14 dezembro 2011

Capítulo XIX: Travessia

Levou uma mão à testa lentamente e sentiu-se zonzo, fraco. Pesavam-lhe as pálpebras, mas aos poucos foi abrindo os olhos. Estava na casa de Luke, reconhecia as paredes sombrias e o quarto apertado quase sem mobília.
-Oh, está a acordar!
Makoto correu a sentar-se num banco junto ao amigo, sorrindo de alívio. Sochin e Ken'ichi não tardaram também a surgir pela ombreira sem porta da divisão. Kuroi sentou-se na cama, surpreso por estarem ali todos reunidos, e tentou dizer algo, mas só lhe ocorreu uma pergunta:
-Quanto tempo é que estive assim?
-Umas duas semanas, talvez mais um par de dias. - Respondeu prontamente o loiro. - Tivemos sorte em o d'Evans ter aparecido...
Recordando-se dos acontecimentos antes de perder os sentidos, o rapaz levantou o olhar em busca do feiticeiro. Este estava de pé, com os braços cruzados e encostado a uma parede um pouco atrás dos outros, e quando reparou que Kuroi o fitava desviou o olhar.
-Tiveram foi sorte de as feridas não o matarem. - Disse, em voz grave, descruzando os braços e avançando um passo. - Seishin, estas duas semanas foram o tempo que tive de te manter sedado. Se te deixasse andar por aí, mesmo sem fazer esforço, a recuperação ia durar no mínimo um mês.
Kuroi acenou com a cabeça em sinal de compreensão.
-Peço desculpa por tudo isto...
-Não peças, quase de certeza que o voltarias a fazer numa situação parecida. - Comentou Luke, revirando os olhos. - De qualquer modo, já deves conseguir andar. Deves ter assuntos para tratar, não? Duas semanas é muito tempo.
Kuroi destapou o resto do corpo com os lençóis e testou se já conseguia apoiar-se antes de se levantar. Tirou o casaco pendurado na cabeceira da cama e vestiu-o, surpreendido por já não sentir nada.
-Para ser franco, vamos agora para Leste, passando por Sayden. Estava a planear pormo-nos a caminho assim que recuperasse.
-Na direcção da Capital?
-Creio que o melhor será  partir o quanto antes. - Disse o rapaz de cabelo castanho, acenando afirmativamente à pergunta de Luke. Olhou depois por uma janela para ter uma ideia do tempo. - Ainda é de manhã. Vamos voltar à estalagem, arrumar aquilo de que precisamos e seguimos depois de comermos alguma coisa.
Acabando de se calçar, Kuroi voltou a agradecer a Luke e ele e os amigos saíram na direcção da estalagem.
-É verdade, Kuroi... - Começou Ken'ichi.
-Que se passa?
-Temos um problema. Quanto dinheiro é que trazíamos para pagar a estalagem, mesmo?
Kuroi levou a mão à testa.
-Não dava nem para uma semana...
-O que é que vamos fazer, então? - Perguntou Makoto.
-Não sei, ainda precisamos de guardar algum dinheiro para comida e estadias até chegarmos a Shinai... Ou, pelo menos, até Sayden...
-Duvido que nos deixem ficar a dever. - Suspirou Sochin. - Por este andar vamos ter de trabalhar para pagar a dívida...
Os quatro entraram na estalagem deprimidos, sem uma palavra. Kuroi subiu as escadas para o primeiro andar, seguido pelos outros. De repente, uma mulher que bordava junto a uma mesinha ao fundo do corredor dos quartos, perto de uma janela, retirou da gaveta da mesinha um envelope e dirigiu-se a ele.
-És tu quem se chama Seishin Kuroi?
O rapaz pestanejou, olhando para a mulher com estranheza. Como é que ela sabia o seu nome? Assentiu.
-Há poucos dias deixaram aqui este envelope para te entregar. Disseram-me que não o desse a mais ninguém, por isso tenho estado à espera que voltasses ao quarto.
O rapaz recebeu nas mãos o envelope, intrigado. Era um embrulho com algum volume e peso.
-Quem?
A mulher encolheu os ombros.
-Não consegui reconhecer quem era, tinha um capuz e estava escuro quando veio cá. Era uma rapariga, acho que não muito alta e não devia ter mais de dezoito anos, pela figura.
O mais velho desviou o olhar na direcção do meio-irmão. Este cravara ligeiramente os dedos no papel do envelope ao ouvir as palavras da criada.
-Sabe para onde é que ela foi, depois?
A única resposta que obtiveram foi um acenar de cabeça negativo.
-Makoto, Sochin, reúnam as vossas coisas. - Disse Kuroi, voltando-se para eles com um tom de desconsolo. - Vou abrir o envelope no quarto, venham ter connosco depois.
Os dois irmãos dirigiram-se ao quarto que partilhavam, enquanto que Kuroi e Ken'ichi caminharam lentamente para o seu, fechando atrás de si a porta.
-O que achas que é? - Perguntou o mais velho.
Kuroi não respondeu. Rasgou cuidadosamente o topo do envelope e despejou o conteúdo sobre a cama feita e abafou uma exclamação. Um saco de moedas, bem aconchegado para não tilintar, rolou sobre a colcha e entreabriu-se. A cobri-lo ligeiramente estava uma folha de papel dobrada em quatro que parecia ter sido respingada em alguns pontos e estava agora seca.
-Dinheiro e uma carta...? - Murmurou. Voltou a juntar as moedas dentro do saco e abriu hesitantemente o papel que vinha junto.
Leu o que estava escrito em voz alta, mas que não se pudesse ouvir no exterior do quarto.

