07 julho 2009

Capítulo VI: A primeira luz

Era grande o rebuliço que se fazia sentir em Nightfall City. A morte do gerente do Hotel Norte havia causado uma onda de pânico por toda a cidade e obrigara à movimentação de inúmeras forças policiais para investigar o sucedido. No meio de uma das ruas mais movimentadas, misturados com o resto da população, encontravam-se Kuroi, Makoto e Sochin.
-Podias ter arranjado um sítio mais perto daqui para estacionar o carro. - reclamava o mais velho.
-Já experimentaste procurar um lugar nesta cidade perto dos hotéis? Digo-te, senpai, é impossível! - Argumentava Makoto.
-Parem de discutir, vocês os dois! Parecem dois miúdos! - Gritou Sochin.
-O que é que lhe deu tão de repente? - Sussurrou Kuroi ao ouvido do amigo.
-Não ligues. Ela está assim porque viemos à maior cidade comercial do país e não passámos uma tarde num shopping a pagar-lhe coisas. Isto passa-lhe. - Respondeu Makoto, afastando dos olhos o cabelo claro. - Olha, está ali o carro!
Apontou para o jipe descapotável estacionado perto do pequeno jardim à sua frente e correu nessa direcção.
-Mano, espera! - Dizia a rapariga, correndo atrás dele. Kuroi deixou-se ficar mais atrás, remoendo para consigo.
O ardor que sentia no seu braço não o deixava esquecer da mensagem ameaçadora que Mera lhe deixara antes de desaparecer. Estava, de facto, determinada a matar qualquer pessoa que se relacionasse com ele.
Cerrou e apertou com força um punho e juntou-se aos dois irmãos dentro do carro.
-Sabes para onde temos de ir agora, Makoto? - Perguntou.
-Para... Montville, certo? - Respondeu o rapaz, voltando-se para o amigo no banco atrás de si.
-Montville... mas mano, isso é onde a mãe e o pai estão a trabalhar agora! - Exclamou Sochin com um sorriso surpreendido.
-A sério? Isso é fixe. - Comentou Kuroi. - Assim vocês podem passar algum tempo com os vossos pais em segurança enquanto eu eu trato dos meus assuntos por lá.
-E tu? - Inquiriu Makoto.
-Eu?
-Tu... Senpai, tu nunca falas com o teu pai?
Kuroi baixou o olhar timidamente.
-Não. - Disse baixinho. - Nunca falamos.
-Mas porquê? - Insistiu o mais novo - Não percebo porque é que o odeias tanto.
-Porque ele me deixou sozinho com a minha mãe quando eu era pequeno para voltar para este mundo. Se ele estivesse em casa naquele dia, talvez a minha mãe não... estivesse morta. E além do mais ele é um verdadeiro sacana. Não consegues falar com ele a sério, é um irresponsável que não respeita nada nem ninguém e que venderia a alma por dinheiro e álcool. Acho que ninguém gostaria de o ter como pai.
Sochin, que até então se mantivera em silêncio, inclinou-se para trás e fitou uma nesga de céu azul de onde se recortavam dezenas de prédios gigentescos.
-Presumo que não queiras falar disto. Mano... vamos andando, sim? Estou farta deste lugar. - Disse, com um tom de voz suave.
O carro começou a andar devagar e acelerou passados alguns segundos. Kuroi baixou a aba do chapéu para os olhos e deixou-se dormir.

***

Filho... filho, consegues ouvir-me? - Chamava uma voz doce e límpida.
-Mãe...
Kuroi encontrava-se numa sala que conhecia muito bem dos seus sonhos e do seu próprio passado.
Estava, sem se ter dado conta, sentado no chão da sala da sua antiga casa e, mesmo à sua frente, via a sua mãe, que lhe estendia uma mão com um sorriso gentil. As roupas que ambos usavam, a posição das cadeiras, tudo estava exactamente como no momento em que Kuroi falara com a sua mãe pela última vez.
Ergueu a mão esquerda para agarrar a da mãe, mas quando os dois se tocaram ao de leve a imagem da ninfa dissolveu-se no ar com um clarão e a sua queimadura começou a arder de maneira insuportável. Kuroi agarrou-se ao braço desesperadamente enquanto via a imagem da sua casa desaparecer à sua frente mergulhada na mais completa escuridão. A voz de Mera ecoava nos seus ouvidos.
"Um a um, todos vão morrer!"
Soltou um grito de angústia e desespero e sentiu a consciência a esvair-se lentamente.

