29 novembro 2009

Capítulo X: Voar

-Queres saber como nos conhecemos?
Makoto assentiu.
-O Senpai nunca me contaria a menos que tivesse uma óptima razão para o fazer. Por isso pensei que tu me pudesses contar. Enquanto ele está a dormir, 'tás a ver?
-Hum. - Ken'ichi pareceu pensativo. - Isso é muito típico dele. Leva o seu tempo a confiar totalmente nas pessoas.
Kuroi ainda estava a dormir, estendido sobre a relva molhada.
-Outra coisa incrível é aquela aparente imunidade a constipações. Acho que se não fosse por isso não tinha acreditado que ele não era humano. - Depois pigarreou. - Mas pronto... a verdade é que tinhas feito melhor em ir falar com ele. Não é um assunto em que eu goste muito de tocar.
-Por favor, Ken'ichi-san. Prometo que não falo disto a mais ninguém. É só mais... por curiosidade. - Disse o mais novo, um pouco embaraçado. - Quando se admira alguém é normal querer saber mais sobre essa pessoa, certo?
-Como quando... alguém compra todas as edições de uma revista só para descobrir o tamanho de caixa da Mimi Hizashi?
-Ah, Mimi-chan... - Suspirou. - Mas espera, TU FIZESTE ISSO??? - Depois, olhando em volta, viu que Kuroi começava a mexer-se. Chegou-se para o lado de Ken'ichi e baixou a voz. - Fizeste mesmo isso?
-Eh... claro que não... não! Estava só a... dar um exemplo! É isso! uma situação hipotética. - Respondeu o mais velho, sorrindo com notório embaraço.
"Mas que estou eu a fazer... isto não é algo que se deva dizer em frente a um miúdo.", pensou para consigo.
-Ouvi alguém gritar? - Perguntou Sochin, do interior da sua tenda.
-Não foi nada, maninha! - Respondeu Makoto. - Olha, não queres ir à cidade buscar leite? Esquecemo-nos de trazer algum.
-Não, ainda tenho sono. A hora aqui é totalmente diferente, ainda não me habituei ao Jet Lag. - Balbuciou.
-Está bem, dorme lá. Mas ainda te devo o favor de ontem! - Disse o rapaz, voltando-se depois para o mais velho. - Mas então, contas-me ou não?
-Conta lá isso ao rapaz, não faz mal nenhum. - Disse uma terceira voz que se juntou a eles.
Kuroi acabara de se sentar no chão no mesmo local onde estivera deitado, com as pernas cruzadas. Com uma mão, tentava sacudir a água da cabeça, apoiando a outra na perna.
-Estúpido orvalho. - Resmungou baixinho.
-Senpai! Estavas acordado?
-Com o sol a esta altura era impossível ainda estar a dormir. Pensei que era óbvio que estava só a fazer tempo.
Os outros dois forçaram um sorriso cínico.
-Para ti, tudo é óbvio!!! - Responderam em coro.
-Bah, são mesmo humanos, vocês os dois. - Disse, sorrindo. - Mas podes contar-lhe, Ken. Não vejo porque não.
-Pensei que não quisesses que se soubesse o quanto tu eras um bebé chorão. - Respondeu o mais velho, para o provocar.
-Ah sim? Tem graça, pensei que eras tu que tinhas vergonha de alguém descobrir como tu eras um miúdo mimado!
Fitaram-se um ao outro desafiadoramente durante alguns segundos, mas logo foram vencidos pelo ridículo da situação e rebentaram a rir.
"E eu que achava que tinha uma relação estranha com a Sochin.", pensou Makoto. "Mas pronto, se eles se divertem deixem-nos estar quietos."

***

Sete anos atrás. Numa pequena localidade a sul do Japão, uma figura sombria e fugaz atravessava as ruas sem despertar as atenções dos que passavam. Saltou por cima de uma poça de água que estava no chão e continuou a correr até parar em frente ao portão do muro do jardim de uma vivenda.
-É aqui. - Disse baixinho para consigo, com uma voz decidida e que parecia pertencer a uma criança.
Empurrou o portão verde de ferro pintado e dirigiu-se com um passo ansioso para a porta da casa. Saltou para alcançar a campainha e esperou que alguém abrisse.
-Quem é? - Perguntou uma mulher loira com sotaque americano, abrindo prontamente a porta. Ao não ver ninguém à sua frente, olhou para baixo.
A criança retirou o capuz do manto castanho que o cobria. Era um rapazinho de oito anos, com o cabelo castanho um pouco comprido e em desalinho e enormes olhos verdes. Por baixo da capa que lhe caía quase até às sandálias envergava uma espécie de túnica beige presa por um cinto de cabedal e uns calções abaixo do joelho. Toda a roupa parecia muito larga para a sua estatura.
-Bom dia! - Disse. - O meu pai está aqui?
A mulher pareceu atrapalhada, provavelmente surpresa pelo estranho visitante. Não parecia japonês, mas a sua pronúncia era impecável para uma criança tão pequena.
-Não, acho que te enganaste. É a minha família que vive nesta casa.
-Mas tenho a certeza que ele está aqui! - Exclamou o pequeno.
Cada vez mais perturbada, ela recuou um passo.
-Rapazinho, isto não tem piada. Onde estão os teus pais?
Ao ouvir esta pergunta, o pequeno baixou o olhar.
-A minha mãe morreu há três anos. E já lhe disse que o meu pai está aí dentro! - Respondeu, mudando repentinamente de tom de voz.
Ao fundo do corredor da casa surgiu outra criança, surpreendida pelas vozes.
Tinha o cabelo preto e curto e uns olhos castanho-avermelhados que transbordavam curiosidade. A pouco e pouco, foi-se chegando para perto da mãe.
-Diz-me lá, como é que se chama o teu pai? - Perguntou esta, já perdendo a paciência.
-Seishin. - Disse. - O apelido dele é Seishin.
Mãe e filho ficaram escandalizados.
-Não pode ser... Querido, vem aqui um minuto! - Chamou, voltando-se para dentro de casa.
Um homem alto, com cabelo escuro e um rosto severo, surgiu por detrás dos dois.
Tinha ar de ter sido interrompido nalguma coisa.
-Que se passa, mulher? Não te disse que não queria ser incomodado?
-Espero que tenhas uma excelente explicação para isto.
Afastou-se, permitindo que o marido visse a entrada da casa.
-Este miúdo diz que é teu filho.
-Kuroi... Não pode ser! - Exclamou, surpreendido. - Mas o que raio é que está a fazer aqui?
-Então conheces esta criança?
O rapazinho de cabelo preto olhava para ambos os pais, sentindo a tensão que crescia.
-Mamã, quem é este menino? - Perguntava, assustado.
-O que é que fizeste durante aqueles cinco anos? - Gritava ela, ignorando o filho. - Será que estiveste mesmo a trabalhar no estrangeiro? Abandonaste a tua família de repente e voltas da mesma maneira... e agora vem bater à porta um outro filho teu de quem eu nem sequer sabia! O que é isto?
O rosto entediado do homem endureceu numa expressão de desdém.
-A vida é minha. Faço o que bem me apetecer com ela.
A mulher levou uma mão ao rosto, que se tornou repentinamente rubro.
-Ken'ichi, vai para o teu quarto com este menino e fiquem lá até eu vos dizer para saírem.
-Não quero, mamã! Ele é esquisito! - Exclamou o pequeno, indignado.
-Faz o que te digo!
Contrariado, o rapazinho pegou em Kuroi pelo braço e arrastou-o atrás de si até ao quarto.
A casa era ao mesmo tempo cheia de luz, mas surpreendentemente sombria. O mais pequeno sentiu um nó no estômago, ao mesmo tempo que começava a compreender o que se passava.
Os dois rapazes entraram para o quarto, fechando a porta atrás de si, e Ken'ichi deixou Kuroi de pé no meio da divisão, indo sentar-se junto à parede para se afastar dele.
Passaram alguns minutos imersos no mais profundo silêncio. Kuroi começou a ficar cansado e sentou-se também no chão de soalho.
-O meu pai é só meu pai. - Murmurou Ken'ichi. - És um mentiroso.
Kuroi baixou o olhar.
-Então também é teu pai...?
-Cala-te! - Gritou o mais velho, irritado. - Já disse que ele é só meu pai!
-Eu não estou a mentir, sou mesmo filho dele! Desde que eu nasci que esteve comigo e com a minha mãe em Dreffel, e depois de ele se ir embora... alguém a matou.
-Isso é estúpido, estás a inventar. Para começar, o que é essa Dreffel?
-É um mundo muito parecido com este, foi onde eu nasci. Só se pode lá chegar através de portais dimensionais.
-Além de mentiroso és um extraterrestre. Que parvo.
-Estou a dizer a verdade! Se não queres acreditar, não acredites.
Suspirando, o mais velho desviou o olhar e tentou agir como se Kuroi não estivesse ali.
Por vezes, os seus pais discutiam, especialmente desde que o seu pai regressara misteriosamente após cinco anos de ausência. Mas desta vez ele sabia que era diferente. O que quer que tivesse feito a sua mãe chorar, tinha alguma relação com aquele rapazinho. E com uma traição que faria com que nada voltasse a ser o mesmo.
Mas... até que ponto uma criança de oito anos, ainda por cima ingénua, podia ter alguma culpa de tudo aquilo?
"Bolas...", pensou para consigo. "Mesmo que a culpa não seja dele, custa-me não o odiar. Mal chegou aqui e já começou a criar problemas. Mas se estiver a dizer a verdade..."
-Hey, miúdo. - Chamou, voltando a olhar em frente. - Kuroi, não é?
Kuroi olhou para ele com surpresa e assentiu.
-Estavas mesmo a dizer a verdade quanto ao meu pai? És filho dele?
-Sim. - Respondeu o pequeno. - Mas se eu soubesse que ele tinha outra família tinha ficado em Dreffel.
-Mas sendo assim não quer dizer que somos irmãos?
Ken'ichi começava a ultrapassar o primeiro choque, mas não estava bem certo de conseguir aceitar aquele desconhecido como seu irmão. No entanto, ao ver que Kuroi o fitava com um misto de surpresa e admiração, não pôde evitar esboçar um sorriso tímido.
De repente ouviram gritos e uma porta a bater violentamente.
-Nem sabes o que vais fazer com ele? Que belo monstro me saíste! - Exclamava a mulher.
-Já te disse que não quero saber. O filho é meu, Lily, e depois? Vais obrigar-me a tomar conta dele?
-Seu grandessíssimo... ouve bem, não importa o que faças, eu vou ficar com esta casa e com a custódia do nosso filho. E fico também com o teu rapaz, mas só porque tenho pena do que ele se tornaria nas tuas mãos. Mas só até ele fazer dez anos, e nem mais um dia! Entendido?
-Faz o que quiseres, mulher. Eu vou-me embora daqui.
Ao ouvir estas palavras, Kuroi sentiu um arrepio na espinha. Algo tão simples como rever o seu pai acabara por se tornar no catalisador da destruição de uma família.
-Lamento muito. - Murmurou.
O mais velho engoliu em seco, tentando conter a sua angústia.
-Esquece. Não podias saber de nós.
-Mas tu estás a pensar que a culpa é minha.
Era verdade, Ken'ichi sentia que a culpa era dele. Mas sabia ao mesmo tempo que o pequeno não fizera nada de mal.
-E se for preciso vou viver com isso cá dentro. Temos tempo de sobra para aprendermos a ser amigos... ou irmãos.
Dito isto, levantou-se e pendurou-se na janela. Através do vidro gelado, teve um rápido vislumbre das costas do seu pai, enquanto este caminhava serenamente já no fim da rua com uma gabardine pendurada nas costas. Não havia remorsos nem hesitações nas suas passadas. Apenas uma grande e dolorosa indiferença.
Deixou-se cair novamente até ao chão com um soluço.
-Foi... foi melhor assim.

