30 setembro 2009

Capítulo VIII: O poder de dois irmãos

Após uma curta despedida em Montville os três amigos fizeram-se à estrada, na direcção da pequena cidade costeira de Sommerton.
A viagem, que durara dois dias, decorrera sem incidentes de maior. A registar, apenas uma discussão entre Sochin e os rapazes por terem comido mais de metade dos mantimentos numa única refeição.
Kuroi, Makoto e Sochin encontravam-se agora parados na entrada da cidade.
-Já era altura de nos dizeres quem vieste visitar, não achas, Senpai? - Desabafou Makoto. - Visto que, pelo que dizes, vai viajar connosco.
Kuroi fitou o amigo com uma expressão confusa.
-Não vos disse? - Perguntou.
Os irmãos fizeram que não com a cabeça.
-Nem acredito que me esqueci...
-Esquecido. - Cortou Makoto.
Kuroi, ignorando-o, continuou.
-Viemos aqui falar com o meu irmão Ken'ichi. Não falo com ele desde que éramos pequenos.
-Não sabia que tinhas um irmão! - Exclamou Sochin.
-É meio-irmão. Da parte do meu pai. - Explicou o mais velho.
-E o facto de não sabermos que tinhas um irmão, também de esqueceste de nos contar? - Disse o mais novo.
-Oh, Makoto, cala-te. A sério.

***

-Já me passavas o mapa. - Remoeu Sochin, seguindo Kuroi e o irmão às voltinhas pela cidade.
Kuroi suspirou e passou o mapa para trás de si, cansado de tentar encontrar a direcção certa. Como de costume, conseguira perdê-los a todos numa cidade tão pequena.
-Ora, rua principal... Idiota. Nós ESTAMOS na rua principal!
-Hey! - Exclamou o rapaz, levando com o mapa enrolado na cabeça. Esfregou o local onde Sochin lhe batera e procurou o número da porta.
Makoto abafou uma gargalhada.
-Senpai, como é o teu irmão? - Perguntou, tentanto restablecer a seriedade da situação.
-Quando estive com ele pela última vez não passava de um miúdo tímido. Também por isso não espero uma grande recepção, mesmo não nos vendo há anos.
Makoto e Sochin não puderam evitar sentir um nó no estômago. Parecia-lhes horrível que dois irmãos não soubessem nada um do outro durante tanto tempo. Kuroi, por sua vez, não estranhava a situação.
Procurou por entre as casas um edifício que não lhe custou a encontrar. Era uma espécie de garagem, com uma porta larga de correr e um andar superior, onde se localizavam as únicas janelas. As paredes estavam pintadas de azul claro e branco, e o portão de ferro tinha uma pintura azul escura descascada.
-Deve ser aqui. - Constatou o mais velho. - A morada confere.
Os dois irmãos olhavam para a casa com um ar admirado. Sochin estranhava a forma da construção, mas Makoto parecia maravilhado.
-É um atelier! - Exclamou.
Kuroi deu três pancadas leves no portão, que tremeu com um estrondo. Ouviram-se passos vindos do interior e um arrastar de metal do portão a abrir-se.
Viram surgir à porta um rapaz mais velho, com uns 18 anos, e muito alto. Tinha o cabelo preto e curto e olhos de um castanho-avermelhado. Trazia vestido um fato-de-treino com algumas manchas de óleo de motor e tinha uma expressão de profundo aborrecimento.
-O que é que querem? - Perguntou. - Isto não é lugar para miúdos.
-Estou à procura do meu irmão Ken'ichi, acho que ele vive aqui. O meu nome é Kuroi. - Respondeu. - Conhece-o?
O rapaz mais velho mirou-o de alto a baixo, incrédulo.
-Kuroi? És mesmo tu? - Perguntou, chocado.
Kuroi esbugalhou os olhos. Nunca imaginou que o seu irmão estivesse tão diferente.
-Idiota, porque é que não disseste que eras tu, miúdo? - Continuou Ken'ichi, sorrindo.
-E sabia lá eu que eras TU! - Gritou Kuroi.
Makoto e Sochin entreolharam-se, estranhando a situação.
-É ele o teu irmão? - Disse Makoto, apontando.
Kuroi assentiu.
-Mas afinal... que história é esta de não reconheceres a própria família? - Perguntou o mais velho na brincadeira, colocando a mão com força em cima da cabeça do irmão.
-Digo o mesmo! - Respondeu este, sorrindo. - Mas pronto, também se passaram uns bons anos. O que tens feito?
-Bem... não tenho feito grande coisa. Como podes ver saí de casa, estou a gerir um negócio como mecânico...
-Certo. Nada de especial. -Murmurou Sochin, de forma audível.
-Não fiquem aí fora, entrem! - Disse Ken'ichi. - O quarto está um bocado desarrumado mas devem ser capazes de encontrar o sofá.
Os três amigos entraram pela fresta aberta do portão para um rés-do-chão enorme cheio de carros, motas e outros veículos em reparação. Ao fundo, um pequeno lance de escadas fazia comunicação com um piso superior. Subiram as escadas e dirigiram-se para a divisão que servia de quarto, onde reinava o caos.
Espalhados sobre o tapete estavam CD's, revistas e alguns (poucos) livros. Uma caixa aberta com ferramentas espalhadas em redor adornava a área circundante ao móvel de uma pequena televisão. Ao canto, perto da janela, estava um sofá-cama bastante grande mas quase imperceptível. Pelas paredes contavam-se inúmeros autocolantes de vários temas.
A rapariga fez uma expressão estranha ao ver toda aquela desarrumação, mas Makoto não se parecia importar minimamente. Tinha ficado fascinado com todos os veículos que vira no andar de baixo e só pensava em tentar consertar um. Kuroi vinha atrás, conversando animadamente com Ken'ichi.
-Parece que de tímido não tem nada. - Constatou o rapaz mais novo, sorrindo. - Acho que me vou dar bem com este tipo.

