20 novembro 2010

Capítulo XVI: O Feiticeiro da Água

-Sochin, passa-me essa mala. Temos de tirar o carro e a bagagem deste navio antes que volte a levantar âncora.
A jovem assentiu e ergueu, com algum esforço, uma mala azul-escura que estendeu na direcção do irmão.
Este segurou-a pela pega facilmente com uma única mão, colocando-a na bagageira do velho jipe descapotável, enquanto com a outra mão afastava o cabelo louro dos olhos com um ar preocupado.
Não reparou quando a rapariga, já no limite das suas forças, lhe tentou passar um enorme saco de ferramentas. Parte do saco caiu de encontro ao chão de madeira do porão, mas a área em que se incluía o pesado martelo encontrou nicho sobre os seus ténis gastos e mal apertados, que por sinal tinham um par de pés no seu interior.
Um grito lacinante cortou o silêncio há muito instalado entre os quatro últimos passageiros a desembarcar. Até esse momento, tudo o que se ouvira de forma perceptível haviam sido algumas frases soltas.
-Nii-chan! Estás bem?? - Guinchou Sochin, preocupada.
Makoto olhou de relance para Kuroi, tentando não parecer fraco, e assentiu.
-Isto já passa. Vamos desembarcar.
Kuroi disfarçou um suspiro, desviou o olhar para as tábuas do chão e arrastou os pés, lado a lado com Ken'ichi, pela prancha de desembarque.
O mais velho procurava o capitão para lhe agradecer ter disponibilizado o porão para levarem o carro, mas decidiu não o interromper ao vê-lo, debruçado sobre a balaustrada e fumando o seu cachimbo, dando ordens sem nexo aos marinheiros apenas para os manter ocupados.
-Ainda não me contaste sobre a tua conversa com o Makoto ontem de manhã. - Desabafou em voz baixa o rapaz de cabelo castanho, colocando os braços atrás da cabeça e fitando o vazio, afectando desinteresse.
O meio-irmão colocou a mão sobre o seu ombro.
-Nem tu sobre a tua conversa com a Sochin. Estamos quites.
O outro forçou um sorriso, avançou rapidamente e parou em frente do resto do grupo.
-Bem, chegámos a Hodes! A paragem aqui vai ser longa, por isso sugiro que aproveitem para apreciar a paisagem e relaxar!
-Kuroi-kun, fica-te pelos sermões. És uma ruína como quebra-gelo. - Comentou a rapariga, embaraçada.
O rapaz pigarreou.
-Obrigado pelo feedback positivo, Sochin.
-Bem posso apreciar a paisagem, vai ser o meu postal de despedida deste mundo.
O mais novo dos rapazes soava grave e sério, apesar de não ter ainda mudado a voz como seria normal na sua idade. Foi ignorado pelo amigo.
-Ken, deve haver uma estalagem aqui perto. Importas-te de a procurar e de irem reservando os quartos?
-Não há problema, - Respondeu o mais velho - mas não vens connosco?
-Estou cada vez mais debilitado, é melhor procurar ajuda médica ainda hoje. Junto-me a vocês mais tarde, OK?
Sem esperar resposta, virou as costas. Preparava-se para penetrar na rua principal da cidade quando sentiu que uma mão esguia mas firme lhe segurava o pulso.
-Não vais mesmo dar-lhe uma hipótese...? - Sussurrou-lhe Sochin, sem que os outros reparassem.
-Tem paciência. Tudo se resolverá a seu tempo, e estou certo de que será pelo melhor para todos.
Dito isto, avançou para a multidão até a rapariga o perder de vista.

***

-Já vejo a estalagem, é ali à frente! - Exclamou Ken'ichi, apontando para um edifício de madeira de dois andares.
-Bah... tanto me faz onde é. - Resmungou Makoto, de mãos enterradas nos bolsos, chutando uma pedra solta na calçada com olhar ausente.
A irmã, que ia um pouco mais à frente, voltou-se para o loiro com o olhar fixo nele.
-Não consegues parar de pensar nisso e tentar distrair-te? Olha só para este dia magnífico! - Exclamou.
-Para mim está igual a um dia de trovoada. Um dos últimos dias que vamos passar neste mundo.
-Makoto-kun... posso contar-te uma coisa?
O rapaz desviou a sua atenção para o mais velho.
-O quê...?
-Os dias de sol como hoje costumam deixar o meu irmão de mau humor, já estou habituado a isso. Mas não é algo assim que o faria tomar uma decisão precipitada. Tem confiança nele.
-O que é que vocês não me estão a contar? E para ficar de mau humor com um dia assim, o que raios é ele? Uma coruja?
-Não, um semi-deus! - Riu Ken'ichi, seguindo caminho.
O loiro estremeceu. Nunca pensara em Kuroi como mais do que um humano com uma força e sentidos fora do comum, mas sabia bem que ele era descendente de Tyfar.
-Mas ainda estou à espera da resposta à primeira pergunta! Hey, Sochin, Ken'ichi-san!
Não obteve resposta. Os outros dois já prosseguiam caminho, alguns metros à frente.
Com um suspiro correu a juntar-se a eles, sentindo ainda um nó no estômago.