***

O silêncio instalara-se entre os três rapazes. O ambiente tornara-se pesado de súbito.
-A tua irmã não está a dormir há demasiado tempo? - Perguntou Ken'ichi, tentando quebrar o gelo.
Sorrindo como quem está a tramar algo, Makoto voltou-se para trás e abriu um pouco do pano que cobria a entrada da tenda de Sochin.
-Maninha, hora de acordar!!!! - Gritou. Depois, já com os olhos habituados à escuridão do interior, assistiu a uma estranha cena.
Sochin encontrava-se ajoelhada no meio dos sacos-cama, com uma expressão aterrorizada e a tremer. Num canto da tenda via-se uma forma escura com dois olhos que reluziam.
-Tira isto daqui, nii-chan! Por favor! - Balbuciou ela, agarrando com força um cobertor. - Tenho medo de fazer alguma coisa!
Makoto aproximou lentamente a mão do monte negro e peludo, tentando pegar-lhe.
-OUCH!!!
Kuroi e Ken'ichi amontoaram-se na entrada, acorrendo aos gritos do rapaz.
-O que se passa?
Olhando com raiva para a criatura, este apertava a mão debaixo do outro braço para não sangrar.
-Aquela coisa mordeu-me, bolas!
Mostrou-lhes o dedo indicador, que tinha marcas como as de um bico e sangrava um pouco.
Kuroi rastejou um pouco mais para dentro da tenda. O pequeno vulto, que parecia negro recortado contra o tecido da cobertura, fitava-o com os seus olhos brilhantes. Esticou um braço para o agarrar e logo sentiu um bico aguçado cravar-se-lhe na pele do dedo e rasgá-la. O mais novo trincou o lábio para não voltar a gritar, mais impelido pela sugestão do que pela dor física.
Mas o rapaz nem sequer alterou a sua expressão. Saiu da tenda tirando a mão em último lugar, com o animal pendurado no dedo, para grande arrepio de todos, que olhavam ora para o sangue que escorria, ora para a indiferença do amigo.
-Larga. - Disse ele, sacudindo violentamente a mão.
O animal caiu na relva, sendo finalmente possível identificá-lo.
Parecia ser a cria de uma ave de rapina; no entanto, a sua plumagem tinha uma cor estranha muito próxima ao lilás claro.
-Parece um falcão. - Disse o mais velho. - Mas tem uma cor bastante estranha.
Kuroi assentiu. Olhou para cima, procurando algo com o olhar.
No alto da muralha via-se um ninho e ao longe ouviam-se os pios de um falcão adulto.
Sochin sentiu um nó na garganta.
-Foi rejeitado?
-Sim. - Respondeu Kuroi, com um tom de voz subitamente grave. - É provável.
-Coitadinho...
-Não tenhas pena dele. É uma ave com as suas próprias asas. Acabará por aprender a voar.

26 outubro 2009

Capítulo IX: Dreffel

-Bom diaaa!!!
Makoto abriu lentamente os olhos, estremunhado.
Sochin sorria, abrindo as cortinas repentinamente.
-Mas o que é que pensas que estás a fazer? - Reclamou o rapaz, sentando-se na cama e despenteando com a mão o cabelo loiro. - Que horas são?
-Seis e meia da manhã. - respondeu a irmã mais nova, inocentemente,
O mais velho olhou, perplexo, para o despertador de números luminosos. Eram, de facto, seis e meia.
-Sochin...
-Sim, maninho?
-Posso saber porque carga d'agua é que me vieste acordar a esta hora? - Disse, irritado.
-Tchi, que mau humor. - Disse a rapariga.
"Querias que estivesse de bom humor depois de ser acordado a estas horas?", pensou Makoto para consigo.
-Na verdade, também não sei. o Kuroi-kun veio pedir-me que te acordasse.
Com um suspiro, o rapaz levantou-se e enfiou os pés nos ténis.
Encontrava-se numa espécie de arrecadação, onde tinham sido enfiadas todas as coisas que estavam no chão no dia anterior. Tinha dormido numa cama desmontável, arranjada à última da hora para ele e para a irmã. Sochin, que acordava sempre muito cedo, tinha-o deixado a dormir sozinho durante a manhã.
Aos tropeções, entrou sem bater no quarto de Ken'ichi.
Este acabava de apertar as sapatilhas sentado no sofá, mas ao seu lado, Kuroi ainda estava a dormir no colchão dobrável.
-Senpai! Qual é a ideia de me mandares levantar e continuares aí deitado? - Exclamou Makoto, indignado. Tirou uma sapatilha e atirou-a à cabeça de Kuroi.
-Hey! Quem é que mandou isso?! - Gritou este, sentando-se de um pulo no colchão e esfregando a cabeça. Quando viu Makoto, pegou no sapato pelos atacadores e arremessou-o contra ele.
-E já agora, bom dia para ti também. - Concluiu, tirando os lençóis de cima de si.
Sochin fazia um enorme esforço para não se desmanchar a rir.
-Só acordaste agora, Senpai...? - Perguntou o mais novo, voltando a calçar o ténis e remoendo por causa das dores na testa causadas pelo seu trajecto de vôo.
-Naturalmente. Aliás... o que é que estás a fazer levantado? Costumas ser o último a acordar.
Ambos desviaram então o olhar para Sochin, que assobiava divertidamente encostada à ombreira da porta.
-Um dia dou cabo daquela rapariga. - Murmurou Makoto.
-Se já acabaram a vossa luta de sapatilhas, posso perguntar quando é que pensam ir para Dreffel? - Interrompeu Ken'ichi, pondo-se de pé.
-Bom, já temos comida e água para algum tempo e os sacos com o que precisamos também estão prontos. Por isso, é quando quiserem. -Respondeu Kuroi.
-Posso dar uma opinião? - Pediu Sochin, levantando a mão e dando pulinhos no mesmo sítio.
-NÃO!!! - Responderam os rapazes em coro.
-Já que, por alguma razão, estamos todos levantados, sugiro que comecemos a procurar um sítio isolado para abrir o portal. - Disse ela, ignorando-os. - Dá um bocado nas vistas se desaparecermos à frente de toda a gente.
Kuroi acenou com a cabeça em sinal de concordância.

***

-Mas quanto mais vamos ter de andar até encontrarmos um espaço escondido fora da cidade? - Resmungou Sochin.
-Oh, está calada! - Exclamou Makoto. - A ideia foi tua, e além disso é o carro que está a fazer o trabalho todo!
-Há uma gruta na falésia perto daqui. - Indicou Ken'ichi, apontando para as rochas ao fundo da praia pela qual passavam. - Está interdita aos visitantes, por isso não nos devem ir chatear.
Makoto apertou nas mãos o volante e guiou o carro para fora da estrada, descendo a duna de areia até ao ponto em que se encontrava com o mar e a falésia. Voltada para a água, a entrada da gruta parecia não ter qualquer tipo de passagem.
-E agora, como entramos ali? - Perguntou.
-Avança por dentro da água, sempre junto à rocha. - Explicou o mais velho. - Deve haver uma plataforma por baixo da água.
Seguindo as indicações de Ken'ichi, logo se encontraram dentro da húmida caverna. Respirando de alívio, Kuroi e Sochin saíram do carro.
-Estás pronta? - Perguntou o rapaz, colocando-lhe uma mão sobre o ombro.
A rapariga acenou com a cabeça.
Lá fora, o vento soprava com força e as ondas desfaziam-se na entrada. Vivia-se entre eles uma atmosfera carregada de apreensão.
Sochin levou as mãos às têmporas, tentando concentrar-se. Uma brisa fresca invadiu a gruta e começou a rodopiar em redor de um ponto no ar que tremeluzia com um brilho azul. Atrás do ponto, a parede de pedra aparecia-lhes distorcida.
A luz expandiu-se rapidamente até formar um arco de passagem através do qual não viam mais do que algumas manchas pouco nítidas de cor.
-Wow. - Exclamou Makoto. - Como é que isto apareceu no meio do quarto e eu não reparei em nada?
Kuroi deu um passo em frente e estendeu a mão. Os seus dedos tocaram a superfície brilhante do portal e atravessaram-na. Alguns segundos depois, tinha desaparecido.
Ainda um pouco perplexos, os outros três entreolharam-se e Sochin voltou a entrar no carro. Makoto pisou o acelerador e todo o veículo, como que por milagre, atravessou o estreito portal.

***

Uma brisa morna envolveu os quatro amigos. Um pouco confusos, foram aos poucos habituando os olhos à claridade até serem capazes de olhar em volta.
À sua frente estendia-se um campo de ervas altas cortado por um caminho de terra batida que levava até uma entrada numa muralha ao fundo.
-Chegámos...? - Murmurou Makoto, largando o volante e observando do seu banco tudo o que o rodeava, curioso.
Kuroi assentiu.
-Aquela fortaleza é a cidade de Kyrial. - Replicou, dando um passo em frente. - Estamos numa ilha.
Sochin voltou-se para trás no seu banco e olhou para o portal que deixara aberto.
-Isto vai ficar assim? - Perguntou.
-Não te preocupes, ninguém o vai encontrar. - Respondeu Kuroi. - Dentro de algumas horas ele fecha-se. Isto, a menos que alguém além de nós passe por ele, o que o faz fechar.
-Se passarem pelo portal vêm parar ao mesmo sítio que nós? - Indagou Ken'ichi, analisando a estrutura luminosa com o olhar. Makoto acenou com a cabeça, também ele curioso com a resposta.
-Não tenho a certeza, mas acho que o local de chegada é aleatório. - Disse Kuroi. - Provavelmente ficámos juntos porque atravessámos com um intervalo de tempo muito pequeno.
Instantes depois, um clarão desviou a atenção dos quatro. O portal começava a fechar-se com um zumbido.
-Alguém está a passar! - Exclamou o mais novo, voltando-se de repente.
-Raios, fomos seguidos! - Praguejou Ken'ichi.
Saltou por cima da porta do jipe e apoiou-se numa mão ao cair. Depressa se recompôs e aproximou-se do irmão.
-Achas que são aqueles esquisitos que encontrámos no outro dia? - Perguntou.
-Tenho a certeza. São os únicos palermas obstinados o suficiente para nos seguirem depois da tareia que levaram.
Makoto e sochin suspiraram.
-Não desistem mesmo. - Disse a rapariga.
-Depois tratamos deles, ainda vão demorar a encontrar-nos. - Continuou Kuroi. - Agora temos de esconder o jipe para podermos dar uma vista de olhos pela cidade.
-Há centros comerciais por aqui? - Guinchou Sochin, com os olhos a brilhar de excitação.
Os rapazes evitaram ter um ataque de riso, entre pigarreios para disfarçar.
-Vamos a isto, então. - Disse Makoto. - Como é que escondemos o carro?
Kuroi pensou por momentos e depois apontou na direcção da fortaleza.
-Vamos colocá-lo junto da muralha e cobri-lo com um lençol. Depois pomos algum musgo em cima e ninguém desconfiará de nada. - Respondeu.
E assim fizeram. Pouco tempo depois, o enorme jipe parecia apenas mais um monte de musgo encostado à parede.
-Já podemos ir para a cidade agora? - Perguntou a rapariga, impaciente.
"Não tem remédio.", pensou Kuroi, sorrindo.
-Só mais um aviso antes de entrarem a correr... Mantenham-se juntos e tenham cuidado. Humanos não são muito bem-vindos aqui.
-Já calculava, depois do que aconteceu com o nosso pai e os outros. - Respondeu Ken'ichi. - Não te preocupes, maninho. Eu tomo conta destes dois.
-Oh, boa... uma ama-seca. - Murmurou Makoto. Sochin abafou um risinho.
Tentando não despertar as atenções, Kuroi guiou o grupo para dentro da cidade.
No interior da muralha, tornou-se bastante claro que já não se encontravam no mundo dos humanos. As construções, pequenas casas de pedra ou argila cobertas de cal com telhados de barro cozido, empilhavam-se ao longo de uma encosta. Na entrada, encontravam-se algumas oficinas de artesãos e carroças paradas com animais. As pessoas que passavam fitavam-nos com estranheza.
Eram muito semelhantes a humanos, mas alguns tinham tons de pele, olhos ou cabelo fora do comum. Outros possuíam marcas no rosto e no corpo ou mesmo orelhas pontiagudas. Usavam roupas simples e leves, caídas do corpo quase até aos pés, que faziam lembrar trajes medievais. No entanto, de vez em quando reconheciam algo que se assemelhava a uma t-shirt ou um chapéu de abas.
-Porque é que estão a olhar para nós? - Reclamou Makoto. - Os esquisitos são eles!
Foi impedido de continuar por um conveniente cotovelo que se lhe espetou na barriga antes que voltasse a abrir a boca.
-Não piores as coisas, ou ainda acabamos todos mortos com os teus comentários. - Sussurrou-lhe Kuroi.
-Mas para dizer a verdade, estamos a dar muito nas vistas. - Constatou Ken'ichi. - Devíamos arranjar roupas como as dos habitantes.
Kuroi acenou com a cabeça.
-Deve haver por aí um alfaiate. Amanhã procuramos a loja e arranjamos umas capas para cobrir a roupa.
-Sochin, que cara é essa? - Perguntou Makoto, voltando-se para a irmã.
A rapariga tinha um ar deprimido.
-Mas capas são muito simples! - Resmungou. - O que eu queria era comprar um vestido.
-Era só um exemplo! Podes comprar o que quiseres. - Explicou o irmão. - Não é, Senpai?
-Por acaso até... não. Tenho muito pouco dinheiro comigo.
Os restantes olharam para o chão, desanimados.
-Não estou a ver como é que vamos conseguir dinheiro. - Disse o mais velho. - Tudo o que trouxemos são Ari. Aqui usam-se pesos de ouro.
Os dois irmãos acenaram.
-Quando acabar a comida, como vamos viver? - Perguntou Makoto.
-Acalmem-se. Na minha antiga casa há um tesouro que dá para nos manter bem fornecidos durante anos. - Disse Kuroi, tentando sossegá-los. - Está tudo guardado numa cave escondida, por isso só temos de chegar até lá.
-E entretanto somos pobres. - Balbuciou a rapariga, amuada.
Preparava-se para fazer um discurso sobre a importância do dinheiro para a espécie humana, mas deteve-se. Estava a começar a escurecer naquele mundo ao qual haviam chegado há apenas algumas horas, e de um momento para o outro as pessoas foram desaparecendo das ruas.
-Venham, vamos montar um acampamento. É melhor que nos comecemos a habituar à diferença de horas. - Sugeriu Kuroi. - De qualquer modo, acordámos tão cedo que estou cheio de sono.
Makoto acenou com a cabeça, bocejando. Viajar entre dimensões deixara-o de rastos.