***

Mera e Edgar ouviam atentamente tudo o que se passava, escondidos nas traseiras da casa.
-Então este é o irmãozinho do Kuro-chan... que fofo. Acho que nos vamos divertir com ele, não achas, Edgar?
Edgar assentiu, sorrindo maldosamente.
-Vai ser um prazer fazê-lo em postas.
Mera, indignada, deu-lhe um pontapé na canela.
-Nem penses! Podes ficar com os pirralhos se quiseres, mas os irmãos Seishin são para mim!
-Sim, Mera-sama! - Gemeu Edgar, esfregando a perna.
-Agora temos de estar atentos, por isso cala-te. Quando tiverem uma resposta os miúdos não devem tardar em abrir o portal, e nós temos de passar por esse portal!
O corpulento Edgar acenou afirmativamente sem uma palavra. Enquanto escutava a conversa vinda do primeiro andar, tirou do bolso uma carteira de fósforos e acendeu o cachimbo.

***

-Hey, Ken...
Ken'ichi voltou-se para o irmão, que estava espalhado no sofá, ocupando-o quase todo. Encontrava-se agachado no chão, a tentar apanhar alguns objectos e roupa espalhada que ia atirando para o armário. Makoto e sochin não estavam na oficina, pois tinham ido dar uma volta para ver a praia.
-O que foi? - Perguntou o mais velho, atirando uma camisola por cima do ombro.
-Bom, já deves ter percebido que não estou só de passagem.
-Também calculei que não. Aconteceu alguma coisa?
Kuroi assentiu.
-Lembras-te do que te contei quando nos conhecemos?
-Estás a falar da tua mãe, de Dreffel e dos portais? - Respondeu Ken'ichi.
-Exacto. Na altura pediste-me que te dissesse quando encontrasse um humano capaz de me levar a Dreffel, para poderes vir comigo. E encontrei, é a rapariga que veio comigo. O outro rapaz é o irmão mais velho dela.
O outro sorriu.
-O meu pedido continua de pé. Quando é que estás a pensar partir?
-Assim que estiveres pronto. - Respondeu Kuroi. - Se queres mesmo vir podes começar a fazer as malas, e é melhor trazeres alguma arma. Nunca se sabe o que vamos encontrar por lá.
Ken'ichi assentiu. Após alguns segundos de hesitação olhou pela janela.
-Não te cheira a fumo?
Kuroi desviou primeiro o olhar para o irmão e depois para a janela enquanto tentava sentir alguma coisa.
-É tabaco.- Disse. - Vem das traseiras.
Nesse momento Makoto e Sochin, já de volta, entraram no quarto.
-O que aconteceu? - Perguntou o rapaz ao ver as expressões sérias de Kuroi e Ken'ichi.
-Isso é o que vamos descobrir. - Disse Kuroi, saltando pela janela.
-Isto é um primeiro andar! - Exclamou o mais velho, escandalizado.
-E depois? Anda!
Ken'ichi suspirou, respirou fundo e saltou atrás do irmão.
-E nós o que fazemos? - Exclamou Makoto, debruçando-se do parapeito.
-Vocês fiquem aí, isto pode ser perigoso. Nos já voltamos! - Respondeu Kuroi, correndo em perseguição do duo de assassinos.
-Desconfias de alguma coisa? - Perguntou o mais velho, seguindo-o.
-Acho que estamos prestes a esbarrar com uma das razões pelas quais vais ter de andar armado.
-Tenho uma chave de fendas. Serve como arma?
-Não me faças rir. Só se a atirares à cabeça de alguém.
Ken'ichi soltou uma pequena gargalhada e continuou a correr.
-Estão ali! - Exclamou o mais novo.