***

Kuroi vagueava pelas ruas da cidade, nostálgico.
Todo aquele movimento típico das cidades dreffelianas recordava-lhe a sua infância em Shinai, amarga mas simples e inocente. Mas Dreffel mudara muito desde esse tempo. Agora que estava no continente, deparava-se com um mundo humanizado, modernizado, muito diferente do que se recordava, mas ainda com a mesma sensação de familiaridade.
Inspirou fundo, mas parou de repente quando uma dor indescritível lhe tomou conta dos pulmões. Estava na hora de deixar de lado o saudosismo e procurar ajuda rapidamente.
Avistou uma ruela mais movimentada e interpelou uma mulher de cabelo alaranjado e aspecto afável que parecia menos apressada.
-Desculpe... - Começou - Sabe dizer-me onde vive o médico da cidade?
Ela voltou-se com um sorriso acolhedor e ponderou por um segundo antes de responder.
-Não sei se pode ser considerado um médico, mas há alguém que te pode ajudar. Vive na última casa daquela rua. Mas se fosse a ti não ia ter com ele hoje... está de mau humor.
Kuroi estranhou este conselho e decidiu insistir.
-E amanhã...?
-Não é boa ideia, amanhã ele também vai estar de mau humor.
-Mas a senhora será por acaso... uma vidente?
-Não, querido! É que ele está sempre de mau humor...
-E como é que fazem quando ficam doentes?
-Aqui ninguém se atreve a ficar doente sabendo que o curandeiro local é ele.
-Bom... obrigado pela informação. - Respondeu Kuroi enquanto voltava as costas, perturbado.
-Não tens de quê! - Respondeu a mulher com um sorriso rasgado.
Afastou-se na direcção que lhe havia sido indicada, confuso. Que tipo de homem poderia ter um mau humor tão pronunciado que causasse medo numa cidade inteira?
À medida que se aproximava do fundo da rua, notou que os edifícios eram cada vez mais antigos e alguns estavam mesmo abandonados. Quando finalmente chegou à última casa, uma pequena construção de pedra grosseira com telhado coberto de colmo, não havia ninguém em seu redor. Era como estar numa cidade-fantasma dentro de uma metrópole.
Bateu à porta, que se abriu ligeiramente com um chiar de dobradiças.
-Está alguém em casa? - Perguntou em voz alta, enquanto avançava lentamente para o interior.
-Quem pergunta? - Respondeu do fundo de uma das divisões uma voz masculina, grave e forte, mas surpreendente e inesperadamente imatura. - Odeio ser incomodado.
-O meu nome é Seishin Kuroi. - Disse, procurando o sítio de onde a voz saía. - Venho de fora à procura de um médico e indicaram-me esta casa.
-Era o que me faltava, um estrangeiro. Aqueles estúpidos nunca param de me mandar pessoas, ainda há três meses tive que tratar de um tipo que perdeu um braço. Já era altura de arranjarem um médico e me deixarem em paz.
Finalmente, o outro revelou-se à porta de um quarto.
Era um rapaz não muito mais velho que Kuroi, de estatura média e que não aparentava ser muito mais forte que qualquer adolescente da sua idade. Tinha o cabelo azul muito escuro, quase preto, e os olhos de um tom lilás também azulado. Trazia vestida uma camisola ocre de linho grosseiro, com a gola alta e toda ela muito larga, e umas calças castanhas dobradas abaixo do joelho sobre umas botas pretas. O seu olhar era gélido e intimidatório, mas não se assemelhava em nada à figura assustadora que Kuroi tinha em mente.
-Não sou estrangeiro. - Corrigiu Kuroi. - Nasci em Shinai, a Leste daqui.
-Estou a ver... com esse apelido, presumo que sejas um mestiço. Já agora, o meu nome é Luke d'Evans.
-É um prazer conhecer-te. - Afectou o mais novo, tentando sorrir enquanto lhe estendia uma mão.
-Não posso dizer o mesmo. - Respondeu rispidamente o outro, indiferente. - Entra neste quarto e tira a camisola. Vou preparar-me para fazer um exame rápido.
Kuroi assentiu, indignado com a atitude do outro. Esperou que Luke regressasse sentado numa cama simples e dura, o que não demorou muito. Poucos minutos depois, este voltava com uma selha cheia de água e as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Pousou a selha no chão e fez-lhe sinal para que se deitasse.
-A ferida é interna na zona do abdómen, certo? - Perguntou.
-Sim! Como é que...
-Voz tremida e o reflexo inconsciente de apertar essa zona com os braços ao andar.
-Impressionante! Nunca vi ninguém com uma capacidade de leitura tão extraordinária! - Comentou Kuroi, abismado com a dedução do outro.
-Tens visto muito pouco. Mudando de assunto, alguma vez viste uma técnica de cura por água?
Kuroi abanou a cabeça negativamente.
-Boa, era o que me faltava. Um novato. - Desabafou Luke. - Basicamente, assim que eu começar não respires, não te mexas e não fales. Tenta manter o corpo descontraído. Vou passar alguma energia mágica através desta água para o teu corpo, primeiro para localizar o problema e uma segunda vez para o resolver.
-Energia mágica... és um feiticeiro?
-Uau, afinal ainda há quem saiba que existimos. - Ironizou o outro, agachando-se junto da selha. Com um movimento rápido das mãos, fez erguer da água uma esfera líquida e ligeiramente irregular, que pairava acima da palma da sua mão direita. - Vou começar, prepara-te.
Após proferir estas palavras, ergueu a esfera junto da cama ao nível dos seus olhos e lançou-a repentinamente contra o peito de Kuroi.
O rapaz teve a sensação de que iria ficar encharcado assim que a água o atingisse, mas em vez disso sentiu uma onda de energia gélida penetrar a sua pele e espalhar-se até às extremidades do seu corpo. Sentiu-se desconfortavelmente cheio, mas controlou-se para não se mover. Repentinamente, a energia começou a retrair-se como uma maré em direcção ao ponto de origem, e o corpo expeliu a água em forma de pequenas gotas que se voltaram a unir sob a mão do feiticeiro.
Ao vê-lo voltar a colocar a água na selha, Kuroi reparou que a sua expressão entediada se tornara numa expressão perturbada.
-Como é que... fizeste isto? - Perguntou o feiticeiro.
-Uma rixa. - Explicou o rapaz, sentando-se na cama. - Fui atingido com um soco e no dia seguinte, ao acordar, comecei a sentir dores que foram piorando.
-Seishin... - Começou Luke, fitando-o pela primeira vez nos olhos. - ...Isto não é uma hemorragia comum. O que eu encontrei com este exame foram vestígios de energia de Terra, poder mágico na sua forma mais pura. Consigo eliminar essa energia e reparar os danos, mas vai ser extremamente doloroso e nem eu posso dizer quantas sessões serão necessárias até que a cura seja total.
"Magia de Terra...", pensou Kuroi para consigo. "Como é possível que o Genji, o mais fraco de todos nós, já ter dominado o seu alinhamento elemental a este ponto? O que se passa aqui...?"
-Hey, mas estás a ouvir-me ou quê? - Gritou Luke, sacudindo-o por um ombro com uma expressão de indignação.
-Desculpa, estava a pensar numa coisa. O que disseste? - Balbuciou o rapaz de cabelo castanho, atrapalhado.
-Raio do rapaz... Estava a perguntar se queres fazer já a primeira fase. Vai tornar o processo de cura mais rápido, mas também é bastante debilitante pelas dores que causa.
Kuroi assentiu, determinado.
-Já cheguei até aqui, não é altura para recuar. Tenho amigos que contam comigo para os proteger, e não é nestas condições que o farei.
-Não esperava menos de um Sucessor. - Rematou o mais velho. - E sim, também me apercebi disso.
Kuroi sentiu um arrepio, encolheu os ombros e voltou a deitar-se. Em menos de meia hora, Luke d'Evans lera-o completamente. Não podia permitir que se espalhasse tão cedo que era um Sucessor de Tyfar, mas naquele momento o seu segredo e a segurança de todo o grupo estavam nas mãos daquele feiticeiro. Tinha de confiar nele.
-Vou começar. Podes respirar desta vez, mas não te movas seja qual for o grau de dor que sintas. Vou ter de controlar a água no teu corpo para libertar os pontos afectados pela energia, e é um processo muito delicado. Devo demorar cerca de uma hora, a julgar pela tua estrutura celular.
-Estou pronto.