***

-Tens a certeza de que ficas bem aí fora? - Perguntou Ken'ichi, afastando o pano da entrada da tenda e metendo-se lá dentro. Kuroi assentiu.
-Está uma noite agradável e eu sou resistente, não te preocupes.
-Até amanhã! - Gritou Makoto de dentro da tenda.
-Até amanhã. - Respondeu o rapaz.
-Até. - Despediu-se Ken'ichi, fechando o fecho de correr do tecido.
Sozinho no exterior, Kuroi recostou-se na relva, olhando o céu e trincando o caule de uma ervinha, como tanto gostava de fazer. Comparada com a Lua que deixara para trás, aquela que se via a partir de Dreffel era muito maior e mais brilhante. As estrelas, ofuscadas pela sua luz, reluziam no fundo negro.
A fogueira crepitava timidamente ao seu lado.
Olhando em redor, esboçou um sorriso. Após três longos anos de espera, estava agora um passo mais perto de saber a verdade. Ia finalmente poder honrar a sua mãe. Mas naquele momento algo se sobrepôs a isso. Ao ver o céu nocturno que se estendia sobre si como um manto, ao respirar aquele ar que era tão puro e fresco, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que estava verdadeiramente em casa.

30 setembro 2009

Capítulo VIII: O poder de dois irmãos

Após uma curta despedida em Montville os três amigos fizeram-se à estrada, na direcção da pequena cidade costeira de Sommerton.
A viagem, que durara dois dias, decorrera sem incidentes de maior. A registar, apenas uma discussão entre Sochin e os rapazes por terem comido mais de metade dos mantimentos numa única refeição.
Kuroi, Makoto e Sochin encontravam-se agora parados na entrada da cidade.
-Já era altura de nos dizeres quem vieste visitar, não achas, Senpai? - Desabafou Makoto. - Visto que, pelo que dizes, vai viajar connosco.
Kuroi fitou o amigo com uma expressão confusa.
-Não vos disse? - Perguntou.
Os irmãos fizeram que não com a cabeça.
-Nem acredito que me esqueci...
-Esquecido. - Cortou Makoto.
Kuroi, ignorando-o, continuou.
-Viemos aqui falar com o meu irmão Ken'ichi. Não falo com ele desde que éramos pequenos.
-Não sabia que tinhas um irmão! - Exclamou Sochin.
-É meio-irmão. Da parte do meu pai. - Explicou o mais velho.
-E o facto de não sabermos que tinhas um irmão, também de esqueceste de nos contar? - Disse o mais novo.
-Oh, Makoto, cala-te. A sério.

***

-Já me passavas o mapa. - Remoeu Sochin, seguindo Kuroi e o irmão às voltinhas pela cidade.
Kuroi suspirou e passou o mapa para trás de si, cansado de tentar encontrar a direcção certa. Como de costume, conseguira perdê-los a todos numa cidade tão pequena.
-Ora, rua principal... Idiota. Nós ESTAMOS na rua principal!
-Hey! - Exclamou o rapaz, levando com o mapa enrolado na cabeça. Esfregou o local onde Sochin lhe batera e procurou o número da porta.
Makoto abafou uma gargalhada.
-Senpai, como é o teu irmão? - Perguntou, tentanto restablecer a seriedade da situação.
-Quando estive com ele pela última vez não passava de um miúdo tímido. Também por isso não espero uma grande recepção, mesmo não nos vendo há anos.
Makoto e Sochin não puderam evitar sentir um nó no estômago. Parecia-lhes horrível que dois irmãos não soubessem nada um do outro durante tanto tempo. Kuroi, por sua vez, não estranhava a situação.
Procurou por entre as casas um edifício que não lhe custou a encontrar. Era uma espécie de garagem, com uma porta larga de correr e um andar superior, onde se localizavam as únicas janelas. As paredes estavam pintadas de azul claro e branco, e o portão de ferro tinha uma pintura azul escura descascada.
-Deve ser aqui. - Constatou o mais velho. - A morada confere.
Os dois irmãos olhavam para a casa com um ar admirado. Sochin estranhava a forma da construção, mas Makoto parecia maravilhado.
-É um atelier! - Exclamou.
Kuroi deu três pancadas leves no portão, que tremeu com um estrondo. Ouviram-se passos vindos do interior e um arrastar de metal do portão a abrir-se.
Viram surgir à porta um rapaz mais velho, com uns 18 anos, e muito alto. Tinha o cabelo preto e curto e olhos de um castanho-avermelhado. Trazia vestido um fato-de-treino com algumas manchas de óleo de motor e tinha uma expressão de profundo aborrecimento.
-O que é que querem? - Perguntou. - Isto não é lugar para miúdos.
-Estou à procura do meu irmão Ken'ichi, acho que ele vive aqui. O meu nome é Kuroi. - Respondeu. - Conhece-o?
O rapaz mais velho mirou-o de alto a baixo, incrédulo.
-Kuroi? És mesmo tu? - Perguntou, chocado.
Kuroi esbugalhou os olhos. Nunca imaginou que o seu irmão estivesse tão diferente.
-Idiota, porque é que não disseste que eras tu, miúdo? - Continuou Ken'ichi, sorrindo.
-E sabia lá eu que eras TU! - Gritou Kuroi.
Makoto e Sochin entreolharam-se, estranhando a situação.
-É ele o teu irmão? - Disse Makoto, apontando.
Kuroi assentiu.
-Mas afinal... que história é esta de não reconheceres a própria família? - Perguntou o mais velho na brincadeira, colocando a mão com força em cima da cabeça do irmão.
-Digo o mesmo! - Respondeu este, sorrindo. - Mas pronto, também se passaram uns bons anos. O que tens feito?
-Bem... não tenho feito grande coisa. Como podes ver saí de casa, estou a gerir um negócio como mecânico...
-Certo. Nada de especial. -Murmurou Sochin, de forma audível.
-Não fiquem aí fora, entrem! - Disse Ken'ichi. - O quarto está um bocado desarrumado mas devem ser capazes de encontrar o sofá.
Os três amigos entraram pela fresta aberta do portão para um rés-do-chão enorme cheio de carros, motas e outros veículos em reparação. Ao fundo, um pequeno lance de escadas fazia comunicação com um piso superior. Subiram as escadas e dirigiram-se para a divisão que servia de quarto, onde reinava o caos.
Espalhados sobre o tapete estavam CD's, revistas e alguns (poucos) livros. Uma caixa aberta com ferramentas espalhadas em redor adornava a área circundante ao móvel de uma pequena televisão. Ao canto, perto da janela, estava um sofá-cama bastante grande mas quase imperceptível. Pelas paredes contavam-se inúmeros autocolantes de vários temas.
A rapariga fez uma expressão estranha ao ver toda aquela desarrumação, mas Makoto não se parecia importar minimamente. Tinha ficado fascinado com todos os veículos que vira no andar de baixo e só pensava em tentar consertar um. Kuroi vinha atrás, conversando animadamente com Ken'ichi.
-Parece que de tímido não tem nada. - Constatou o rapaz mais novo, sorrindo. - Acho que me vou dar bem com este tipo.

***

Mera e Edgar ouviam atentamente tudo o que se passava, escondidos nas traseiras da casa.
-Então este é o irmãozinho do Kuro-chan... que fofo. Acho que nos vamos divertir com ele, não achas, Edgar?
Edgar assentiu, sorrindo maldosamente.
-Vai ser um prazer fazê-lo em postas.
Mera, indignada, deu-lhe um pontapé na canela.
-Nem penses! Podes ficar com os pirralhos se quiseres, mas os irmãos Seishin são para mim!
-Sim, Mera-sama! - Gemeu Edgar, esfregando a perna.
-Agora temos de estar atentos, por isso cala-te. Quando tiverem uma resposta os miúdos não devem tardar em abrir o portal, e nós temos de passar por esse portal!
O corpulento Edgar acenou afirmativamente sem uma palavra. Enquanto escutava a conversa vinda do primeiro andar, tirou do bolso uma carteira de fósforos e acendeu o cachimbo.