Mera e Edgar corriam o mais depressa que podiam, mas os dois irmãos rapidamente os alcançaram. Quando a distância se tornou escassa, Kuroi desapareceu e reapareceu na frente dos dois.
-Penso que deixámos um pequeno assunto por resolver. - Disse calmamente. - O que significa isto?
Levantou a manga esquerda, deixando a descoberto a cicatriz da queimadura que Mera lhe fizera em Nightfall City.
A rapariga sorriu com um brilho maldoso nos olhos.
-Gostas? É uma pequena recordação para ti e para os teus amiguinhos humanos. Uma mulher gosta sempre de ser recordada com ternura por aqueles que deixa para trás.
Kuroi, furioso, voltou a cobrir o braço e atirou-se na sua direcção com o intuito de a atingir. Foi impedido pela mão forte de Edgar, que lhe agarrou o pulso com extrema facilidade.
-Tens algum problema, rapazinho? - Brincou o homem, sorrindo sombriamente com os olhos a faiscarem na sombra do chapéu.
Alarmado, Ken'ichi lançou-se contra as costas do corpulento comparsa de Mera para o distrair.
-Ken, espera! Não consegues afectá-lo com ataques físicos com essa força! - Exclamou Kuroi, tentando libertar-se.
O rapaz, já levado pelo impulso, embateu com força em Edgar, fazendo-o estremecer. Após o embate foi impelido para trás, tombando no chão.
-Ken!!! - Exclamou Kuroi, fazendo ainda mais força para soltar o braço. Vendo que o seu esforço era inútil, utilizou o punho livre para socar o estômago do homem com toda a sua força, conseguindo assim que ele o largasse. Correu para ajudar o irmão a levantar-se, mas foi impedido por Mera, que levantou uma barreira de chamas em sua volta.
-Que desapontamento. Voltas as costas a um adversário, pareces um amador. - Disse a rapariga.
Edgar avançava para Ken'ichi, que acabara de se levantar. Tentou atingi-lo, mas este desviava-se agilmente.
Kuroi cerrou os punhos e desapareceu de dentro do círculo de labaredas, reaparecendo atrás de Mera.
A rapariga, sem tempo de usar o seu poder, rodou sobre os calcanhares, voltou-se rapidamente e empurrou-o como pôde, aproveitando a distracção para se distanciar.
Ken'ichi desviou-se de um ataque de Edgar e resvalou para perto de Mera. De um salto, agarrou-lhe as pernas, fazendo-a cair e imobilizando os seus braços de seguida.
Kuroi aproximou-se do ajudante e tentou atacá-lo novamente, sendo recebido com um murro que o lançou contra o irmão, fazendo-o largar Mera.
Esta aproveitou a ocasião para se escapar. Ganhou alguma distância, concentrou-se e entre as suas mãos surgiu uma esfera incandescente.
Mirou, divertida, os dois irmãos e repeliu a esfera na sua direcção.
De repente, ouviu-se um zumbido e um projéctil vindo de trás passou muito perto do ombro de Kuroi. Chocou com a bola de fogo antes que os atingisse e explodiu a escassos metros.
-Mas que...
Kuroi voltou-se para trás. Montados numa motorizada, Makoto e Sochin aproximavam-se rapidamente. Presa por uma correia às costas do rapaz estava um enorme embrulho em forma de tubo com um grande rasgão numa das pontas do papel atado por cordéis.
-E diziam vocês que não demoravam! - Exclamou Sochin, com um sorriso cúmplice.