***

-É muito estranho o Kuroi ainda não ter chegado. Acham que aconteceu algo?
Sochin fitou Ken'ichi, que se sentava encostado à cadeira com os braços cruzados no lado oposto da mesa.
-Conhece-lo melhor que nós. - Respondeu. - É o teu meio-irmão.
-Sim, tens razão... - Constatou o mais velho. - Da forma como o conheço, é bem possível que se tenha perdido. Não importa, há-de voltar.
-Mas vocês importam-se de mudar de assunto? Já não vos consigo ouvir falar nele. - Resmungou Makoto, que estava sentado entre ambos e debruçado sobre o tampo da mesa.
-Vais dizer que não estás preocupado? Está a demorar tanto tempo...
-Ele sabe tomar conta de si mesmo, ao contrário de mim. - Disse o rapaz rispidamente, levantando-se da cadeira. - Vou dar uma volta e apanhar ar fresco. Se não voltar até anoitecer, muito provavelmente tive alguma atitude imatura e meti-me em sarilhos, e vou precisar de uma ama-seca que me vá resgatar das garras de algum bando de criminosos.
-Nii-chan...
O loiro sorriu tristemente e enterrou as mãos nos bolsos.
-Estava a gozar. Só preciso de estar um pouco sozinho, pôr as ideias em ordem. Não se preocupem comigo.
Tanto a rapariga como o mais velho suspiraram de alívio.
-Até logo, então. - Disse Ken'ichi.
Sochin não proferiu uma palavra, fitando algum ponto no chão com melancolia. Quando Makoto saiu, voltou a erguer o olhar.
-Andam os dois às cabeçadas na parede. - Desabafou o mecânico. - Já começa a irritar.
-Ken'ichi-san, o que achas que o Kuroi-kun estará a pensar? Ele disse-me antes de nos separarmos que tudo se resolveria na altura certa, mas quanto mais tempo passa mais tensão existe entre eles... Davam-se tão bem, nem parecem os mesmos!
-Eu sei. O Kuroi está a agir de forma muito diferente, nem parece dele. Tenho a certeza que, no fundo, também está muito em baixo. Já o teu irmão parece que vai explodir.
A rapariga assentiu tristemente.
Durante alguns minutos, o silêncio tomou conta da pequena mesa de bar da estalagem.
De repente, no meio dos sons de fundo, ouviu-se um abrir e fechar da porta de entrada. Ninguém pareceu reparar em algo tão comum naquele lugar, mas os dois amigos voltaram-se de imediato.
Kuroi juntava-se a eles, pálido e ligeiramente trémulo.
-Yo. - Disse, sentando-se no chão junto a uma cadeira vazia.
-Não pareces muito melhor. - Disse o mais velho. - Não encontraste ninguém?
-Pelo contrário. Mas ainda não estou curado, vai demorar o seu tempo. O primeiro tratamento foi apenas... desagradável.
-Que tipo de médico existe num mundo como este? - Perguntou Sochin, já nem se dando ao trabalho de estranhar a aversão do rapaz a cadeiras.
-Um tipo estranho. - Disse Kuroi, fazendo depois uma pausa. - Vejo que o Makoto não se dignou a esperar que eu voltasse. Não o censuro, no lugar dele eu também não me falaria.
-Já decidiste alguma coisa em relação a esse problema? - Atirou o mais velho para o ar.
-Já sei precisamente o que fazer, e era sobre isso que queria falar convosco agora que ele não está aqui.
Os outros dois voltaram-se para o rapaz, assentindo.
-Primeiro que tudo, é imperativo que ele não saiba de nada nem antes nem depois. Decidi pô-lo à prova. Ken, lembras-te do Daisuke?
-Como poderia esquecer... mas que tem isso a ver com o nosso problema? - Respondeu o meio-irmão, sem compreender.
-Já passou muito tempo, mas recentemente tenho tido um pressentimento de que ele está a tentar dizer-me algo... Acho que ele quer que o use.
-Usar? Mas quem é esse Daisuke? - Interrompeu Sochin, confusa.
-Um... velho amigo. - Respondeu Kuroi, sorrindo. - Bem, vamos organizar-nos. Sochin, preciso que encontres o Makoto e o convenças a ir contigo à praça principal da cidade daqui a umas horas. Ken, preciso que venhas comigo procurar algumas coisas na cidade. Desculpa pedir-te isto, mas se encontrarmos alguém, não estou em condições de me defender sozinho. Também preciso de aproveitar e arranjar outra roupa, esta já não está em condições de ser usada por muito mais tempo.
-Mas importam-se de me explicar que plano é esse? Não estou a perceber nada! - Desabafou a rapariga.
-Já vais perceber. O que eu quero testar é... - Respondeu o rapaz, afastando dos olhos uma madeixa de cabelo castanho. - A capacidade do teu irmão para se defender efectivamente numa rixa contra um desconhecido. Isso... ou se tem a sabedoria suficiente para a evitar.