"Kuroi,

Não consigo encontrar uma forma mais adequada para te dizer isto depois do que aconteceu. Sou a única responsável pelo estado em que te encontras enquanto escrevo estas palavras, e talvez não sejas sequer capaz de imaginar o quanto o lamento agora. Não posso apagar o mal que já fiz, mas espero que acredites que quero mudar daqui para a frente. Não posso também voltar para a Terra até encontrar uma forma de silenciar o Edgar, mas tentar sequer seria cobardia. Espero que aceites o dinheiro que te deixo com esta carta. Deve ser suficiente para pagar a vossa estadia até recuperares e para conseguirem fazer a viagem até Sayden. É para lá que vou neste momento, mas peço-te que partas com calma e apenas quando estiveres bem. Tenho de por a cabeça em ordem antes de nos voltarmos a encontrar, mas prometo que a próxima vez será muito diferente das últimas. Para mim, está na hora de acabar com todas estas lutas entre nós.

Até lá,

Mera."

Ken'ichi, que escutara o conteúdo da carta atentamente, fitou o tecto.
-O que é que pensas fazer?
-Não podemos recusar o dinheiro. - Constatou Kuroi com um sorriso triste, levando depois a mão ao antebraço esquerdo, onde a queimadura estava escondida por ligaduras. - E eu sabia que ainda a conhecia bem. Que tudo isto... - Suspirou antes de continuar. - Tudo isto tinha de ter algo por trás. De qualquer forma, ela muito provavelmente vai procurar asilo em Sayden com o Hamed. Talvez ainda a encontremos quando chegarmos lá.
-Hamed...?
Entretanto, Makoto e Sochin bateram à porta. Estavam já carregados com os seus sacos e prontos para partir.
-Como vamos fazer em relação ao dinheiro então, Senpai? - Perguntou o mais novo, entrando pelo quarto.
Ken'ichi apontou-lhe discretamente o saco de moedas em cima da cama. Este arregalou os olhos, surpreendido.
-De onde é que apareceu esse dinheiro?
-Parece que a Mera o deixou num envelope para mim antes de sair da cidade. - Respondeu o Sucessor, tão calmo quanto conseguiu. - Venham, quero seguir viagem antes que fique muito calor. Entre Hodes e Sayden há um trecho de deserto que ainda custa um bocado a atravessar.