-Desculpa lá ter trazido estas coisas em pedir, - Disse Makoto para Ken'ichi - Mas pelo que vejo a situação é mesmo desesperada.
Retirou o papel para deixar a descoberto uma arma enorme que parecia uma bazooka, tirou-a das costas, parou a motorizada e arremessou-a para o outro com uma certa dificuldade.
Este, apesar de ferido, levantou-se rapidamente e apanhou a arma pela correia, como se fosse muito leve.
Ele e Kuroi entreolharam-se, com ar vitorioso.
De um salto, separaram-se. Ken'ichi apontou a enorme arma ao pescoço de Edgar, que ficou imobilizado contra uma parede. Kuroi acercou-se de Mera, que tinha tombado com o impacto da explosão. Atirou um punho fechado na direcção da jovem, que cerrou os olhos.
Os segundos passaram lentamente. A rapariga voltou a olhar e viu a mão do rapaz a escassos centímetros da sua testa. Kuroi estava ofegante, quase sem forças, e sangrava de pequenos cortes no rosto e nas mãos também provocados pela explosão.
-Mera... mete isto na cabeça. - Disse, pausadamente. - Não quero saber o que pretendes com isto... Não me importa se me persegues por dinheiro ou por diversão, mas lembra-te bem disto. Tu nunca... nunca irás cumprir esse teu objectivo antes de eu cumprir o meu. É algo que eu tenho que fazer e nem tu nem ninguém me vai impedir!
Mera ficou estática por uns segundos, depois baixou a cabeça e esboçou um sorriso triste. À medida que o rapaz tombava, exausto, sobre os joelhos, o seu corpo desvaneceu-se.
Reapareceu atrás dele e curvou-se para lhe falar ao ouvido.
-Podes ter ganho desta vez. - Sussurrou-lhe. - Mas eu vou voltar, e vou garantir que da próxima vez que nos virmos vais precisar de mais do que sorte para me vencer. E quando te derrotar... vou acabar com todos vocês, um por um.
-Já ouvi essa tua conversa vezes demais. - Balbuciou o rapaz. - Fica calada para variar.
Mera ignorou-o e desapareceu. Voltou a aparecer junto de Edgar e agarrou-se ao seu braço. Num abrir e fechar de olhos ambos se desvaneceram, e Ken'ichi baixou a sua arma.
-Esta maldita não vai desistir. - Suspirou Kuroi, levantando-se com dificuldade.
-Então foi assim que se escaparam da última vez... - Murmurou Sochin.

***

-Outra vez... COMO É POSSÍVEL?
Mera andava de um lado para o outro, furiosa, tentando perceber o que correra mal.
-Mera-sama, se me permite... - Começou Edgar.
-Está calado! - Cortou a jovem. - Já sei. Já compreendo de onde veio toda aquela força!
Edgar nem se atreveu a responder.
-...Não me vais perguntar de onde...?
-De onde vem aquela força, Mera-sama?
-ESTÁ CALADO! - Gritou ela. O homem encolheu-se, parecendo ridículo para o seu tamanho. - Ele só tem conseguido vencer porque aqueles humanos estão com ele. Se da última vez o miúdo não tivesse inundado o quarto, e se agora não tivessem aparecido com aquela arma, nós teríamos vencido de qualquer uma das vezes!
Depois, fazendo uma pausa, continuou:
-Subestimámos aqueles pirralhos. Da próxima vez que nos cruzarmos, eles serão o primeiro alvo a abater.

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