30 julho 2010

Capítulo XV: Nascimento e morte. Decisão.

Cidade de Shinai, Dreffel. Um vulgar dia de Outono sem nada de especial ou empolgante para um rapazinho, de seus sete anos, cabelo castanho e olhos verdes, que vagueava pelos arredores em busca da próxima refeição.
-Corres muito depressa, não é justo! - Ouvia uma criança gritar. Um grupo de quase uma dezena reunia-se na praça e brincava sob o olhar enfadado de Kuroi, que se acomodava sobre um caixote de madeira à porta de uma loja.
-Pst, miúdo, sai daí. - Murmurava o proprietário, embaraçado.
Ao ver-se em confronto directo com o olhar perfurante do rapaz, deu um suspiro e tomou nas mãos uma maçã.
-Se saíres de cima do caixote, dou-te isto.
O pequeno logo pulou para o chão com desenvoltura. O truque de se sentar em frente das lojas nunca o deixara ficar mal.
Começou a afastar-se, saboreando a única refeição do dia, quando ouviu um gritinho vindo do grupo de crianças.
-É O FANTASMA!!!
Virou-se. À saída para uma das ruelas secundárias, avançando a medo, aproximava-se deles um rapazinho de grandes olhos azuis e cabelo totalmente branco. O rosto, única parte do corpo que não estava coberta por agasalhos, era também muito pálido.
-Vai-te embora daqui, assombração! - Gritou outro.
Uma rapariga baixinha, talvez a mais nova do grupo, pegou numa pedra do chão e arremessou-a contra o recém-chegado. Os outros juntaram-se a ela e cada vez mais eram as pedras que o atingiam. O pequeno, importante, caiu sobre os joelhos, protegeu a cabeça com os braços como podia e soltou um gemido de dor e angústia.
-Parem imediatamente com isso. E tu, põe-te a andar daqui. Depressa.
As pedras haviam cessado e o albino levantou o olhar. À sua frente, Kuroi estava de pé com os braços
abertos, protegendo-o com o seu corpo.
-Quem atirar a próxima pedra vai ter de se haver comigo.
-Não digas disparates e sai da frente! - Disse o mais velho do grupo, recomeçando a ofensiva.
Não acertou em nenhum dos dois rapazes, mas deixara clara a sua intenção. Não seria um miúdo da rua a impedi-los.
De imediato surgiu uma aura negra semelhante a fumo em redor dos seus pés. Subiu rapidamente pelo corpo, imobilizando-o, fê-lo desmaiar e desvaneceu-se no ar.
-Mais alguém?
Outro rapaz, um pouco mais novo e com ar de arruaceiro, pegou no corpo inanimado do amigo e colocou-o às costas.
-Vamos sair daqui. - Ordenou ao resto do grupo com voz trémula. - Este tipo não é normal.
Sem mais trocas de palavras mas muitas trocas de olhares, todos desapareceram num ápice.
-Mas... mas porquê? - Perguntou o albino, falando pela primeira vez. - Porque é que me ajudaste?
-Porque não acredito em fantasmas.
O rapaz esboçou um sorriso tímido.
-Obrigado.
-Não tens nada que agradecer. E não devias andar com esta gente. Ninguém merece ser tratado assim. - Continuou Kuroi.
-Sei perfeitamente disso, mas até eu preciso de estar com alguém. A minha família só cuida de mim por pena e na maior parte do tempo finge que eu não estou lá. Devem pensar que sou um erro.
-E tu acreditas nisso.
O pequeno desviou o olhar rapidamente.
-Não és humano?- Murmurou, tentando mudar de assunto.
-Sou mestiço. - Respondeu Kuroi.
-Então... És igual a mim! A minha mãe é humana e o meu pai é de cá!
Kuroi sentiu um sobressalto com estas palavras. "És igual a mim".
-Souka... Podia jurar que eras um humano puro com albinismo. - Respondeu, abstraído.
-Tenho este aspecto porque os genes dos meus pais eram incompatíveis. Dizem-me que é uma doença.
-Uma doença...?
-Não te assustes, isto não se pega. Mas é irrelevante. - Explicou o outro, um pouco embaraçado.
Kuroi afastou dos olhos uma madeixa de cabelo castanho.
-De qualquer modo, sou imune a quase todas.
O albino sorriu. Sentia-se estranhamente feliz por ter encontrado alguém que não parecia importar-se com a sua aparência.
-Eu... já te vi por aqui, sei que não tens onde viver. A minha casa é muito grande e podes ficar por lá, se quiseres.
-Isso é demasiado. Eu só fiz o que estava correcto fazer, nada mais.
-Por favor! - Insistiu o rapaz. - Pensa bem, não tinhas de voltar a passar fome. E além disso... gostava muito de voltar a falar contigo.
O outro levantou os olhos para o céu alaranjado de fim de tarde.
-Não quero ser um incómodo para ninguém.
-De maneira nenhuma! A nossa produção chega e sobra para sustentar mais um, e se isso te deixar com a consciência mais tranquila o meu pai está à procura de mais ajudantes para os trabalhos leves. A minha família é produtora de vinha. Podes ajudar a troco de estadia, e assim ficamos todos a ganhar!
-Isso seria óptimo! - Exclamou Kuroi. - Tens mesmo a certeza?
-Claro que sim! - Respondeu o outro, com um aceno de cabeça. - Não te vais arrepender!
Nesse momento, Kuroi apercebeu-se pela sua expressão que aquele tímido rapazinho, que demonstrava uma aparente dificuldade em lidar com a aceitação, era na verdade um pouco mais velho que ele.
-Agora lembrei-me... ainda não sei o teu nome! - Prosseguiu o rapaz. - Como te chamas?
-Seishin Kuroi. - Respondeu.
Depois, achando que deveria dizer algo mais, acrescentou:
-E tu?
-Ryo Daisuke.