***

-Senpai, não estavas com pressa? - Chamou Makoto, colocando a chave do Jipe na ignição. No banco de trás, Ken'ichi espreitava o irmão com curiosidade. Este estava de pé, segurando a porta do carro aberta e olhando para a saída da cidade como se esperasse algo.
-Do que é que estás à espera, maninho? - Perguntou, esboçando um sorriso de gozo.
Kuroi voltou-se novamente para eles, pestanejou e sorriu, embaraçado.
-De nada, estava só distraído a pensar numa coisa! - Disse com desenvoltura, entrando e sentando-se ao lado do mecânico. - Sobe a capota e vamos.
"Não sei muito bem do que é que estava à espera.", pensou para consigo, de braços cruzados e afundando-se de pernas afastadas no banco traseiro. "Mesmo depois de me ter salvo a vida, qualquer um iria perceber que não é o género do d'Evans ir assim despedir-se de um grupo de estranhos. Ainda assim é pena... Ele no fundo parecia ser boa pessoa apesar do feitio, era interessante voltar a encontrá-lo um dia destes."
Seguiram viagem. Ao passarem pelo pequeno bosque onde haviam treinado duas semanas antes, Kuroi não conseguiu evitar um sorriso e Makoto um calafrio. Poucos minutos depois, as árvores começaram a aparecer com menos frequência até chegarem a deserto aberto.
Mesmo com a capota do jipe colocada, o calor fazia-se sentir de forma cada vez mais insuportável. Após cerca de uma hora de viagem, ouviu-se um ruído vindo do motor. Makoto travou imediatamente o carro, alarmado.
-Que barulho foi este? - Perguntou Sochin, virando-se para o irmão que abría a porta do seu lado para verificar o que se passava.
-É o que vou tentar perceber agora, mas tenho um mau pressentimento...
-Makoto, apanha. - Disse Kuroi, atirando-lhe para as mãos o seu chapéu, que tirara do bolso. - Não é boa ideia sair do carro com a cabeça a descoberto.
Makoto assentiu e colocou o chapéu antes de sair do carro. Ao abrir o capot, confirmou as suas suspeitas.
-O motor ficou sem água? - Arriscou Ken'ichi, debruçando-se sobre um dos bancos da frente.
-Parece que não tinha suficiente e o calor evaporou quase toda a que havia. - Respondeu o loiro, suspirando. - Não vai dar bom resultado se continuarmos a andar com este calor, mais um pouco e sobreaquece.
-A água que trouxemos para beber durante a viagem não serve... É muito pouca, morreríamos à sede se a gastássemos no motor... - Constatou o rapaz de cabelo castanho, tentando pensar numa solução.
-E não estaríamos em muito melhores condições se fôssemos buscar mais água a Hodes a pé. Acho que só nos resta esperar que anoiteça e então voltar, as noites no deserto são por norma bastante frias e o carro deve conseguir andar. - Respondeu o mais novo. - Ken'ichi-san, o que dizes?
Ken'ichi assentiu.
-Em princípio não deve haver problema em voltar durante a noite, mas é realmente aborrecido esperar aqui até que anoiteça... Bem, não temos escolha. Vamos ter de acampar dentro do carro até escurecer.
Os mais novos acenaram, desconsolados. Kuroi não era muito afectado pelo calor, mas também não se sentia satisfeito com a ideia.