***

-Hey, Ken...
Ken'ichi voltou-se para o irmão, que estava espalhado no sofá, ocupando-o quase todo. Encontrava-se agachado no chão, a tentar apanhar alguns objectos e roupa espalhada que ia atirando para o armário. Makoto e sochin não estavam na oficina, pois tinham ido dar uma volta para ver a praia.
-O que foi? - Perguntou o mais velho, atirando uma camisola por cima do ombro.
-Bom, já deves ter percebido que não estou só de passagem.
-Também calculei que não. Aconteceu alguma coisa?
Kuroi assentiu.
-Lembras-te do que te contei quando nos conhecemos?
-Estás a falar da tua mãe, de Dreffel e dos portais? - Respondeu Ken'ichi.
-Exacto. Na altura pediste-me que te dissesse quando encontrasse um humano capaz de me levar a Dreffel, para poderes vir comigo. E encontrei, é a rapariga que veio comigo. O outro rapaz é o irmão mais velho dela.
O outro sorriu.
-O meu pedido continua de pé. Quando é que estás a pensar partir?
-Assim que estiveres pronto. - Respondeu Kuroi. - Se queres mesmo vir podes começar a fazer as malas, e é melhor trazeres alguma arma. Nunca se sabe o que vamos encontrar por lá.
Ken'ichi assentiu. Após alguns segundos de hesitação olhou pela janela.
-Não te cheira a fumo?
Kuroi desviou primeiro o olhar para o irmão e depois para a janela enquanto tentava sentir alguma coisa.
-É tabaco.- Disse. - Vem das traseiras.
Nesse momento Makoto e Sochin, já de volta, entraram no quarto.
-O que aconteceu? - Perguntou o rapaz ao ver as expressões sérias de Kuroi e Ken'ichi.
-Isso é o que vamos descobrir. - Disse Kuroi, saltando pela janela.
-Isto é um primeiro andar! - Exclamou o mais velho, escandalizado.
-E depois? Anda!
Ken'ichi suspirou, respirou fundo e saltou atrás do irmão.
-E nós o que fazemos? - Exclamou Makoto, debruçando-se do parapeito.
-Vocês fiquem aí, isto pode ser perigoso. Nos já voltamos! - Respondeu Kuroi, correndo em perseguição do duo de assassinos.
-Desconfias de alguma coisa? - Perguntou o mais velho, seguindo-o.
-Acho que estamos prestes a esbarrar com uma das razões pelas quais vais ter de andar armado.
-Tenho uma chave de fendas. Serve como arma?
-Não me faças rir. Só se a atirares à cabeça de alguém.
Ken'ichi soltou uma pequena gargalhada e continuou a correr.
-Estão ali! - Exclamou o mais novo.
Mera e Edgar corriam o mais depressa que podiam, mas os dois irmãos rapidamente os alcançaram. Quando a distância se tornou escassa, Kuroi desapareceu e reapareceu na frente dos dois.
-Penso que deixámos um pequeno assunto por resolver. - Disse calmamente. - O que significa isto?
Levantou a manga esquerda, deixando a descoberto a cicatriz da queimadura que Mera lhe fizera em Nightfall City.
A rapariga sorriu com um brilho maldoso nos olhos.
-Gostas? É uma pequena recordação para ti e para os teus amiguinhos humanos. Uma mulher gosta sempre de ser recordada com ternura por aqueles que deixa para trás.
Kuroi, furioso, voltou a cobrir o braço e atirou-se na sua direcção com o intuito de a atingir. Foi impedido pela mão forte de Edgar, que lhe agarrou o pulso com extrema facilidade.
-Tens algum problema, rapazinho? - Brincou o homem, sorrindo sombriamente com os olhos a faiscarem na sombra do chapéu.
Alarmado, Ken'ichi lançou-se contra as costas do corpulento comparsa de Mera para o distrair.
-Ken, espera! Não consegues afectá-lo com ataques físicos com essa força! - Exclamou Kuroi, tentando libertar-se.
O rapaz, já levado pelo impulso, embateu com força em Edgar, fazendo-o estremecer. Após o embate foi impelido para trás, tombando no chão.
-Ken!!! - Exclamou Kuroi, fazendo ainda mais força para soltar o braço. Vendo que o seu esforço era inútil, utilizou o punho livre para socar o estômago do homem com toda a sua força, conseguindo assim que ele o largasse. Correu para ajudar o irmão a levantar-se, mas foi impedido por Mera, que levantou uma barreira de chamas em sua volta.
-Que desapontamento. Voltas as costas a um adversário, pareces um amador. - Disse a rapariga.
Edgar avançava para Ken'ichi, que acabara de se levantar. Tentou atingi-lo, mas este desviava-se agilmente.
Kuroi cerrou os punhos e desapareceu de dentro do círculo de labaredas, reaparecendo atrás de Mera.
A rapariga, sem tempo de usar o seu poder, rodou sobre os calcanhares, voltou-se rapidamente e empurrou-o como pôde, aproveitando a distracção para se distanciar.
Ken'ichi desviou-se de um ataque de Edgar e resvalou para perto de Mera. De um salto, agarrou-lhe as pernas, fazendo-a cair e imobilizando os seus braços de seguida.
Kuroi aproximou-se do ajudante e tentou atacá-lo novamente, sendo recebido com um murro que o lançou contra o irmão, fazendo-o largar Mera.
Esta aproveitou a ocasião para se escapar. Ganhou alguma distância, concentrou-se e entre as suas mãos surgiu uma esfera incandescente.
Mirou, divertida, os dois irmãos e repeliu a esfera na sua direcção.
De repente, ouviu-se um zumbido e um projéctil vindo de trás passou muito perto do ombro de Kuroi. Chocou com a bola de fogo antes que os atingisse e explodiu a escassos metros.
-Mas que...
Kuroi voltou-se para trás. Montados numa motorizada, Makoto e Sochin aproximavam-se rapidamente. Presa por uma correia às costas do rapaz estava um enorme embrulho em forma de tubo com um grande rasgão numa das pontas do papel atado por cordéis.
-E diziam vocês que não demoravam! - Exclamou Sochin, com um sorriso cúmplice.
-Desculpa lá ter trazido estas coisas em pedir, - Disse Makoto para Ken'ichi - Mas pelo que vejo a situação é mesmo desesperada.
Retirou o papel para deixar a descoberto uma arma enorme que parecia uma bazooka, tirou-a das costas, parou a motorizada e arremessou-a para o outro com uma certa dificuldade.
Este, apesar de ferido, levantou-se rapidamente e apanhou a arma pela correia, como se fosse muito leve.
Ele e Kuroi entreolharam-se, com ar vitorioso.
De um salto, separaram-se. Ken'ichi apontou a enorme arma ao pescoço de Edgar, que ficou imobilizado contra uma parede. Kuroi acercou-se de Mera, que tinha tombado com o impacto da explosão. Atirou um punho fechado na direcção da jovem, que cerrou os olhos.
Os segundos passaram lentamente. A rapariga voltou a olhar e viu a mão do rapaz a escassos centímetros da sua testa. Kuroi estava ofegante, quase sem forças, e sangrava de pequenos cortes no rosto e nas mãos também provocados pela explosão.
-Mera... mete isto na cabeça. - Disse, pausadamente. - Não quero saber o que pretendes com isto... Não me importa se me persegues por dinheiro ou por diversão, mas lembra-te bem disto. Tu nunca... nunca irás cumprir esse teu objectivo antes de eu cumprir o meu. É algo que eu tenho que fazer e nem tu nem ninguém me vai impedir!
Mera ficou estática por uns segundos, depois baixou a cabeça e esboçou um sorriso triste. À medida que o rapaz tombava, exausto, sobre os joelhos, o seu corpo desvaneceu-se.
Reapareceu atrás dele e curvou-se para lhe falar ao ouvido.
-Podes ter ganho desta vez. - Sussurrou-lhe. - Mas eu vou voltar, e vou garantir que da próxima vez que nos virmos vais precisar de mais do que sorte para me vencer. E quando te derrotar... vou acabar com todos vocês, um por um.
-Já ouvi essa tua conversa vezes demais. - Balbuciou o rapaz. - Fica calada para variar.
Mera ignorou-o e desapareceu. Voltou a aparecer junto de Edgar e agarrou-se ao seu braço. Num abrir e fechar de olhos ambos se desvaneceram, e Ken'ichi baixou a sua arma.
-Esta maldita não vai desistir. - Suspirou Kuroi, levantando-se com dificuldade.
-Então foi assim que se escaparam da última vez... - Murmurou Sochin.

***

-Outra vez... COMO É POSSÍVEL?
Mera andava de um lado para o outro, furiosa, tentando perceber o que correra mal.
-Mera-sama, se me permite... - Começou Edgar.
-Está calado! - Cortou a jovem. - Já sei. Já compreendo de onde veio toda aquela força!
Edgar nem se atreveu a responder.
-...Não me vais perguntar de onde...?
-De onde vem aquela força, Mera-sama?
-ESTÁ CALADO! - Gritou ela. O homem encolheu-se, parecendo ridículo para o seu tamanho. - Ele só tem conseguido vencer porque aqueles humanos estão com ele. Se da última vez o miúdo não tivesse inundado o quarto, e se agora não tivessem aparecido com aquela arma, nós teríamos vencido de qualquer uma das vezes!
Depois, fazendo uma pausa, continuou:
-Subestimámos aqueles pirralhos. Da próxima vez que nos cruzarmos, eles serão o primeiro alvo a abater.

03 setembro 2009

Capítulo VII: A segunda luz

Os pingos de chuva batiam com força na janela do quarto. O vento gemia baixinho enquanto os primeiros raios de luz tentavam irromper pelas cortinas.
Kuroi sacudiu ligeiramente a cabeça ensopada e apertou com força o cobertor enquanto abria os olhos com uma expressão de desagrado.
"Esqueci-me outra vez da janela aberta durante a noite... que porcaria", pensou para consigo, ajoelhando-se na cama para a fechar.
Depois de trancar o fecho deixou-se cair para trás sobre o colchão e suspirou. Os dias de tempestade como aquele acalmavam-no, mas deixavam-no cansado..
Alguns minutos depois saía já da pensão, embrulhado num sobretudo e com o chapéu a cobrir a cabeça da chuva que parecia engrossar a cada momento.
Saiu de debaixo do toldo da porta e apressou-se na direcção da casa dos Kime, respirando com dificuldade o ar pesado e húmido.

***

-Ainda está a dormir?! Mas como é possível?
-Estou a dizer-te, mãe, ela não acorda nem por nada!
Ame respirou fundo e saiu da cozinha disparada em direcção ao quarto dos dois irmãos. Makoto seguia-a com passadas largas.
-Sochin, estás aí? Vou entrar! - Gritou, abrindo a porta.
Sochin remexia-se por entre os lençóis, aparentemente alheia aos gritos da mãe e aos abanões do irmão. Tinha as maçãs do rosto e o nariz bastante corados.
-Está a arder em febre. - Disse outra voz.
Voltaram-se. Kuroi encontrava-se atrás deles, pendurando o sobretudo e o chapéu molhados no trinco da porta.
-Senpai, como é que...
-A porta estava mal trancada e eu entrei. Mas não é altura para falar disso, deviam chamar um médico. - Disse, olhando para Sochin, que agora gemia qualquer coisa que não conseguiam perceber.
-O meu marido já trabalhou como médico, vou chamá-lo. - Respondeu Ame prontamente, dando meia volta e saindo apressada.
Makoto fitou Kuroi, que se encontrava ainda de pé junto à porta. Fez-lhe um gesto de cumprimento com a cabeça, que logo foi retribuído, e pigarreou para quebrar o silêncio.
-...Achas que é grave...? - Murmurou. - Ela está tão vermelha...
-Ainda agora cheguei, estou a tentar descobrir. Mas acho que agora devias preocupar-te contigo mesmo. Sentes alguma coisa de estranho?
-Não, nada... estou perfeitamente normal.
Foram interrompidos pelo barulho dos passos de Ame e do marido, que entraram preocupados pelo quarto dentro.
-Está mesmo a arder em febre. - Constatou o pai dos dois irmãos, depois de tirar a temperatura a Sochin. Mas não tem os sintomas normais de uma gripe, nunca vi nada assim.
Kuroi, hesitando ligeiramente, aproximou-se da cama.
-Eu... eu já vi esta doença. Não é uma gripe.
Makoto fitou-o, curioso.
-Então o que é isto, Senpai? Eu também nunca vi nada assim.
-Há pouco disseste-me que te sentias bem, não é verdade?
Makoto acenou com a cabeça.
-Isso significa que ela esteve nalgum lugar onde apanhou a doença mas que tu não estiveste com ela.
-Mas isso é impossível! Sabes bem que nos últimos tempos andámos sempre juntos!
Na expressão séria de Kuroi abriu-se um leve sorriso.
-Esta noite parece que não.
-Estás a dizer que a minha filha saiu de casa esta noite e ninguém reparou? - Indignou-se Ame. - E onde teria ela ido?
Kuroi voltou-se para ela e fez sinal para que não falasse alto. Remexeu nos bolsos do casaco até encontrar um pequeno frasco cheio de um líquido arroxeado pouco homogéneo e fez com que Sochin o bebesse. A rapariga tossiu ligeiramente e abriu os olhos com uma expressão sonolenta.
-...Kuroi-kun!!! - Exclamou, abraçando-o a tremer.
Kuroi, apanhado de surpresa, tentava libertar-se dos braços de Sochin.
-Bolas, os humanos reagem mesmo bem a isto!
Makoto correu para a irmã, aliviado.
-Sochin, o que aconteceu? - Perguntou, puxando a irmã, que ainda tremia, para longe do amigo. - Nem sabes o susto que nos pregaste!
-Eu estive lá, mano, eu estive lá! Tenho a certeza! - Depois, olhando para Kuroi, sorriu timidamente. - Eu cheguei a Dreffel, também sou capaz!
Kuroi, já refeito do susto, sorriu de volta para Sochin.
-Isso são boas notícias. Consegues lembrar-te de como o fizeste?
Sochin acenou.
-Consigo lembrar-me bem, mas é estranho... eu estava a dormir e quando acordei já não estava no quarto. Acho que fui parar a uma espécie de ruela numa cidade, vi até algumas pessoas que não repararam em mim, mas depois perdi os sentidos e retornei aqui.
-Acho que apanhaste uma doença que é muito comum por lá, e como não tinhas defesas ficaste em mau estado. - Respondeu Kuroi. - Ainda bem que me restava este frasco de remédio. Trouxe-o quando vim para cá mas nunca precisei dele.
Sochin levantou-se lentamente e ia calçar um par de chinelos quando Kuroi a olhou reprovadoramente e empurrou para trás, voltando a deitá-la.
-Nada de sair da cama antes de eu deixar. - Murmurou. - Não tenho paciência para uma epidemia mundial.
Sochin fez uma expressão intimidada e encolheu-se entre os cobertores.
-Então... partimos quando ela recuperar? - Perguntou Makoto.
-Ainda não, há algumas coisas que eu tenho de fazer antes disso. - respondeu Kuroi, tirando o chapéu do trinco da porta e colocando-o. - Quando ela estiver curada ainda preciso de falar com uma pessoa. Com um pouco de sorte consigo convencê-lo a vir.
Makoto estava prestes a perguntar "Que pessoa?", quando foi interrompido por Kuroi, que continuou a falar.
-Já agora, podes vir comigo um minuto? Precisamos de comprar alguns mantimentos e preciso de ajuda para colocar tudo na mala do carro. Além disso devias afinar o motor para ter a certeza de que aguenta a viagem, porque o caminho até à cidade para onde vamos é longo e não temos sítios onde parar.
-O.K.! - Respondeu o rapaz, levantando-se dos joelhos e seguindo Kuroi.

***

-Que interessante... a pirralha consegue abrir portais. Não é divertido, Edgar?
Edgar riu malevolamente.
-Divertidíssimo, Mera-sama. Mal posso esperar para acabar com aqueles anõezinhos de uma vez por todas.
Mera olhou para Edgar com uma expressão ameaçadora.
-Tu só serves o aperitivo. Cabe-me a mim tratar da sobremesa e esmagá-los completamente.
Mera vigiava os acontecimentos do topo de uma árvore com um par de binóculos, encavalitada nos ombros de Edgar.
O homem grunhiu qualquer coisa sobre também gostar de sobremesas.
-Mera-sama...
-O que foi agora? - Indignou-se Mera, baixando os binóculos e olhando para o corpulento ajudante.
-Estou sem lume! - Queixou-se Edgar, apontando para o cachimbo.
Mera suspirou, esticou um dedo e na ponta surgiu uma pequena chama brilhante. Aproximou-a do cachimbo, que logo começou a fumegar, e apagou-a.
-Devias mesmo arranjar uns fósforos, seu idiota.
Edgar grunhiu baixinho novamente e Mera continuou a observar os acontecimentos pela janela.