***

Quase um ano havia passado desde que Kuroi conhecera Daisuke. Vivia desde então num anexo da casa da família Ryo, onde fazia pequenos serviços a troco de comida e tecto. Era de longe o mais novo de todos os ajudantes, mas extremamente prestável. Afinal de contas, a maior parte dos trabalhos eram fáceis para ele graças à sua força.
Preparava-se para mais um dia de colheita na vinha quando a porta do anexo se abriu de par em par.
-Kuroi, Kuroi!!! Tenho boas notícias!
Era Daisuke que entrava, ofegante. Crescera muito no espaço de um ano, o bastante para que fosse impossível confundi-lo com alguém mais novo. Já não se fazia sentir o calor do verão mas ainda se apresentava descalço, com uma camisola leve e calções.
-Acordaste cedo hoje! - Admirou-se o mais pequeno, enfiando pela cabeça uma camisola. - Que se passou?
-A colheita está bastante adiantada este ano, por isso hoje estás dispensado! - Respondeu Daisuke com um sorriso rasgado.
-Genial! Qual é o teu plano?
O rapaz pensou por momentos.
-Gostava de ir à cidade. Desde que vieste para cá que não saio da herdade dos meus pais.
-À cidade... Tens a certeza?
O albino assentiu.
-Já não me assusta a reacção das pessoas. Se estiveres comigo, sei que sou capaz de enfrentar tudo.
-Não me considero assim tão motivador. - Respondeu Kuroi, embaraçado. - Mas se tu o dizes...
Antes de sair passaram pela cozinha da casa.
A mãe de Daisuke, uma bonita mulher de longos cabelos negros, entregou a cada um deles uma pequena mala com uma caixa de comida e um cantil de sumo de uva.
-Tenham cuidado, meninos! - Aconselhou.
-Claro, mãe! Já sabemos! - Respondeu o mais velho com um sorriso de troça, puxando o amigo por um braço.
Kuroi sentia-se feliz. Havia sido acolhido pelos Ryo como um outro filho, e Daisuke era como um irmão. Parecia ter-se tornado noutra pessoa muito diferente desde aquele dia, estava mais alegre e confiante, e até a atitude dos seus pais em relação a ele mudara graças a isso. Conseguiam finalmente vê-lo como uma criança igual a tantas outras da sua idade.
Olhou para o cantil que a mulher lhe dera. Era muito comum darem-lhe sumo de uva ao lanche, visto que a família cultivava vinha, e nunca se cansava. Achava-se capaz de beber sumo de uva para o resto da vida.
O dia passou estranhamente depressa. Ninguém se atrevera a provocar Daisuke com Kuroi por perto, e por isso os dois divertiram-se a passear pelas ruas da cidade.
No entanto, ao fim da tarde, o mais velho sentiu uma tontura fortíssima. Tentando manter-se em si, chamou o amigo.
-Kuroi, não estou bem. Preciso de voltar para casa.
O outro acenou com ar preocupado.
-Que se passa?
-Estou a sentir-me fraco. Só isso.
Com algum esforço, conseguiram regressar.
A mãe de Daisuke foi ajudá-lo a deitar-se enquanto Kuroi esperava à porta do quarto por mais notícias, mas quando a mulher saiu do quarto parecia abalada e não proferiu uma palavra. O rapaz entrou e foi sentar-se junto do amigo.
-Como estás agora? - Perguntou, preocupado.
O rapaz balbuciou qualquer coisa imperceptível devido à voz fraca e arrastada, aninhou-se na cama e não respondeu mais nada. Adormeceu com uma expressão de sofrimento estampada no rosto pálido.
Ao passo que um dormiu durante toda a noite, o outro não foi capaz de fechar os olhos por um momento. Já vira Daisuke doente e mesmo acamado, mas nunca durava tanto tempo. E estava a ser demasiado violento desta vez.
Os primeiros raios de sol entraram lenta e pesadamente pela janela, anunciando o nascer do dia.
A algum custo, o mais velho conseguira acordar e manter-se consciente. No entanto, não parecia haver melhorias no seu estado. Tentava dizer algo.
-Daisuke, não te esforces... - Pediu Kuroi, lutando contra o sono.
-Por favor, deixa-me falar. Há algo que nunca te contei... - Murmurou o outro.
-O que queres dizer? O que é que não me contaste?
-A minha doença... bem... é degenerativa. Sempre que atinge um órgão, é irreversível. Ontem tentei dizer-te depois de a minha mãe sair, mas não tive forças...
-Mas o que...
Kuroi não sabia o significado de "degenerativa". Era apenas uma criança da rua sem escola nem experiência. Mas compreendeu que algo de muito errado se passava.
-Temo que ontem tenha começado a atingir o coração.
Estas palavras foram como um soco no estômago para o rapaz. De imediato percebeu tudo.
-Não, não pode ser. Não pode... Diz-me que estás a mentir!!!
Daisuke desviou o olhar para o tecto, pesarosamente.