***

Apenas uma hora havia passado, e os quatro já se sentiam incapazes de suportar o calor.
-Quanto mais tempo é que vamos ter de aguentar aqui? - Perguntou Makoto, limpando da testa o suor com o antebraço. - Isto é mais duro do que eu imaginei...
Kuroi ergueu a cabeça sobre os braços cruzados, fitando o horizonte que haviam deixado para trás. Acima das dunas parecia levantar-se uma brisa quente, e com ela uma fina nuvem de areia.
De repente, pestanejou para ter a certeza de que os seus olhos não o enganavam. Um vulto envolto numa capa, vindo também ele da direcção de Hodes, surgiu por entre as dunas e aproximava-se deles num passo relativamente apressado.
-Hey, vocês também estão a ver, ali ao fundo...?
-Uma pessoa a pé, no meio deste deserto?! Como é possível? - Perguntou Ken'ichi, estupefacto.
A pouco e pouco, a figura tornou-se mais perceptível à medida que se aproximava do carro. Kuroi reconheceu de imediato a capa negra com o capuz colocado, o brasão sobre o ombro direito e o bastão em forma de lança que carregava às costas.
-D'Evans!! - Exclamou, abrindo a porta do seu lado e saindo do carro sem se importar com o calor. - O que é que estás aqui a fazer?
Luke ergueu uma mão para indicar que o ouvira, mas seguiu em silêncio até junto do carro.
-O que é que estão a fazer aqui parados? Este sítio não é o mais agradável para banhos de sol. - Perguntou, juntando-se a eles.
-Ficámos sem água, estávamos à espera do anoitecer para voltar a Hodes. - Respondeu Ken'ichi do banco de trás, com um ar enfadado.
-E tu, o que é que estás a fazer a pé pelo deserto? - Perguntou Kuroi, ainda surpreso.
-Eu? Tive a sensação de que algo do género vos ia acontecer mais tarde ou mais cedo. - Respondeu o feiticeiro, desviando o olhar com o habitual desinteresse e cruzando os braços. - Além disso, tenho uns assuntos para resolver fora da cidade, e vocês vão na mesma direcção que eu. Nada de urgente, mas como não acho que um grupo como vocês possa sobreviver muito tempo sem a ajuda de um especialista em cura decidi tentar apanhar-vos.
-Mas que...! - Exclamou Makoto, furioso, antes de a irmã o agarrar pela manga da camisa e o puxar de volta para o banco.
-Nii-chan...
-Bem, parece que nos apanhaste em má altura... - Disse Kuroi, tentando ignorar a forma de ser de Luke. - Como vês, não podemos seguir viagem.
-Se o vosso problema é água, o meu cantil deve chegar para esse bicho estranho em que vocês viajam. - Respondeu o outro, tirando de uma mala à tiracole um cantil de tamanho considerável e entregando-o ao rapaz de cabelo castanho. -Eu posso convocar toda a água de que precise em troca de alguma energia, por isso não me faz grande diferença.
-Nem sei como agradecer, sem isto tínhamos de ficar aqui até de noite... - Começou Kuroi, parando abruptamente ao ver Luke seguir caminho a pé com as mãos enfiadas nos bolsos, indiferente. - Hey, onde é que vais?!
-Guarda os agradecimentos para quem precisa deles, Seishin. Eu vou seguir viagem por mim.
-Porque é que não vens connosco? Com o carro a funcionar chegamos pouco depois de anoitecer! - Sugeriu Ken'ichi, levantando-se para ajudar Kuroi a colocar a água no motor.
-Porque o facto de eu ir na mesma direcção do vosso grupo e de poder ajudar-vos não significa que me vá juntar a vocês. Os nossos objectivos são diferentes. - Respondeu o rapaz de cabelo azul-escuro, seguindo o seu caminho sem hesitação.
Makoto suspirou.
-Se é assim, vamos. Já perdemos tempo de sobra neste deserto.
Kuroi assentiu, disfarçando também ele um suspiro.
Os quatro retomaram os seus lugares no carro e seguiram viagem, desejosos de chegar a um local mais fresco.
-De certeza que ele vai ficar bem? - Desabafou Sochin, deitando a cabeça em cima dos braços sobre o tablier.
-Não te preocupes. - Respondeu Makoto. - Ele tem toda a água que quiser e uma arma ainda mais importante, a teimosia.
Kuroi abafou um riso ao ouvir o amigo.
-Ainda assim, há limites até para se ser cabeça-dura... - Constatou Ken'ichi. - Nem faço ideia de quanto tempo ele vai demorar a alcançar-nos outra vez...
-Hey, Makoto... - Chamou-o Kuroi, pensativo. - Ainda não avançámos muito, talvez não faça mal se...
O rapaz assentiu, percebendo o que o amigo lhe quis dizer, e travou o carro.
A brisa continuou a erguer-se e, com ela, a areia leve. Muito lentamente, o rasto dos pneus do carro começava a esbater-se atrás deles. Cerca de 20 minutos passaram até que voltaram a avistar o vulto do feiticeiro por entre as dunas, aproximando-se deles.
-Outra vez encalhados? - Perguntou, ao chegar mais próximo do grupo.
Makoto acenou negativamente com a cabeça.
-Estou farto de conduzir com alguém a pé atrás de mim. Se insistes assim tanto em ir a pé, força. Mas nós não vamos voltar a passar à frente!
-Como queiram. Vemo-nos em Sayden.
E mais uma vez o rapaz seguiu, aparentemente indiferente, voltando-lhes as costas.
O loiro recostou-se no banco do condutor e cruzou os braços, vendo-o continuar o seu caminho à medida que o vento se tornava mais forte.
Pouco mais de 150 metros adiante, Luke estacou e voltou-se para trás, com uma expressão contrariada estampada no rosto, e suspirou profundamente antes de gritar:
-ESTÁ BEM, EU VOU COM VOCÊS!!