***

-Senpai, estava aqui a pensar...
-O que foi agora? - Perguntou Kuroi, desviando o olhar das latas de comida das prateleiras do supermercado e olhando para Makoto.
-Bem, tu disseste que Dreffel era um lugar perigoso. - Disse o rapaz.
-Sim, eu sei que disse isso. E então?
Makoto hesitou por um segundo.
-Eu pensei... achas que me poderias ajudar? Isto é, a ficar mais forte. Eu sei que te disse que estava a aprender a lutar, mas a verdade é que sou péssimo. - Disse, olhando para o chão, um pouco envergonhado. - E não quero ter de improvisar para o resto da minha vida. Se o que dizes é verdade, Dreffel não vai ser nenhuma brincadeira e eu não quero ser um fardo!
Kuroi colocou a mão no ombro do amigo.
-Ninguém disse que ias ser um fardo, pára de ser idiota. - Disse, com uma expressão séria. - E não te preocupes, posso dar-te uma pequena ajuda quanto ao treino. Mas aviso-te já: sou melhor aluno que professor, a sério.
Makoto acenou com a cabeça.
-Obrigado. Prometo que me vou esforçar ao máximo! - Disse, entusiasmado.
Kuroi sorriu e continuou a atirar pacotes para dentro do cesto do supermercado.
-Sabes... devias tentar ser um bocado mais autónomo. - Sugeriu. - Às vezes pareces um cãozinho atrás de mim.
Makoto olhou para Kuroi, indignado.
-O que queres dizer com isso?
O outro riu-se.
-Não leves a mal, mas é verdade. Desde que nos conhecemos tenho a sensação de que me andas a seguir cegamente para onde quer que eu vá. És sempre assim?
O rapaz mais novo suspirou conformadamente.
-Acho que me entusiasmei um bocado com isto tudo. - Constatou. - Nem imaginas como é uma sensação estranha ser-se amigo de uma pessoa que se admirou durante tanto tempo.
-Não sei porque é que hei-de ser motivo de admiração, - Respondeu Kuroi, atirando uma lata de feijões para os braços de Makoto, que a apanhou atrapalhadamente e colocou no seu cesto ainda vazio. - mas acho que deve ser mesmo estranho. Ainda bem que não é comigo, detestaria sentir que devia seguir alguém dessa maneira.
Makoto acenou timidamente.
-Mas como já disse, - Acrescentou. - Não quero que leves isto a mal. Só não quero que estejas pouco à-vontade, afinal assim que estivermos em Dreffel vamos passar muito tempo a viajar juntos.
Makoto acenou.
-Sabes, de certa forma estou curioso sobre Dreffel. É muito diferente deste mundo?
-Ora... digamos que não é muito diferente. É um mundo menos vasto e não é tão avançado como o vosso, mas existem muitas coisas semelhantes, até mesmo alguns aspectos da cultura. Mas isso, como é óbvio, varia de região para região. - Respondeu Kuroi. - Além disso, a diferença entre a tecnologia dos dois mundos nem sequer é um problema, visto que Tyfar cuida sempre das necessidades do seu povo. Mas, por acaso, desde que expulsou a minha mãe e as outras ninfas não sei o que se passará por lá... Já somos dois que vão saciar a curiosidade.
-Então e... as pessoas? - Perguntou Makoto, cada vez mais curioso. São humanos ou são todos... tu sabes, como tu?
-Isso é uma pergunta difícil de responder. - Disse o mais velho. - Alguns são filhos de humanos que foram viver para lá, outros são mestiços, mas mesmo entre os nativos há algumas diferenças. São practicamente humanos na maior parte dos casos, mas pessoas com o mesmo tipo de poderes que eu são muito raras.
-A sério?
-Sim. Na verdade, nem sei se haverá mais pessoas assim além de mim e dos outros filhos das ninfas. Talvez alguns nativos com pequenas capacidades, mas não sei mesmo. Nunca estive muito próximo do povo.
Passaram pela caixa e iam já a sair quando Kuroi abrandou o passo e fez uma expressão séria.
-Aconteceu alguma coisa?
-Não, nada. Foi só uma impressão. - Disse, e continuaram a andar.
"A Mera está perto daqui, tenho a certeza. Mas... o que é que ela anda a tramar desta vez? É melhor manter-me atento."

07 julho 2009

Capítulo VI: A primeira luz

Era grande o rebuliço que se fazia sentir em Nightfall City. A morte do gerente do Hotel Norte havia causado uma onda de pânico por toda a cidade e obrigara à movimentação de inúmeras forças policiais para investigar o sucedido. No meio de uma das ruas mais movimentadas, misturados com o resto da população, encontravam-se Kuroi, Makoto e Sochin.
-Podias ter arranjado um sítio mais perto daqui para estacionar o carro. - reclamava o mais velho.
-Já experimentaste procurar um lugar nesta cidade perto dos hotéis? Digo-te, senpai, é impossível! - Argumentava Makoto.
-Parem de discutir, vocês os dois! Parecem dois miúdos! - Gritou Sochin.
-O que é que lhe deu tão de repente? - Sussurrou Kuroi ao ouvido do amigo.
-Não ligues. Ela está assim porque viemos à maior cidade comercial do país e não passámos uma tarde num shopping a pagar-lhe coisas. Isto passa-lhe. - Respondeu Makoto, afastando dos olhos o cabelo claro. - Olha, está ali o carro!
Apontou para o jipe descapotável estacionado perto do pequeno jardim à sua frente e correu nessa direcção.
-Mano, espera! - Dizia a rapariga, correndo atrás dele. Kuroi deixou-se ficar mais atrás, remoendo para consigo.
O ardor que sentia no seu braço não o deixava esquecer da mensagem ameaçadora que Mera lhe deixara antes de desaparecer. Estava, de facto, determinada a matar qualquer pessoa que se relacionasse com ele.
Cerrou e apertou com força um punho e juntou-se aos dois irmãos dentro do carro.
-Sabes para onde temos de ir agora, Makoto? - Perguntou.
-Para... Montville, certo? - Respondeu o rapaz, voltando-se para o amigo no banco atrás de si.
-Montville... mas mano, isso é onde a mãe e o pai estão a trabalhar agora! - Exclamou Sochin com um sorriso surpreendido.
-A sério? Isso é fixe. - Comentou Kuroi. - Assim vocês podem passar algum tempo com os vossos pais em segurança enquanto eu eu trato dos meus assuntos por lá.
-E tu? - Inquiriu Makoto.
-Eu?
-Tu... Senpai, tu nunca falas com o teu pai?
Kuroi baixou o olhar timidamente.
-Não. - Disse baixinho. - Nunca falamos.
-Mas porquê? - Insistiu o mais novo - Não percebo porque é que o odeias tanto.
-Porque ele me deixou sozinho com a minha mãe quando eu era pequeno para voltar para este mundo. Se ele estivesse em casa naquele dia, talvez a minha mãe não... estivesse morta. E além do mais ele é um verdadeiro sacana. Não consegues falar com ele a sério, é um irresponsável que não respeita nada nem ninguém e que venderia a alma por dinheiro e álcool. Acho que ninguém gostaria de o ter como pai.
Sochin, que até então se mantivera em silêncio, inclinou-se para trás e fitou uma nesga de céu azul de onde se recortavam dezenas de prédios gigentescos.
-Presumo que não queiras falar disto. Mano... vamos andando, sim? Estou farta deste lugar. - Disse, com um tom de voz suave.
O carro começou a andar devagar e acelerou passados alguns segundos. Kuroi baixou a aba do chapéu para os olhos e deixou-se dormir.

***

Filho... filho, consegues ouvir-me? - Chamava uma voz doce e límpida.
-Mãe...
Kuroi encontrava-se numa sala que conhecia muito bem dos seus sonhos e do seu próprio passado.
Estava, sem se ter dado conta, sentado no chão da sala da sua antiga casa e, mesmo à sua frente, via a sua mãe, que lhe estendia uma mão com um sorriso gentil. As roupas que ambos usavam, a posição das cadeiras, tudo estava exactamente como no momento em que Kuroi falara com a sua mãe pela última vez.
Ergueu a mão esquerda para agarrar a da mãe, mas quando os dois se tocaram ao de leve a imagem da ninfa dissolveu-se no ar com um clarão e a sua queimadura começou a arder de maneira insuportável. Kuroi agarrou-se ao braço desesperadamente enquanto via a imagem da sua casa desaparecer à sua frente mergulhada na mais completa escuridão. A voz de Mera ecoava nos seus ouvidos.
"Um a um, todos vão morrer!"
Soltou um grito de angústia e desespero e sentiu a consciência a esvair-se lentamente.