-Já há mais de oito meses que se esperava esta evolução. O único mistério é mesmo como sobrevivi até agora. Mas tudo tinha de acabar um dia, até a minha sorte...
-Não pode ser! NÃO!!!
-Já me custa a falar, sinto uma pontada mesmo forte no peito. É insuportável.
-DAISUKE, PÁRA COM ISSO! ESTÁS A ASSUSTAR-ME! TENHO A CERTEZA DE QUE VAIS FICAR MELHOR E SOBREVIVER!!!
A mão fria e fraca do rapaz agarrou a mão trémula e quente de Kuroi.
-Não vale a pena tentares iludir-nos aos dois. Só te peço que ouças o que te vou dizer. Eu quero agradecer-te.
O mais novo engoliu em seco. Tentava a todo o custo não chorar, mas os seus grandes olhos verdes começavam a transbordar em lágrimas.
-Agrade...cer-me?
-Há um ano atrás, todos teriam ficado indiferentes. Para mim seria como adormecer durante muito tempo. No entanto... - Suspirou. - ...agora que chegou o momento não consigo pensar assim. Obrigado, meu amigo. Por teres sido uma outra família... e por me fazeres, neste momento, desejar permanecer vivo mais do que qualquer outra coisa.
Kuroi respirava fundo para não começar a soluçar.
-IDIOTA, NÃO ME POSSO CONSIDERAR AMIGO DE NINGUÉM SE DEIXAR QUE OUTRA PESSOA IMPORTANTE PARA MIM MORRA À FRENTE DOS MEUS OLHOS!!!
Colocou as mãos nos ombros de Daisuke e segurou-o com força, deixando de se preocupar em esconder o choro que teimava em sair. Concentrou-se, e nas suas mãos surgiu uma aura negra em forma de chama descontrolada.
-Por favor aguenta só um pouco! Com o meu poder, eu acho... eu tenho a certeza que te posso salvar!!!
A escuridão tornou-se em luz e preencheu o quarto com um brilho ofuscante.
-Não feches os olhos por nada!
Daisuke sentia uma sobrecarga no seu corpo frágil, que não estava preparado para receber o mesmo tipo de energia com que o de Kuroi lidava, mas não disse nada e nem sequer gemeu. Do fundo do seu coração, queria acreditar no amigo até ao fim. Faria o seu segundo milagre.
Sabendo que chegara o fim, fechou os olhos e pronunciou as suas últimas palavras:
-Obrigado.
A luz estilhaçou-se como um vidro, em mil pedaços ínfimos que choveram sobre o chão. No ar, apenas uma sufocante sensação de vazio. O corpo do rapaz desaparecera.
Kuroi caiu sobre os joelhos, em choque.
-Daisuke... não é possível... não...
Os estilhaços de luz juntaram-se em seu redor e poisavam sobre si, desaparecendo sobre ele como lágrimas que secavam.
Parte de si desejava gritar a plenos pulmões, libertar a tristeza e a frustração. Mas um novo lado que surgia no seu interior refreava-lhe os nervos e cessava a sua angústia. Transmitia-lhe uma inadequada paz interior que fazia esquecer tudo o resto. De certa forma, tinha a sensação de que nada mudara. Ryo Daisuke permanecia vivo através e dentro de si.
"O que eu fui fazer... não queria nada disto! Só queria salvá-lo! O que me vai acontecer agora?"
Limpou os olhos húmidos com o braço e dirigiu o olhar para a porta. Estava aberta e de pé, estarrecida, a mãe de Daisuke fitava-o com olhar incrédulo.
Não sabia desde quando é que ela estaria a assistir, mas podia ver pela sua expressão que não ouvira a conversa que tiveram.
Pensou em dizer algo como "não é o que possa estar a pensar, acalme-se", mas sabia perfeitamente que era inútil dizer fosse o que fosse. Diante de si estava uma mãe que acabara de perder o filho.
-Lamento muito. - Disse, sem que a voz lhe saísse da garganta.
-És um monstro. - Respondeu ela, com a voz embargada pelo choque e pela tristeza.
Com estas palavras, Kuroi sentiu impotente que o que restava do seu mundo acabara de se desmoronar.
Argumentar só iria agravar a ferida no coração daquela mãe que também fora a sua, só queria desaparecer. Esvair-se no ar e sair dali, recomeçar tudo e apagar as memórias que deixara nos últimos momentos e que o magoavam mais do que a ninguém.
Queria partir, para bem longe dali...
Pestanejou lentamente. Já não estava dentro do apertado quarto, nem em nenhum lugar que conhecesse. Nos seus ouvidos ecoava o choro desgostoso da bela mulher de cabelos negros, entre a tristeza e o desespero, mas já não a podia ver.
Agindo quase por instinto, levantou um braço. A ponta dos seus dedos tocou uma superfície distorcida no ar, fria e inquietante.
Um arco tomou forma à sua frente, convidando-o a passar.
Mentira. Era ele que suplicava ao arco que o deixasse atravessá-lo.
Naquele mundo nada mais lhe restava.
Só queria fugir e esquecer, não importava para onde.