***

Ao cair da noite, o clima pesado que se instalara entre todos desde que Luke se juntara ao grupo dera de novo lugar ao ambiente mais descontraído que tinham conseguido criar com todo o calor que sentiam. Este, apesar de calado a maior parte do tempo, lançava por vezes um olhar em resposta ou uma frase vaga. Foi apenas quando as luzes do interior de uma enorme muralha rodeada por tendas de vários tamanhos se começaram a avistar no horizonte que, sentindo-se mais à vontade, tentou um princípio de conversa.
-Ainda não percebi algo...
Kuroi, que se apertara com Ken'ichi no banco de trás para caber mais um, sobressaltou-se sem tempo para disfarçar a surpresa ao ouvi-lo falar tão de repente e sem ser interpelado.
-O quê? - Perguntou Ken'ichi, tentando dar tempo ao irmão de se recompor da surpresa.
-Afinal... Que raio de animal é este "carro" em que estamos montados? Rosna enquanto caminha, abre a boca quando lhe mandam e tem uma carapaça que parece de metal mas as costas parecem bancos... Nunca vi nada parecido, é alguma espécie da Terra?
Makoto e Sochin, nos bancos da frente, rebentaram a rir ao ouvir estas palavras, e o rapaz teve de se conter para não perder o controlo da direcção.
-O que foi? Disse algo assim tão engraçado? - Reclamou o feiticeiro, irritado com a reacção de ambos.
-Uh, d'Evans... - Disse Kuroi, tentando não perder tanto a compostura como os dois irmãos mas achando piada à situação. - Na verdade, um carro é uma máquina. É construído por humanos para viagens de longa distância e o barulho que parece um animal a rosnar vem do motor. É bastante estranho, eu sei, mas não é nenhum animal.
-É verdade, Kuroi, não me contaste quando éramos miúdos que reagiste de forma parecida quando viste um automóvel pela primeira vez? - Perguntou Ken'ichi com um sorriso de troça, recostando-se no seu banco com os braços atrás da cabeça.
-Tinhas de te lembrar disso, Ken! - Respondeu o rapaz de cabelo castanho, sorrindo embaraçado. - Foi quando tinha acabado de chegar à Terra e ainda estava um pouco perdido com tudo...
-Heh, pergunto-me se haverá aqui em Dreffel alguma coisa inesperada para um humano! Além de pessoas com um aspecto invulgar e poderes mágicos, é claro.
Sochin acenou, entusiasmada.
-Vocês vieram de Kyrial, certo? - Perguntou Luke. - Então ainda têm muito que ver só nesta Nação. Os lugares onde estiveram até agora não passam de periferia!
Kuroi concordou.
-Sayden é uma cidade relativamente isolada devido ao caminho que é preciso fazer para lá chegar, mas vai ter bem mais para ver do que Kyrial e Hodes. Só aqui vim uma vez e não consegui visitar a cidade toda, mas com um pouco de sorte acho que sei quem nos pode ajudar por estes lados!
-E já conheces mais deste sítio do que eu. - Acrescentou o rapaz de cabelo azul-escuro. - Já viajei um pouco por toda a Nação de Suderion, mas passei por outro caminho antes de me instalar em Hodes.
-Então não és de lá? - Perguntou Kuroi, curioso.
Luke acenou negativamente com a cabeça.
-Não nasci neste país.
Antes que pudessem perguntar mais alguma coisa, Makoto parou o jipe junto às muralhas da cidade.
-Senpai, como fazemos agora?
-O melhor será deixar o carro aqui, talvez. - Respondeu o Sucessor. - É tarde, mas se bem me lembro esta cidade tem um templo activo cujos guardiães dão assistência a viajantes. Com um pouco de sorte, pode ser que eles tenham um sítio onde possamos passar a noite.
-Wow, está a arrefecer. - Disse Ken'ichi, tomando de repente consciência do quanto a temperatura havia mudado com o anoitecer. - É melhor irmos tratar disso rapidamente.
Os cinco saíram do carro e caminharam até ao interior da muralha. A vista do interior da cidade era impressionante; ruas largas e estreitas delineadas por fileiras de casas de pedra branca talhada entrecruzavam-se em redor de um oásis, ao fundo, contornado por uma escadaria em pedra. Ao longo dessa escadaria estendiam-se tochas que iluminavam o caminho até ao edifício que se erguia por detrás do oásis, de aspecto antigo, que aparentava ser a construção mais alta de Sayden. Tinha uma portada maior ao centro que dava acesso ao interior, também ele aparentemente iluminado por tochas, e duas portas de madeira mais pequenas dos lados que pareciam dar para uma espécie de anexos.