***

-Kuroi-kun, o que se passa? Acorda!!!
Kuroi abriu os olhos de repente numa expressão de choque e respirou fundo enquanto voltava a si. Tinha suores frios por todo o corpo e tremiam-lhe as mãos.
Puxou lentamente o chapéu dos olhos e olhou em volta.
-O que aconteceu? - Balbuciou.
-Estavas a ter um pesadelo, acho eu. - Respondeu Makoto.
-Então foi isso... um pesadelo... - Suspirou tristemente. - Ainda estamos longe?
-É mesmo ali à frente. - Respondeu o rapaz, apontando para as primeiras construções que se viam no horizonte. - Queres parar um bocado?
-Não, deixa. Já estou melhor. Agora o importante é encontrar a pessoa que está na lista.
Tirou do bolso do casaco o pequeno caderno e folheou-o com uma mão sobre os joelhos, agarrando o chapéu com a outra. Sochin inclinou-se um pouco para o lado para espreitar.
-Hey... vocês conhecem os habitantes da cidade? - Perguntou.
-Poucos... - Respondeu Sochin. - Como se chama a pessoa com quem vais tentar falar?
-É uma tal... Yuzori Ame.
Makoto voltou-se para trás e travou a fundo, quase perdendo o controlo do carro.
-Essa pessoa está na tua lista? De certeza? - Perguntou, indignado.
Sochin continuava a olhar para a lista, fitando o nome que Kuroi acabara de ler.
-Está... - Confirmou Kuroi - Conhecem-na?
-É a nossa mãe! - Exclamou Sochin. - Deve haver algum engano!
-Bom... eu tenho a certeza que esta lista está certa. - Respondeu o rapaz.
Makoto respirou fundo.
-Ela nunca nos falou de nada disso. Mas só podemos ter a certeza falando com ela, certo?
Voltando a pegar no volante, arrancou novamente com o jipe para voltar à estrada.
Algum tempo depois já haviam passado a entrada de Montville e procuravam atentamente o laboratório de pesquisa da cidade.
Este estava no topo de um dos montes onde a cidade se localizava. Era um edifício moderno e que saltava à vista pela altitude a que se encontrava e pelo grande letreiro visível sobre a porta de entrada envidraçada.
Subiram pela estrada que percorria a encosta e pararam junto do edifício.
-Acabei de me lembrar... - Disse Makoto, hesitando em agarrar no puxador - que a mãe e o pai não sabem que estamos aqui. Será que não há problema?
-Hum... Não deve fazer mal. Despacha-te e abre a porta! - Disse Sochin, sorrindo impacientemente.
Sem fazer barulho a porta abriu-se de par em par e os três entraram.
O corredor principal do laboratório era comprido e largo e de ambos os lados viam-se portas com pequenas placas metálicas.
Os dois irmãos entreolharam-se e apressaram o passo em direcção a uma porta quase no fundo do corredor. Kuroi, que não os vira recomeçarem a andar, desapareceu e reapareceu junto deles a meio do caminho e os três aproximaram-se da porta.
Na placa metálica podia ler-se "Gabinete de biologia: Dr. Kime e Dr.ª Yuzori".
Kuroi bateu levemente à porta e entrou.
No interior do gabinete encontrava-se uma mulher alta e loira, com o cabelo pelos ombros apanhado num rabo-de-cavalo e que usava um par de óculos sem aro. Trazia uma bata branca comprida e estava sentada junto a uma mesa, tirando apontamentos.
-Desculpe... - Interrompeu - É a Dr.ª Yuzori Ame?
A mulher voltou-se e acenou afirmativamente com um sorriso amável.
-O meu nome é Kuroi. Eu precisava de falar consig...
-Mãe! - Gritou sochin de repente, escancarando a porta e correndo para os braços de Ame. Esta ficou surpreendida de início, mas depois pousou os óculos em cima da mesa e abraçou a filha. Makoto assomou também à porta e juntou-se às duas.
-O que é que estão a fazer aqui, vocês os dois? - Perguntou a mãe dos irmãos, entre risos.
-Viemos com ele. - Respondeu Makoto, apontando para Kuroi. - Ele precisa de falar contigo.
Ame assentiu e levantou Sochin do seu colo, virando-se novamente para Kuroi.
-Eu... - começou o rapaz - ...preciso de saber se é verdade que a senhora consegue cruzar a barreira para Dreffel.
-Dreffel? - Perguntou a mulher, atrapalhada. - O que é isso?
O rapaz suspirou. "Não sabe de nada", disse para consigo.
-Recebi a informação de que a senhora consegue criar uma falha na barreira entre este mundo e outro chamado Dreffel. Venho aqui perguntar-lhe isto porque preciso que o faça.
Ame parecia afectada.
-Diz-me, essa barreira...
-Acha que já esteve do outro lado sem saber? - Interrompeu Kuroi.
-Como é que sabes? - Perguntou a mulher, cada vez mais assombrada.
-Porque é muito comum acontecer com humanos que possuam essa capacidade, especialmente enquanto crianças. Desaparecem deste mundo por algum tempo e quando reaparecem dizem que não se lembram de nada devido ao choque. Foi isto que lhe aconteceu?
Ame voltou-se para os filhos.
-Quem é este rapaz afinal? Como é que ele sabe isto tudo?
-É natural, afinal ele nasceu em Dreffel. Não te preocupes, mãe. Ele é nosso amigo e nós sabemos porque é que ele te está a pedir isto. - Disse Makoto.
A mulher suspirou.
-É verdade, eu já estive do outro lado quando era criança. Mas não sei abrir a barreira novamente, lamento.
Kuroi baixou o olhar. A sombra da aba do chapéu encobria a sua expressão.
-Estou a pedir-lhe, tente lembrar-se, por favor... Não tenho maneira de chegar a Dreffel por mim próprio. - Depois, levantando o olhar para Ame, continuou. - A minha mãe foi morta e tenho de lá ir para saber quem a assassinou!
Ame acenou compreensivamente.
-Kuroi, não posso prometer nada. Mas prometo que vou dar o meu melhor. Falando de outro assunto... vocês já têm onde passar a noite? Eu e o meu marido temos uma cama vaga em casa.
Sochin voltou-se imediatamente para a mãe.
-Podemos ficar nela, mãe? eu e o mano?
Ame sorriu para os filhos.
-Está bem, querida. E o vosso amigo?
-Eu arranjo um quarto numa pensão, não precisa de se preocupar. - Disse Kuroi. - Até será melhor, vocês não estão em segurança comigo por perto muito tempo.
-Referes-te à rapariga e ao brutamontes? - Perguntou Makoto.
-Esperem aí! - exclamou a mulher. - "Não estão em segurança"? Mas em que tipo de perigos é que vocês se andam a meter? E de quem é que estão a falar?
"Já falei demais...", pensou Kuroi, engolindo em seco.
-Mas que surpresa! Não esperava ver-vos aqui!
Um homem um pouco calvo, de cabelo castanho e bigode e uma expressão sorridente surgiu à porta.
-Pai! - Disse Sochin, aliviada. - Que susto! Não contava que aparecesses assim de repente!
Ora essa... ainda trabalho neste gabinete!
O Dr. Kime deu alguns passos em frente, pendurando o casaco que trazia por cima da bata num cabide escondido atrás da porta, deu um beijo na face da filha, fez uma festa na cabeça de Makoto que o despenteou e aproximou-se curiosamente de Kuroi.
-Eu... o meu nome é Seishin Kuroi. Sou um amigo do Makoto e da Sochin. É um prazer conhecê-lo, doutor. - Reagiu o rapaz, estendendo a mão.
O pai dos dois irmãos cumprimentou Kuroi, olhando-o fixamente nos olhos. Pigarreou e voltou-se para o filho.
-Makoto, o teu amigo não parece mesmo o miúdo da Fighters Union?
Sochin suspirou e aproximou-se de Kuroi.
-Adivinha de onde vem o mau gosto do meu irmão... - Sussurrou. - Tem cuidado, se te reconhece ainda te acaba a pedir autógrafos.
-E... sim, são muito parecidos... - Respondeu Makoto, forçando um sorriso. Kuroi sentiu um arrepio na espinha e foi baixando discretamente a aba do chapéu sobre os olhos.

***

-Bom... boa noite então. - Despediu-se Kuroi.
-Boa noite, senpai. Até amanhã.
Makoto fechou cuidadosamente a porta da casa dos seus pais.
Kuroi agarrou o chapéu na cabeça para que não caísse e olhou para o céu avermelhado de final de tarde. Preparava-se para seguir para a estalagem quando sentiu o vento mudar.
-Sinto que se avizinha uma grande tempestade... - Murmurou para si próprio, e seguiu caminho, apressando o passo.

06 junho 2009

Capítulo V: Os espinhos da rosa

Kuroi encontrava-se sentado no chão de um quarto de hotel apertado, mas confortável, remexendo num sem-fim de papéis e pressionando as têmporas com uma mão e sublinhando e sublinhando nomes atrás de nomes com a outra. A luz fraca e alaranjada do candeeiro cansava-lhe os olhos e o chiar das páginas do velho caderno a roçar nas argolas metálicas estava a deixá-lo louco.
-Senpai, já é tarde... devíamos ir dormir. - Balbuciava Makoto, estendido ao comprido no sofá de módulos da pequena entrada.
Esfregava os olhos energicamente, tentando manter-se acordado mas apenas conseguindo que lhe ficassem vermelhos.
Kuroi levantou o olhar dos papéis e fitou o amigo.
-Talvez tenhas razão. - Disse. - Acho que neste estado não vou muito mais longe. Mas é como se tivesse a obrigação de fazer o mais que consigo. Depois de todo o tempo que perdi...
Makoto baixou o olhar compreensivamente.
-Mas não vais fazer nada nesse estado.
-Se a festa da empresa ali de baixo fizesse menos barulho até podíamos passar pelas brasas, mas assim é inútil. - Respondeu Kuroi. - Vou arrumar isto por hoje e buscar algum café. Queres?
-Pode ser. - Acenou o outro. - Mas não tragas um demasiado forte para mim, não estou muito habituado a café.
Kuroi assentiu, abriu a porta do quarto 666 e saiu, voltando a fechá-la atrás de si.
Makoto suspirou e olhou para a lista que Kuroi tinha estado a examinar. Estava cheia de nomes e localizações e alguns dos nomes estavam sublinhados a cor. Outros estavam cortados por linhas a todo o comprimento.

***

Kuroi chegou ao fim das escadas e procurou uma máquina de café na área circundante.
"Ali!", pensou, ao avistar uma máquina preta perto do salão de festas. Acercou-se dela e colocou duas moedas com um gesto rápido.
Do salão vinham ruídos de conversas e risos pouco sóbrios. Kuroi bebeu o seu café de um único trago e deu um passo na direcção da festa para dar uma vista de olhos, mas voltou para trás. Afinal, Makoto não o perdoaria se se fosse divertir e não o chamasse.

***

-Você tem a certeza do que está a dizer? - Soou uma voz grave e ameaçadora.
-Sim, tenho. eu não roubaria o seu precioso tempo se não soubesse que é mesmo ele, Edgar-sama.
Edgar retirou com uma só mão do seu oleado verde-seco um fósforo e acendeu o pequeno cachimbo que tinha na boca, perante o olhar respeitoso e assustado do dono do hotel.
-Mera-sama vai ficar feliz com essa novidade.
Largou o pescoço do homem e riu maldosamente.
Com um clique, a porta da apertada e escura arrecadação abriu-se, chiando nas dobradiças.
-Edgar, já lhe arrancaste o que queríamos saber? - Perguntou uma voz feminina e suave. No mesmo momento uma figura esguia passou pela porta, mantendo-se na sombra.
-Sim, senhora. O miúdo está hospedado aqui.
-Excelente. Podes matar este infeliz. - Respondeu, apertando contra si o comprido casaco de gola felpuda e atirando para trás o cabelo negro.
Edgar voltou a rir.
-Como queira, Mera-sama.
Com um golpe de punhal o gerente do hotel deixou de suplicar pela sua vida e o sangue escorreu pelo chão. Mera acercou-se dele, agachou-se e, antes que ficasse dura, fechou-lhe na mão uma rosa azul. Depois voltou a endireitar-se e perfilou-se ao lado do companheiro.
-Agora sim, o quadro está completo. Vem, Edgar, temos mais espectáculo para dar. Estou ansiosa por reencontrar o "nosso" miúdo...

***

-Mas achas que nos deixam entrar na festa sem mais nem menos? - Perguntou Makoto, acabando o seu café.
-Se não nos quiserem lá podemos ir escondidos, roubamos uns fritos e já não fica tudo perdido. - Gozou Kuroi. - Vá, anda, não deve haver problema.
Makoto sorriu, acenou com a cabeça e levantou-se do sofá.
Quando os dois amigos chegaram ao salão, a primeira coisa que viram foi uma mesa ricamente decorada com um buffet de marisco.
-Ostras... estou a ficar enjoado... - Gemeu Makoto, recuando um passo e fazendo uma careta.
-Então isto é uma festa de humanos... - Murmurava Kuroi para consigo. - Pensei que fossem piores.
-MATARAM O GERENTE!- Gritou uma das empregadas do hotel, chegando espavorida à entrada do salão.
Com o barulho, poucos foram os que ouviram, mas quando o grito se repetiu todos se calaram de repente, olhando para a mulher que estava encharcada em suor e lágrimas de terror.
-Chamem a polícia! - Gritou Kuroi. Depois aproximou-se da empregada a correr, seguido de Makoto, ainda meio atarantado. - Minha senhora, acalme-se e mande isolar o edifício, não deixe ninguém entrar ou sair. Onde está o corpo?
A mulher, ainda a soluçar, voltou-se e apontou a porta escancarada da arrecadação, ao fundo do corredor.
-Makoto, vai acordar a Sochin e fica com ela, tenho um mau pressentimento acerca disto!
Makoto balbuciou qualquer coisa como "Também queria dar uma olhadela ao morto" e correu para o quarto da irmã.
Kuroi aproximou-se da porta da arrecadação e aquilo que viu confirmou a sua pior suspeita. No centro de uma mancha de sangue ainda fresco, por entre os dedos rígidos do cadáver, encontrou uma rosa azul bem sua conhecida.
-Mera. - Murmurou. - Mas o que é que ela pretende com isto?
Suspirou e seguiu para o seu quarto. Se bem a conhecia, não iria demorar a descobrir o que se passava, além de que não seria capaz de a encontrar mesmo que vasculhasse todo o hotel.
Sem pensar muito no assunto, entrou na casa-se banho e molhou a cara para acordar um pouco mais. Quando pegou na toalha sentiu uma presença atrás de si.