***

Acordou repentinamente.
Já era de manhã. Estava a bordo do navio que partira de Kyrial na véspera, quase a tombar da cama, com os lençóis no chão. Ouvia um chiar irritante junto ao ouvido esquerdo.
-Almoço, deixa-me em paz! Já estou acordado! - Resmungou, enfiando os pés nos ténis trocados.
Suspirou e voltou a calçá-los correctamente. O pequeno falcão saltou-lhe para o colo, tentando atrair a sua atenção.
-Não olhes para mim assim. Nem desconfio o que comem os falcões.
Voltou a chiar insistentemente, sem resposta, e voou ofendido pela janela entreaberta.
O rapaz tinha mais com que se preocupar.
Teria de tomar uma decisão difícil e, quanto mais depressa o fizesse, melhor. A recordação dessa noite só viera agravar o seu humor.
Fechou a porta da cabine atrás de si. Não poderia adiar por mais tempo o que decidira.
Foi encontrar Makoto e Sochin no exterior, sentados nas escadas do convés.
-Senpai, bom dia! - Disse o loiro, tentando sorrir. Ainda estava enjoado pelo balanço do barco.
-Bom dia. - Cumprimentou Kuroi, abstraído.
Sochin acenou.
-Vou comer qualquer coisa. - Disse, levantando-se.
-Makoto, preciso de falar contigo. - Chamou o mais velho.
-Uh... claro! - Respondeu o outro. - Que se passa?
-Vou ser o mais directo possível... Assim que chegarmos a terra, tu e a tua irmã devem abandonar Dreffel. Sem demoras.
-O QUÊ? Estás a gozar, certo?
O rapaz acenou negativamente.
-Deixar-vos acompanhar-me foi um erro. Depois de ver a tua atitude anteontem apercebi-me de que não posso responsabilizar-me por vocês dois. Só poria em perigo as nossas vidas e o meu objectivo.
-Que estás a dizer...
-És um irresponsável, Makoto. Não tens noção do perigo e falta-te a maturidade para ponderar calmamente as situações. Ainda por cima com as tuas capacidades de combate actuais, podias ter morrido!
-Mas não morri! - Exclamou o mais novo, furioso.
-Ias morrer se eu não tivesse chegado a tempo!
Makoto aproximou-se de Kuroi, cada vez mais enervado.
-Caso não tenhas reparado, posso tomar conta de mim sem a tua ajuda!
Kuroi afastou-o com uma forte cabeçada.
-Nota-se! Nota-se perfeitamente!
-O facto de seres o líder do grupo não te dá o direito de escolher por nós!
-O facto de ser o líder do grupo dá-me o dever de vos manter A SALVO!
-Não arranjes desculpas esfarrapadas, eu responsabilizo-me por tudo o que me possa acontecer! Se o teu problema é outro, di-lo na cara!
-Ai é isso que achas? Pois bem, se é isso que queres ouvir, já não te aguen...
-PAREM OS DOIS COM ISSO, JÁ!!!
Sochin regressara a correr ao ouvir os gritos e separou-os. Chocava-a ver os dois amigos discutir daquela forma.
-Hey, diz o que ias a dizer! Continua se tiveres lata! - Desafiava ainda o mais novo.
Kuroi suspirou e baixou o olhar.
-Makoto, se gostas assim tanto da tua irmã aprende a dar-lhe ouvidos quando ela tem razão. Esta conversa já foi longe demais.
Voltou as costas e deixou-os, parando apenas ao passar junto à rapariga, colocando a mão no seu ombro.
-Lamento que tenhas tido de assistir a isto. - Murmurou.
Esta fitou-o até entrar dentro da cabine e bater com a porta.
-O que foi isto? - Perguntou com voz fraca.
Makoto olhou para o chão com uma expressão cerrada.
-Vais ficar feliz com o assunto da discussão. Ele quer que o deixemos e voltemos ao nosso mundo.
Sochin ficou sem resposta. Não era, de facto, minimamente próxima de Kuroi. Na verdade, por vezes ele irritava-a. Mas sabia como estar com ele era importante para o seu irmão e aprendera a aceitar a situação com o tempo. Começava mesmo a sentir-se bem junto daquele pequeno grupo.
-Não, não estou feliz. Mas também não percebo o porquê de estarem quase a pegar-se à pancada, logo vocês os dois.
-Não estás a ver, Sochin? É tal e qual como antes. Quando parece que tudo corre bem, há sempre alguma desculpa para me mandarem embora quando já não sou preciso. Pensei que o Senpai fosse diferente do resto das pessoas. Como é que pude ser tão parvo?!
A mais nova suspirou. Apesar de Kuroi ser uma pessoa difícil de compreender, sabia que ele não era assim.
-Vou tentar falar com ele.
Makoto voltou a sentar-se nas escadas e encostou a cabeça ao corrimão de madeira com violência. Fitava o mar sem uma palavra, de semblante carregado e ainda com algum enjôo.
Ken'ichi saía desse momento da cabine que partilhava com o meio-irmão.
-Que se passou? O Kuroi entrou ali com uma expressão muito séria e não me responde!
-Discutiu com o meu irmão porque quer que eu e ele regressemos ao nosso mundo. - Respondeu Sochin.
-Então foi isso... ele falou-me nessa possibilidade, mas nunca pensei que tivesse coragem de levar a ideia avante.
-Vou tentar falar com ele agora, para esclarecer umas coisas. Sei que é pedir muito, mas podes ficar com o meu irmão e tentar acalmá-lo? Tenho medo que faça algum disparate.
