi, desviando o olhar das latas de comida das prateleiras do supermercado e olhando para Makoto.
-Bem, tu disseste que Dreffel era um lugar perigoso. - Disse o rapaz.
-Sim, eu sei que disse isso. E então?
Makoto hesitou por um segundo.
-Eu pensei... achas que me poderias ajudar? Isto é, a ficar mais forte. Eu sei que te disse que estava a aprender a lutar, mas a verdade é que sou péssimo. - Disse, olhando para o chão, um pouco envergonhado. - E não quero ter de improvisar para o resto da minha vida. Se o que dizes é verdade, Dreffel não vai ser nenhuma brincadeira e eu não quero ser um fardo!
Kuroi colocou a mão no ombro do amigo.
-Ninguém disse que ias ser um fardo, pára de ser idiota. - Disse, com uma expressão séria. - E não te preocupes, posso dar-te uma pequena ajuda quanto ao treino. Mas aviso-te já: sou melhor aluno que professor, a sério.
Makoto acenou com a cabeça.
-Obrigado. Prometo que me vou esforçar ao máximo! - Disse, entusiasmado.
Kuroi sorriu e continuou a atirar pacotes para dentro do cesto do supermercado.
-Sabes... devias tentar ser um bocado mais autónomo. - Sugeriu. - Às vezes pareces um cãozinho atrás de mim.
Makoto olhou para Kuroi, indignado.
-O que queres dizer com isso?
O outro riu-se.
-Não leves a mal, mas é verdade. Desde que nos conhecemos tenho a sensação de que me andas a seguir cegamente para onde quer que eu vá. És sempre assim?
O rapaz mais novo suspirou conformadamente.
-Acho que me entusiasmei um bocado com isto tudo. - Constatou. - Nem imaginas como é uma sensação estranha ser-se amigo de uma pessoa que se admirou durante tanto tempo.
-Não sei porque é que hei-de ser motivo de admiração, - Respondeu Kuroi, atirando uma lata de feijões para os braços de Makoto, que a apanhou atrapalhadamente e colocou no seu cesto ainda vazio. - mas acho que deve ser mesmo estranho. Ainda bem que não é comigo, detestaria sentir que devia seguir alguém dessa maneira.
Makoto acenou timidamente.
-Mas como já disse, - Acrescentou. - Não quero que leves isto a mal. Só não quero que estejas pouco à-vontade, afinal assim que estivermos em Dreffel vamos passar muito tempo a viajar juntos.
Makoto acenou.
-Sabes, de certa forma estou curioso sobre Dreffel. É muito diferente deste mundo?
-Ora... digamos que não é muito diferente. É um mundo menos vasto e não é tão avançado como o vosso, mas existem muitas coisas semelhantes, até mesmo alguns aspectos da cultura. Mas isso, como é óbvio, varia de região para região. - Respondeu Kuroi. - Além disso, a diferença entre a tecnologia dos dois mundos nem sequer é um problema, visto que Tyfar cuida sempre das necessidades do seu povo. Mas, por acaso, desde que expulsou a minha mãe e as outras ninfas não sei o que se passará por lá... Já somos dois que vão saciar a curiosidade.
-Então e... as pessoas? - Perguntou Makoto, cada vez mais curioso. São humanos ou são todos... tu sabes, como tu?
-Isso é uma pergunta difícil de responder. - Disse o mais velho. - Alguns são filhos de humanos que foram viver para lá, outros são mestiços, mas mesmo entre os nativos há algumas diferenças. São practicamente humanos na maior parte dos casos, mas pessoas com o mesmo tipo de poderes que eu são muito raras.
-A sério?
-Sim. Na verdade, nem sei se haverá mais pessoas assim além de mim e dos outros filhos das ninfas. Talvez alguns nativos com pequenas capacidades, mas não sei mesmo. Nunca estive muito próximo do povo.
Passaram pela caixa e iam já a sair quando Kuroi abrandou o passo e fez uma expressão séria.
-Aconteceu alguma coisa?
-Não, nada. Foi só uma impressão. - Disse, e continuaram a andar.
"A Mera está perto daqui, tenho a certeza. Mas... o que é que ela anda a tramar desta vez? É melhor manter-me atento."