***

-Kuroi-kun, o que se passa? Acorda!!!
Kuroi abriu os olhos de repente numa expressão de choque e respirou fundo enquanto voltava a si. Tinha suores frios por todo o corpo e tremiam-lhe as mãos.
Puxou lentamente o chapéu dos olhos e olhou em volta.
-O que aconteceu? - Balbuciou.
-Estavas a ter um pesadelo, acho eu. - Respondeu Makoto.
-Então foi isso... um pesadelo... - Suspirou tristemente. - Ainda estamos longe?
-É mesmo ali à frente. - Respondeu o rapaz, apontando para as primeiras construções que se viam no horizonte. - Queres parar um bocado?
-Não, deixa. Já estou melhor. Agora o importante é encontrar a pessoa que está na lista.
Tirou do bolso do casaco o pequeno caderno e folheou-o com uma mão sobre os joelhos, agarrando o chapéu com a outra. Sochin inclinou-se um pouco para o lado para espreitar.
-Hey... vocês conhecem os habitantes da cidade? - Perguntou.
-Poucos... - Respondeu Sochin. - Como se chama a pessoa com quem vais tentar falar?
-É uma tal... Yuzori Ame.
Makoto voltou-se para trás e travou a fundo, quase perdendo o controlo do carro.
-Essa pessoa está na tua lista? De certeza? - Perguntou, indignado.
Sochin continuava a olhar para a lista, fitando o nome que Kuroi acabara de ler.
-Está... - Confirmou Kuroi - Conhecem-na?
-É a nossa mãe! - Exclamou Sochin. - Deve haver algum engano!
-Bom... eu tenho a certeza que esta lista está certa. - Respondeu o rapaz.
Makoto respirou fundo.
-Ela nunca nos falou de nada disso. Mas só podemos ter a certeza falando com ela, certo?
Voltando a pegar no volante, arrancou novamente com o jipe para voltar à estrada.
Algum tempo depois já haviam passado a entrada de Montville e procuravam atentamente o laboratório de pesquisa da cidade.
Este estava no topo de um dos montes onde a cidade se localizava. Era um edifício moderno e que saltava à vista pela altitude a que se encontrava e pelo grande letreiro visível sobre a porta de entrada envidraçada.
Subiram pela estrada que percorria a encosta e pararam junto do edifício.
-Acabei de me lembrar... - Disse Makoto, hesitando em agarrar no puxador - que a mãe e o pai não sabem que estamos aqui. Será que não há problema?
-Hum... Não deve fazer mal. Despacha-te e abre a porta! - Disse Sochin, sorrindo impacientemente.
Sem fazer barulho a porta abriu-se de par em par e os três entraram.
O corredor principal do laboratório era comprido e largo e de ambos os lados viam-se portas com pequenas placas metálicas.
Os dois irmãos entreolharam-se e apressaram o passo em direcção a uma porta quase no fundo do corredor. Kuroi, que não os vira recomeçarem a andar, desapareceu e reapareceu junto deles a meio do caminho e os três aproximaram-se da porta.
Na placa metálica podia ler-se "Gabinete de biologia: Dr. Kime e Dr.ª Yuzori".
Kuroi bateu levemente à porta e entrou.
No interior do gabinete encontrava-se uma mulher alta e loira, com o cabelo pelos ombros apanhado num rabo-de-cavalo e que usava um par de óculos sem aro. Trazia uma bata branca comprida e estava sentada junto a uma mesa, tirando apontamentos.
-Desculpe... - Interrompeu - É a Dr.ª Yuzori Ame?
A mulher voltou-se e acenou afirmativamente com um sorriso amável.
-O meu nome é Kuroi. Eu precisava de falar consig...
-Mãe! - Gritou sochin de repente, escancarando a porta e correndo para os braços de Ame. Esta ficou surpreendida de início, mas depois pousou os óculos em cima da mesa e abraçou a filha. Makoto assomou também à porta e juntou-se às duas.
-O que é que estão a fazer aqui, vocês os dois? - Perguntou a mãe dos irmãos, entre risos.
-Viemos com ele. - Respondeu Makoto, apontando para Kuroi. - Ele precisa de falar contigo.
Ame assentiu e levantou Sochin do seu colo, virando-se novamente para Kuroi.
-Eu... - começou o rapaz - ...preciso de saber se é verdade que a senhora consegue cruzar a barreira para Dreffel.