-Kohaku Mera... já estava a estranhar a demora.
Mera sorriu provocadoramente.
-Há quanto tempo. Tive de parar para ver qual era o teu quarto, Kuro-chan... e o dos teus amiguinhos novos. São muito espirituosos, é pena que...
-Se aquele teu ajudante nojento lhes tocar... - Cortou Kuroi - ...vou fazer-vos voltar para o buraco de onde vos desenterraram.
-Que rude! - Exclamou a rapariga, irritada. Era um pouco mais velha e tinha a mesma altura que Kuroi, apesar de o casaco justo a fazer parecer mais alta. - Eu só disse ao Edgar para os divertir por um bocadinho...
-Tu és doente. - E, dito isto, saiu a correr do quarto, ignorando a expressão indignada da jovem, na direcção do quarto onde se encontravam os dois irmãos.
A porta tinha sido arrombada brutalmente e no interior era visível apenas a figura larga de Edgar recortada contra a luz do candeeiro.
Com uma força desproporcional à sua estatura, Kuroi puxou o braço do homem, abrindo caminho e obrigando-o a voltar-se.
Makoto agarrava o varão do guarda-roupa em gesto de defesa e Sochin encontrava-se atrás dele, apertando as mangas da sua camisa, aterrorizada.
-Senpai! - Exclamou ele. - Ainda bem que chegaste. Podes dar-me uma ajuda com este "penedo"? Não nos quer deixar sair.
Kuroi, a princípio, ficou surpreendido, mas depois sorriu levemente.
-Estava a pensar em ver como te saías. Só por um bocadinho, se é que me entendes.
Makoto assentiu, retribuindo o sorriso com uma expressão de satisfação, e rodou o varão nos dedos. Olhando para Sochin, fez sinal para que a irmã o largasse por um pouco e se afastasse. Kuroi foi ter com ela, sempre olhando para Makoto.
-Ora onde é que eu ia... - Dizia Edgar para consigo. - Ah, sim. Limpar o sebo a estas pestes.
Avançou pesadamente na direcção de Makoto, que tinha pouco espaço para recuar.
-Não tão cedo.
Encostando o varão no tronco de Edgar, Makoto tomou impulso para se desviar, atirou-se para o lado, rodou nos calcanhares e disparou um pontapé na direcção do corpulento adversário.
Este levou o impacto, contraiu-se ligeiramente e voltou à carga na direcção do rapaz.
-Bolas que é resistente! - Exclamou Makoto. - Por pouco quem se magoava era eu!
Edgar deu um pesado salto sobre Makoto, golpeando-o a partir de cima com o punho fechado. Makoto colocou o varão entre si e ele, mas a força do murro desferido quebrou-o e acertou-lhe em cheio na cabeça.
-Mano!!! - gritou Sochin, correndo alguns passos em frente. Kuroi agarrou-a por um braço.
-O que é que está sa fazer? Queres morrer assim tanto? - Gritou Kuroi reprovadoramente. - Eu trato disto a partir de agora.
Makoto tombara com o impacto e levantava-se agora, levando a mão à cabeça. Edgar puxou da faca que utilizara no assassinato e caminhou lentamente na sua direcção, brincando com ela nas mãos.
Kuroi largou o braço de Sochin, correu para Edgar e atirou um dos ombros contra as suas costas com força. O homem perdeu o equilíbrio por um momento e varreu o ar com o braço desocupado, tentando atingir Kuroi.
Makoto aproveitou para se escapar pelo chão e levantar junto do amigo, e ambos esperaram novo ataque de Edgar.
De repente, Mera assomou à entrada.
-Ora, ora... dois contra um parece-me um pouco desequilibrado, não, Kuro-chan?
-Este idiota tem o tamanho de TRÊS!!! - Gritou Makoto.
Edgar esboçou um sorriso malicioso e recuou para junto de Mera. A jovem juntou as mãos e, nas suas palmas, surgiram faíscas que em breve formavam um círculo incandescente no chão à sua volta.
-Isto não é nada bom. - Comentou Kuroi entredentes.
Sochin trincou o lábio inferior. Estava paralisada com medo mas sentia uma necessidade enorme de ajudar os dois rapazes.
As chamas em redor de Mera começavam a alastrar ao chão do quarto a pouco e pouco.
Kuroi desapareceu e reapareceu no ar, bem em frente de Edgar, e lançou um pontapé dirigido ao meio das suas pernas com toda a força.
-Senpai!!! Isso doeu até a mim! - Exclamou Makoto, escandalizado.
-Humanos... tão vulneráveis. - Comentou Kuroi.
Depois, com um movimento rápido do braço e a mão bem firme, atingiu-lhe um ponto no meio das peludas sobrancelhas. Deixou-se cair apoiado na outra mão, voltou-se e fitou Mera.
-Agora já posso tratar de ti.
Makoto observava, abismado, enquanto o corpo gigantesco de Edgar caía, inanimado, no tapete. Depois, reparando nas chamas, correu para a casa-de-banho.
-Mano, o que é que estás a fazer? - chamou Sochin, de um canto do quarto.
-É mesmo um desperdício... - lamentou-se Mera - ...mas parece que é aqui que nos despedimos, Kuro-chan.
-Sua BESTA! - Gritou Sochin, pegando numa das metades do varão partido e atirando-a a girar contra Mera.
A barra metálica abrandou a meio do vôo e incendiou-se, desfazendo-se em cinzas.
-Eu posso queimar qualquer coisa, querida. Mas foi um bom esforço. - Gozou a jovem.
Da casa-de-banho ouviu-se um ruído de pancadas fortes com um martelo e, da porta que se abriu, jorrou um enorme jacto de água. Makoto assomou à porta, retirando da cara um par de óculos de protecção encharcados.
-Também queimas isto? - Ironizou. - Agora, Senpai, enquanto ela não pode atacar!
Kuroi sorriu para o amigo e correu para Mera, surpreendida, imobilizando-lhe os braços.
A jovem tentava desesperadamente libertar-se, e de repente impeliu a cabeça para trás, acertando em Kuroi e fazendo-o tombar.
O fumo denso espalhado pelo quarto fazia Sochin e Makoto tossir, mas parecia não a afectar.
Alguns segundos depois, os três desmairam.

***

Kuroi abriu lentamente os olhos. Sentia uma toalha molhada na testa. Tentou erguer o corpo, mas mal conseguia respirar.
-Não te mexas. - Disse a voz de sochin. - A enfermeira deve estar quase a chegar.
-...Enfermeira...? - Murmurou.
Quando finalmente a névoa nos seus olhos desapareceu, olhou em volta. Estava deitado numa cama de hospital, ensopado até aos tornozelos e cheio de fuligem. A parte interior do seu braço esquerdo ardia-lhe.
-Vocês estão bem? - Acabou por perguntar.
-Não te preocupes. Conseguimos cobrir a boca e não respirámos muito fumo.
-E aqueles dois...?
-Foram-se. Desapareceram sem deixar rasto. - Intrometeu-se Makoto. - A polícia diz que provavelmente tivemos um acidente com um isqueiro ou coisa parecida e não acreditam no que lhes dizemos.
-Como era de esperar. - Respondeu Kuroi, finalmente capaz de se erguer. - Não vale a pena. aquela rapariga também é filha de uma das ninfas e desde que está neste mundo que me lembro de ser uma assassina. Agora deve ter uns... acho que 17 anos. Ao fim deste tempo todo, não me admira que já tenha o poder a este nível... temos de ter muito cuidado com ela.
Sentiu novamente uma pontada no braço e arregaçou a manga da camisola. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Os dois amigos ficaram sem respiração.
No seu braço via-se uma queimadura enorma formando letras, e uma frase.
"Um a um, todos vão morrer."

27 maio 2009

Capítulo IV: Humanidade

-Hyoumaru-saaan!!! Abra a porta!
-Kuroi-kun, não vale a pena. É óbvio que ele não está em casa... - disse Sochin.
Kuroi acenou com a cabeça e baixou o punho com que batia na pesada porta de carvalho.
-É estranho, - Disse - o Hyoumaru-san nunca sai de casa.
Makoto estava uns passos mais atrás, mirando a enorme casa feita no estilo de uma mansão antiga. O contraste com os edifícios modernos do resto da cidade era enorme.
-Ei, miúdos, o que é que estão aí a fazer? Ponham-se a andar! - Gritou alguém.
Os três amigos voltaram-se e viram chegar um homem na casa dos 50, que se dirigia para a porta num passo apressado. Nenhum deles proferiu uma palavra, mas também não saíram do mesmo sítio.
-Não me ouviram? Vão-se embora! - reforçou ele.
-Hyoumaru-san, sou eu, o Kuroi! - Disse o rapaz, chamando-lhe a atenção. Hyoumaru parou de rodar a chave na fechadura e olhou para ele.
-O filho do Seishin?
Kuroi assentiu.
-Desculpe aparecer sem avisar, mas precisava de falar consigo. - Depois, apontou para os dois irmãos. - Não precisa de se preocupar com eles, vieram comigo.
-Muito bem, então. - respondeu Hyoumaru, abrindo por fim a porta. - Entrem, vou preparar qualquer coisa.
Passaram por um estreito corredor alcatifado e com aspecto acolhedor.
-Senpai! - sussurrou Makoto, dando a Kuroi uma pancadinha no ombro. - Já nos podes explicar o que se passa?
Kuroi suspirou. Entraram na enorme sala de estar e sentaram-se, os dois irmãos muito nervosos. Kuroi estava, ao contrário deles, muito à-vontade naquele lugar.
-...Então? O que é que tens para nos dizer? - Replicou Sochin, quebrando o silêncio.
-Estava a pensar em como vos começar a explicar para não parecer ridículo, - Disse. - mas não há nenhuma maneira de o fazer.
Depois, sorrindo, continuou.
-Basicamente, há dois mundos que coexistem nesta dimensão. Um deles é este, o mundo dos humanos, e o outro é Dreffel, onde eu nasci. Sei que parece um disparate, mas...
-Continua. - Interrompeu Makoto. - Se acreditamos ou não, isso é algo que ainda não podemos decidir.
Kuroi assentiu.
-Acontece que Dreffel, apesar de semelhante, funciona de uma maneira muito diferente deste mundo. A sua governadora suprema é a deusa Tyfar, sobre quem, sinceramente, não sei muito. Sei apenas que as suas 13 filhas, as ninfas sacerdotizas, são as suas mensageiras, fazendo cumprir as leis que regem Dreffel. Uma dessas leis era-lhes dirigida: "As sacerdotizas devem manter-se puras e nunca contactar com humanos". Heh... todas acabaram por quebrar essa lei.
-Mas o que tem isso a ver contigo? - Perguntou Sochin.
-Calma, já vais perceber. - Respondeu Kuroi. - Os dois mundos são separados por uma barreira frágil, e alguns humanos são mesmo capazes de a atravessar. Por isso não era raro haver visitas dos humanos que conheciam a existência de Dreffel. E foi isso mesmo que aconteceu um dia. Um grupo de humanos atravessou a barreira e, após algum tempo, descobriram a existência das ninfas por um mero acaso. Acabaram seduzidos por elas e... bom, penso que não tenho de explicar o resto. Quando Tyfar descobriu ficou furiosa por ter sido desobedecida, mas não foi capaz de matar os humanos e as próprias filhas. Então enviou-as para um local entre os dois lados da barreira, onde pudessem viver sem nunca voltar a Dreffel, mas de onde pudessem vir ao mundo dos humanos caso assim desejassem. E, bem... eu sou o filho de uma dessas ninfas com um humano.
Depois fez uma expressão enfadada, pigarreou e continuou.
-Apesar de o meu lado humano me dar algumas... vejamos... limitações, também herdei algumas das capacidades da minha mãe. Creio que já viram uma delas... a de transporte, estou enganado?
Makoto pensou por uma fracção de segundo e depois respondeu:
-Sim, já vimos. Mas espera lá, então o Genji também é filho de uma dessas ninfas?
Kuroi acenou afirmativamente com a cabeça.
-Mais tarde, quando já estava neste mundo, vim a saber que todas as ninfas foram assassinadas no mesmo dia e da mesma forma que a minha mãe. Alguns humanos e os filhos voltaram a este mundo, como eu e o meu pai, mas não sei quais. Já nem me lembro sequer dos nomes deles...
-Senpai... não entendo. Não entendo como podes falar com tanta naturalidade do que aconteceu à tua mãe. - Disse Makoto, mais para o ar do que para ser ouvido, fitando um ponto na parede à sua frente. - Se fosse comigo, acho que...
-E lamentar-me, ia servir de alguma coisa? Talvez com humanos não seja assim tão simples, mas eu tive de me adaptar à situação e aceitá-la. O passado não pode ser mudado, afinal de contas.
Sobre eles abateu-se um silêncio aterrador, pois nem Makoto nem sochin conseguiram encontrar uma resposta.
Ao fim do corredor ouviam-se os passos do dono da casa. Hyoumaru assomou à entrada da sala, carregando um tabuleiro com três copos de sumo instantâneo e três sandes.
-Aqui têm. - disse. - Não é muito mas, como devem calcular, não esperava visitas.
-Não precisava de se incomodar connosco... - Começou Kuroi.
-Não é incómodo nenhum, além do mais é sempre agradável rever o filho de um velho amigo. - Depois pigarreou. - Mas, afinal, a que se deve esta passagem tão súbita por aqui?
Kuroi tirou um palito que estava espetado numa das sandes e começou a trincá-lo nervosamente.
-Gostava de saber o que descobriu nos últimos três anos. Já deve ter-se dado conta que estive, por assim dizer, ocupado.
Hyoumaru acedeu.
-Até agora não descobrimos nada de relevante. Tudo continua a apontar para que tenha sido tudo ordenado por Tyfar.
-Certo... Você sabe bem que não consigo acreditar nessa tese. A minha mãe, em vida, sempre a defendeu como uma deusa bondosa e justa.
Fez uma pequena pausa, fechou os olhos e continuou.
-Se eu pudesse voltar a Dreffel, nem que fosse só por pouco tempo, tenho a certeza de que ia esclarecer muita coisa. Raios... Se não fosse o facto de eu não poder atravessar a barreira por causa da punição...!
Sochin, que já começara a comer, engoliu e parou por um instante.
-O teu pai ainda é capaz de atravessar a barreira, certo? A punição só se aplicava às ninfas. Porque não lhe pedes que te leve até lá?
Hyoumaru levantou o sobrolho e fitou a rapariga, virando-se de costas para Kuroi, que gesticulava negativamente.
-Kuroi-kun, - disse, voltando-se novamente para ele - a tua amiga é bastante esperta... a ideia é boa. Porque não fazes isso?
-Está fora de questão! - Respondeu Kuroi, enervando-se ligeiramente. - O meu pai é a última pessoa a quem eu vou pedir ajuda. Vou chegar a Dreffel, mas à minha maneira.
-E como estás a pensar fazer isso? - Disse Makoto.
-Não sei, não faço a mínima ideia. A única coisa que me ocorre é arranjar um modo de levantar a restrição.
-Isso parece-me um beco sem saída...
-Quando se está num beco sem saída, o natural é dar-se a volta e ir-se por outro caminho. - Respondeu. - Hyoumaru-san, ainda tem aquela lista de todos os humanos vivos capazes de atravessar a barreira?
Hyoumaru acenou afirmativamente.
-Achas que o assassino era humano?
-Tenho quase a certeza. - Respondeu Kuroi. - Aliás, se não tivesse nunca teria vindo para este mundo. Sinto que era humano.
-Muito bem. - O homem levantou-se da poltrona onde estava sentado e abriu uma das gavetas de uma velha secretária que se encontrava a um canto e na qual nenhum deles tinha reparado. Tirou de lá um pequeno caderno de apontamentos antigo e voltou a fechá-la.
-Toma, - disse, entregando-o a Kuroi - espero que te seja útil.
Kuroi baixou ligeiramente a cabeça em sinal de agradecimento, terminou a sua sandes rapidamente e levantou-se.
-Muito obrigado. Agora, vamos andando.
-Mas ainda não acabei a minha sandes! - Indignou-se Makoto.
Mas Kuroi e Sochin já estavam à porta, apenas à sua espera.
-Bem... - Levantou-se com uma fatia de pão na boca, fez um gesto de agradecimento a Hyoumaru e correu para se lhes juntar, acabando de comer atrapalhadamente.
Quando os três saíram, finalmente, Hyoumaru voltou a atirar-se para a poltrona e suspirou.
-Aquele miúdo... - murmurou para consigo. - Incrível. Continua a odiar o Seishin e apesar disso, quando falo com ele parece que estou a falar com o pai. São mesmo parecidos em certos aspectos...
De repente olhou para a mesinha de centro e ficou sem fôlego. Sobre o tampo de madeira envernizada encontrava-se uma rosa azul acabada de colher.
"Oh não!", pensou, aflito. "Eles já não estão a salvo!"
De repente sentiu uma pontada nas costas e assim tombou sobre os joelhos, inanimado.