-AQUILO é o templo? - Perguntou Makoto, surpreendido.
-É incrível! - Comentou Sochin com um sorriso. - Uma cidade assim em pleno deserto...
Seguiram pela escadaria direita acima até chegarem à entrada principal. Entrando à cabeça do grupo, Kuroi olhou em redor em busca de sinais dos guardiães.
O templo parecia ainda maior visto de dentro, com arcadas altas de ambos os lados. Ao fundo, no interior de uma redoma brilhante que os cinco deduziram ter uma protecção mágica em volta, repousava sobre um pedestal decorado um pequeno baú de aspecto antigo. O chão em volta da redoma estava repleto de inscrições circulares em dreffeliano arcaico.
-Alto!! O que estão a fazer aqui? O santuário está interdito a forasteiros durante a noite! - Exclamou uma voz vinda de uma das alas laterais.
Voltaram-se para ver de onde vinha a voz. Junto a uma das arcadas encontrava-se um homem ainda novo, com pouco mais de vinte anos, cabelo curto laranja e olhos acinzentados. Sobre as maçãs do rosto e o nariz tinha uma marca esverdeada na pele, que se repetia nas mãos e nos tornozelos. Usava uma túnica branca comprida e larga amarrada à cintura com uma faixa carmesim e tinha os pés descalços sobre o frio chão de pedra do templo. A sua expressão era austera.
-Somos viajantes. - Respondeu Kuroi com desenvoltura. - Viemos desde Hodes e queríamos pedir a autorização dos guardiães para pernoitar no templo.
-Um grupo de humanos e um dreffeliano...? - Observou o jovem guardião. - Terei de ir consultar a nossa Mestre sobre isto. Duvido que vos seja permitido ficar.
-Não será necessário, Irmão Samal. Eu estou aqui. - Disse uma mulher idosa, com as mesmas vestes brancas que o jovem mas adornadas a fio de ouro, que caminhava lentamente vinda da arcada atrás dele apoiada num desgastado bastão de madeira. O seu cabelo grisalho estava apanhado atrás da cabeça por um adorno, também ele de ouro, e tinha no rosto um sorriso gentil.
-Mestre...! - Exclamou o guardião, surpreso. - Perdoe-me, não senti a sua presença.
A Mestre apaziguou-o com um gesto da sua mão trémula e dirigiu-se ao grupo.
-É um pouco repentino, mas teremos sempre um lugar para acolher viajantes de qualquer origem. - Depois, voltando-se para Kuroi, baixou a cabeça perante ele. - Será uma honra tê-lo a pernoitar entre nós, Kuroi-dono.
Kuroi estremeceu, sentindo-se impelido a recuar um passo.
-C-como é que sabe quem eu sou? Por favor, levante a cabeça! - Disse o rapaz, sem saber como reagir.
A idosa assentiu com o mesmo sorriso gentil.
-É impossível esconder uma energia tão grande de quem lida com ela há mais de um século.
-Ainda assim, por favor... prefiro ser tratado como um visitante normal....
-Assim seja. - Respondeu a Mestre. - Sinto que todos vocês são pessoas de bem. Devem estar cansados, vou mandar preparar-vos quartos. Amanhã, de dia, poderão visitar o templo com um dos nossos Irmãos.
Em menos de meia hora, tudo estava pronto a recebê-los por essa noite. Kuroi, tendo pela primeira vez em muito tempo um quarto só para si, debruçou-se no parapeito da janela e ficou algum tempo a fitar a maravilhosa paisagem nocturna de Sayden. Ainda se sentia um pouco nervoso por ter sido reconhecido tão facilmente como um dos Sucessores, mas calculou que o facto de ser recebido com honras pelos guardiães significasse que Tyfar sabia do regresso dos Sucessores e não lhe desejava impôr obstáculos.
Viu uma ave cortar os céus na sua direcção e logo estendeu o braço para a receber.
-Almoço! - Exclamou baixinho, com um sorriso. - Estava a começar a perguntar-me o que era feito de ti.
O falcão, que os seguira em vôo distante desde Hodes, piou baixinho, como se percebesse que não devia fazer barulho naquele local, e deslocou-se do braço de Kuroi para o parapeito. O rapaz fechou as portadas da janela, lançou um último olhar à cidade adormecida e caminhou lentamente na direcção da cama de lençóis brancos que o esperava, com todos os pensamentos no dia seguinte.