-Dreffel? - Perguntou a mulher, atrapalhada. - O que é isso?
O rapaz suspirou. "Não sabe de nada", disse para consigo.
-Recebi a informação de que a senhora consegue criar uma falha na barreira entre este mundo e outro chamado Dreffel. Venho aqui perguntar-lhe isto porque preciso que o faça.
Ame parecia afectada.
-Diz-me, essa barreira...
-Acha que já esteve do outro lado sem saber? - Interrompeu Kuroi.
-Como é que sabes? - Perguntou a mulher, cada vez mais assombrada.
-Porque é muito comum acontecer com humanos que possuam essa capacidade, especialmente enquanto crianças. Desaparecem deste mundo por algum tempo e quando reaparecem dizem que não se lembram de nada devido ao choque. Foi isto que lhe aconteceu?
Ame voltou-se para os filhos.
-Quem é este rapaz afinal? Como é que ele sabe isto tudo?
-É natural, afinal ele nasceu em Dreffel. Não te preocupes, mãe. Ele é nosso amigo e nós sabemos porque é que ele te está a pedir isto. - Disse Makoto.
A mulher suspirou.
-É verdade, eu já estive do outro lado quando era criança. Mas não sei abrir a barreira novamente, lamento.
Kuroi baixou o olhar. A sombra da aba do chapéu encobria a sua expressão.
-Estou a pedir-lhe, tente lembrar-se, por favor... Não tenho maneira de chegar a Dreffel por mim próprio. - Depois, levantando o olhar para Ame, continuou. - A minha mãe foi morta e tenho de lá ir para saber quem a assassinou!
Ame acenou compreensivamente.
-Kuroi, não posso prometer nada. Mas prometo que vou dar o meu melhor. Falando de outro assunto... vocês já têm onde passar a noite? Eu e o meu marido temos uma cama vaga em casa.
Sochin voltou-se imediatamente para a mãe.
-Podemos ficar nela, mãe? eu e o mano?
Ame sorriu para os filhos.
-Está bem, querida. E o vosso amigo?
-Eu arranjo um quarto numa pensão, não precisa de se preocupar. - Disse Kuroi. - Até será melhor, vocês não estão em segurança comigo por perto muito tempo.
-Referes-te à rapariga e ao brutamontes? - Perguntou Makoto.
-Esperem aí! - exclamou a mulher. - "Não estão em segurança"? Mas em que tipo de perigos é que vocês se andam a meter? E de quem é que estão a falar?
"Já falei demais...", pensou Kuroi, engolindo em seco.
-Mas que surpresa! Não esperava ver-vos aqui!
Um homem um pouco calvo, de cabelo castanho e bigode e uma expressão sorridente surgiu à porta.
-Pai! - Disse Sochin, aliviada. - Que susto! Não contava que aparecesses assim de repente!
Ora essa... ainda trabalho neste gabinete!
O Dr. Kime deu alguns passos em frente, pendurando o casaco que trazia por cima da bata num cabide escondido atrás da porta, deu um beijo na face da filha, fez uma festa na cabeça de Makoto que o despenteou e aproximou-se curiosamente de Kuroi.
-Eu... o meu nome é Seishin Kuroi. Sou um amigo do Makoto e da Sochin. É um prazer conhecê-lo, doutor. - Reagiu o rapaz, estendendo a mão.
O pai dos dois irmãos cumprimentou Kuroi, olhando-o fixamente nos olhos. Pigarreou e voltou-se para o filho.
-Makoto, o teu amigo não parece mesmo o miúdo da Fighters Union?
Sochin suspirou e aproximou-se de Kuroi.
-Adivinha de onde vem o mau gosto do meu irmão... - Sussurrou. - Tem cuidado, se te reconhece ainda te acaba a pedir autógrafos.
-E... sim, são muito parecidos... - Respondeu Makoto, forçando um sorriso. Kuroi sentiu um arrepio na espinha e foi baixando discretamente a aba do chapéu sobre os olhos.

***

-Bom... boa noite então. - Despediu-se Kuroi.
-Boa noite, senpai. Até amanhã.
Makoto fechou cuidadosamente a porta da casa dos seus pais.
Kuroi agarrou o chapéu na cabeça para que não caísse e olhou para o céu avermelhado de final de tarde. Preparava-se para seguir para a estalagem quando sentiu o vento mudar.
-Sinto que se avizinha uma grande tempestade... - Murmurou para si próprio, e seguiu caminho, apressando o passo.

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