08 maio 2009

Capítulo III: Uma questão de honra

-Então, o que é que tinhas para fazer nesta cidade afinal? - Perguntou Makoto, enquanto caminhava lado a lado com Kuroi seguindo uma planta da cidade meio amachucada que lhes tinha sido oferecida no bar. Sochin ia atrás deles, muito calada.
Kuroi hesitou por um segundo.
-A última informação que recebi dizia que um companheiro do meu pai se mudou para esta cidade pouco antes de eu ter sido capturado. Fiz alguma investigação e descobri que ainda aqui vive, por isso é boa ideia ir falar com ele, principalmente porque está em posição para se manter ao corrente de todo o tipo de assuntos. - Respondeu. - Afinal, a máfia é a máfia...
-Queres dizer que o tipo com quem vais falar é um mafioso? - Perguntou Makoto, colocando-se à frente do amigo e obrigando-o a parar. - Mas o que é que tu queres com essa gente?
-Tem calma, rapaz! - Kuroi deu uma palmadinha no ombro de Makoto com um ar de troça. - O meu pai também faz parte da máfia e asseguro-te de que pelo menos os membros desta organização são completamente inofensivos. Eu próprio já fiz parte dela.
Makoto engoliu em seco.
-Não percebo como é que uma família da máfia pode ser inofensiva...
-Digamos que só foi formada para investigar o assassínio da minha mãe sem levantar suspeitas. Se bem que o meu pai parece ter um certo gosto em causar desacatos...
Dito isto o seu sorriso desvaneceu-se e fez uma expressão de aborrecimento.
Makoto percebeu que o amigo não estava com disposição para falar desse assunto e tentou desviar a conversa.
-Então, senpai... onde é que mora essa pessoa?
-Perto do centro da cidade e porque é que me estás a chamar senpai desde que nos levantámos? - Disse Kuroi, voltando-se para o outro com ar indignado.
-Porque, basicamente, ambos fazemos o mesmo. - respondeu com um sorriso aberto. - Eu estou a aprender a lutar, apesar de ainda não seja capaz de fazer nada de jeito...
-Seja... - disse Kuroi com o ar mais resignado do mundo.
-Não lhe ligues, ele às vezes tem ideias que ninguém consegue perceber... - Interrompeu Sochin.
-Eh...? Mas ela estava atrás de nós? - Admirou-se Kuroi, que se voltou para trás. - Nem dei por isso...
Sochin fez uma expressão ofendida e Makoto conteu um risinho.

***

Alguns minutos depois, encontravam-se a atravessar uma rua comprida com muito mau aspecto, e que por sinal não tinha saída.
-Acho que me perdi... - disse Kuroi, dando voltas ao mapa. - Mas porque raio é que esta cidade é tão parecida não importa como viremos o mapa?
"Que idiota... tinha de nos enfiar num beco, de todos os lugares para se estar perdido...", pensou Sochin para consigo. "Para a próxima espero que nos perca num centro comercial."
-Que estranho... - Começou Makoto.
-O que se passa, mano? - Perguntou Sochin, olhando para o irmão.
-Este sítio... não vos parece sinistro?
-Sinistro? Como assim? A mim parece-me um beco completamente normal... - Disse Sochin. - Frio, escuro e sem lojas.
-Não, ele tem razão... - Contrariou Kuroi. - Este sítio é esquisito. Parece que estamos a ser observados.
-Senpai, vamos sair daqui! - Disse Makoto. - Tenho um mau pressentimento!
-Não sejas medricas! Quem é que podia estar aqui assim tão terrível? - Disse a rapariga.
Vindo de cima, ouviram uma gargalhada sarcástica.
-Ponham-se a andar, mariquinhas! - Disse uma voz.
Tentaram ver de onde vinha a voz que parecia de um rapaz, mas era como se se estivesse a mover pelos telhados e não aparecesse em nenhum deles.
-Seja quem for, apareça! - Gritou Kuroi. Sochin abraçou o irmão.
-Bu.
Mesmo à sua frente encontrava-se agora um rapaz mais ou menos da sua altura, com o cabelo preto preso por um lenço e vestido de uma maneira no mínimo estranha. Tinha um sorriso arrogante e estava inclinado para a frente como se esperasse assustar alguém.
-Olha, olha... - disse por fim. - Saiu-me a sorte grande. Em vez de um ratinho, apanho logo três... e um deles é precisamente quem eu queria apanhar na ratoeira!
-Mas o que é que se passa com este anormal...? Aparece do nada e começa a falar em roedores... - Replicou Makoto.
-Cala-te! - Cortou ele. - Seishin, sabias que os teus adorados ex-companheiros não perderam tempo a mandar perseguir-te?
Levou a mão ao bolso e tirou de lá um papel amachucado.
-Neste momento meio mundo anda à tua procura, sabias?
Desembrulhou o papel. Era um recorte de jornal com uma notícia do desaparecimento de Kuroi. Cuspiu para o chão e riu-se como um maníaco.
-Sabes o que está aqui? Sabes? - Continuou. - Diz aqui que a Fighters Union está a oferecer um prémio de 25.000.000 Ari a quem tiver informações sobre ti... - E continuou a rir.
Ignorando-o, Kuroi voltou-se para Makoto e Sochin, apontando para o rapaz por cima do ombro sem se alterar.
-Não liguem ao Genji, ele não regula. - Disse.
Os dois irmãos ficaram a olhar especados.
-Tu conheces este anormal? - Perguntaram em coro.
Kuroi acenou com a cabeça.-Desde que éramos pequenos. Já estava admirado de ele não me vir chatear há tanto tempo...
-Conta-lhes a história toda, idiota! - Gritou Genji, que entretanto parara de rir. - Ou tens vergonha de admitir à frente de uns humanos que eu sou o teu maior rival?
-...De uns humanos?... - Makoto franziu o sobrolho. - E ele é o quê?
-Atrasado mental... - Respondeu Kuroi. - Para te considerar um rival devias ser ao menos capaz de empatar comigo.
Genji rangeu os dentes.
-Lá por isso até te ganho, agora mesmo! - Disse. - Ou tens medo?
Com um ar enfadado, Kuroi enterrou o chapéu na cabeça.
-Vocês os dois afastem-se. Isto não vai ser bonito.
Makoto e Sochin recuaram alguns passos.
"Para quem não gostava de lutar, ele cede depressa.", pensou Sochin, desdenhosa.
Kuroi avançou para Genji a correr e disparou um murro, mas o outro desapareceu no mesmo instante. Olhou rapidamente para trás e atirou um dos pés nessa direcção, inclinando o tronco para a frente. Logo Genji ressurgiu, atingido pelo pontapé, e foi atirado para o chão.
-Devias parar de repetir esse truque. - Disse Kuroi, voltando a equilibrar-se nos dois pés. - Estás a ficar previsível.
-Estava só a aquecer. - Respondeu o outro. Depois, refazendo-se do impacto, levantou-se, agarrado à barriga.
"Aquela maneira de desaparecer... Aquela é a técnica do Kuroi-senpai!", pensou Makoto, engolindo em seco e observando atentamente o desenrolar dos acontecimentos."Mas mais importante... como é que eles conseguem fazer aquilo?"
Kuroi levantou o olhar, calmo, para o rosto de Genji, que acabara de se levantar. Caminhou lentamente para ele, determinado a pôr fim à luta o mais depressa possível.
Genji encostou-se à parede para se manter de pé. Já tinha a respiração ofegante e parecia confuso.
Kuroi aproximou-se e agarrou a gola da sua t-shirt. Este sorriu maliciosamente, agarrou os seus braços e atirou-o contra a parede, dando-lhe um murro.
-Senpai! - Gritou Makoto, abraçando Sochin com força para que ela parasse de tremer.
-Oh, já me tinha esquecido de vocês os dois... - Replicou Genji. - E agora, o que faço com vocês? Acho que não vão ser precisos...
Tirou da mala que trazia um pequeno punhal e girou-o nas mãos despreocupadamente, caminhando para os dois irmãos aterrorizados.
Sochin deu um guincho.
No instante seguinte a cabeça de Genji foi atingida por um pontapé desferido com toda a força.
Kuroi girou os pés no ar, apoiou-se nas mãos e voltou ao chão. Deixara Genji atordoado e sem se mexer.
Os dois irmãos suspiraram de alívio, Sochin limpando uma lágrima de terror que lhe surgira no canto do olho.
-Não nos assustes desta maneira, senpai... - Disse o rapaz.
Kuroi arrancou o punhal da mão de Genji e guardou-o consigo.
-É melhor ser eu a guardar isto. - Depois, agachou-se junto dele, cerrando um punho. - E da próxima vez que tiveres a ideia infeliz de tentar um golpe sujo como envolver nisto humanos que não têm nada a ver com os nossos assuntos, acredita que não vou ser tão condescendente.
Voltou a levantar-se e virou-se para Sochin e Makoto.
-O que queres dizer com "humanos", senpai? - Perguntou Makoto, olhando-o nos olhos.
Kuroi sorriu com o ar mais natural do mundo.
-Então, parece que me esqueci mesmo de vos contar... Bem, vamos pôr as coisas deste modo: eu não sou exactamente humano... e o mesmo se aplica a este idiota.
Genji soltou um grunhido.
-C-como assim? - Indignou-se Makoto, incrédulo. - Quem... o que são vocês?
Kuroi tirou o chapéu e coçou a cabeça, pensando na melhor maneira de responder.
-Bom, para resumir... Somos aquilo a que vocês humanos normalmente chamam... monstros.
Ao ver as expressões perplexas dos dois, não conseguiu evitar uma pequena gargalhada. Voltou a colocar o chapéu e foi caminhando à frente para a saída do beco.
-Mas não totalmente. Eu, por exemplo, sou meio humano. - Continuou, enquanto andava. - Venham, explico-vos quando chegarmos.
Os dois irmãos entreolharam-se, meio desconfiados, largaram-se e seguiram-no com passadas tímidas.
-E quanto à recompensa...? - Perguntou Sochin, tentando mudar o assunto. - O que vais fazer?
-Nada. - Respondeu Kuroi. - Se por acaso alguém me reconhecer e se intrometer no meu caminho, vai sentir na pele o porquê do valor dessa recompensa.