-Não há problema. Ele deve dar-me ouvidos.
A rapariga acenou com um sorriso triste no rosto e continuou para a cabine.
Abriu a porta silenciosamente e esperou que os seus olhos se habituassem à escuridão. Kuroi fechara as janelas ao entrar.
Estava sentado no chão, junto a um canto, fitando algum ponto no tecto. Apertava o estômago com os braços, esboçando uma expressão de dor.
-Está a doer muito? - Perguntou a rapariga, mas arrependeu-se a seguir. Talvez tivesse feito melhor em ficar calada.
-Parece que estou a ser estripado vivo. - Respondeu o rapaz com voz grave e surpreendentemente calma.
-Estava a falar do teu corpo.
-Ah, isso. Por vezes ainda dói um pouco, mas só um médico saberá dizer se é grave.
-Kuroi-kun...
-Não perguntes nada. É o melhor para vocês por agora. O teu irmão ainda é muito impulsivo e imaturo para seguir uma viagem como a que nos espera quando chegarmos ao continente. Talvez se já fosse um, dois anos mais velho... Mas 14 anos é muito pouco para alguém como ele.
-Eu sei que o meu irmão às vezes faz figuras de idiota e se porta como uma criança, mas acho que essa é a maneira de ele demonstrar que se importa com as pessoas. Pode não parecer, mas ele sabe comportar-se como um adulto se for necessário.
Kuroi queria ser sincero, desabafar o seu medo, explicar que poderia ser demasiado arriscado dar ao rapaz uma segunda oportunidade. Mas, como líder do grupo, era o último que poderia dar parte fraca. A sua hesitação afectaria todos.
-Não posso arriscar que aconteça algo de mais grave a um de vocês. - Disse finalmente.
-Sabes, o que o meu irmão ficou a pensar é que não o vês como um amigo e que te fartaste dele. Já passou por muito, e isso afectou a confiança dele.
-Não me compete saber pormenores da vossa vida, por isso não te esforces em dizê-los. Só me custa que ele pense que isto foi uma decisão fácil. Ele age como se pudesse defrontar qualquer um, quando ainda está a muitos treinos de distância de me alcançar sequer.
-Quer afirmar-se, junto de ti e de si próprio. Tu restauraste muita da confiança dele quando se tornaram amigos. Acho que não quer perder isso.
-Sochin, posso perguntar-te apenas uma coisa?
A rapariga acenou afirmativamente, intrigada.
-Diz-me apenas... - Prosseguiu o mais velho - ... qual é a TUA posição em relação a tudo isto. Estás a defender o ponto de vista do Makoto, mas sempre que te vejo pareces estar aqui por obrigação.
Sochin fitou o chão, embaraçada.
-No início não queria nada disto, é verdade. E também não simpatizava muito contigo, mas queria ficar junto do meu irmão. Deves calcular como fiquei quando nos contaste que não eras humano.
-Era mais que óbvio. Gostava de vos ter dito desde o início, mas pensei que iriam reagir mal ou que não iam acreditar.
-É compreensível. Mas se queres saber a verdade... nos últímos tempos mudei de opinião. Ganhei confiança em ti e até começo a gostar deste mundo.
-É bom saber isso. Nesse caso, o problema é o teu irmão, estou enganado?
A rapariga assentiu.
-Ele é muito influenciável e assusta-me um pouco pensar que se pode prender mais a ti como lutador do que como pessoa. Não quero... Não quero que se torne diferente, ele não é uma pessoa violenta. Mas ao mesmo tempo... quero estar aqui junto dele. É muito bom vê-lo tão entusiasmado e alegre. O simples facto de se estar a relacionar com outras pessoas é quase um milagre.
-ESTE MAKOTO tinha problemas com isso?! Ninguém diria.
-É muito bom fingidor, em todos os sentidos... Mas por favor não sintas pena dele, não há nada que ele odeie mais.
-Sinto mais pena por mim próprio, por não saber lidar com um miúdo e acabar por magoá-lo. É patético.
-Ainda podes voltar atrás e dar-lhe uma hipótese, ninguém vai achar que és um fraco por isso. Mesmo que nunca o demonstre, o meu irmão sabe o que faz. Podes até ficar, talvez... surpreendido.

28 maio 2010

Capítulo XIV: O Outro Lado

Em casa de Mina, que Dejai ajudara a encontrar, Makoto e Sochin retemperavam as forças. A rapariga, que tinha fome e alguns ferimentos superficiais nos braços e nos joelhos, estava sentada num pequeno sofá forrado de um tecido suave enquanto o irmão lhe cobria os golpes com um adesivo e gaze que encontrara num estojo do carro.
Mina preparava um caldo quente para todos, segurando ao colo o sobrinho carinhosamente. Este adormecera sobre o seu ombro, exausto.
No exterior, abatera-se sobre a ilha uma violenta tempestade.
-Pergunto-me se vão ficar bem. - Disse Sochin em voz baixa. - O vento lá fora está a assustar-me.
Makoto fechou o estojo de primeiros-socorros, deixou-o sobre uma mesinha e foi sentar-se junto a ela. Com um sorriso de alívio passou o braço sobre os seus ombros, abraçando-a contra si, e afagou-a de leve.
-Não te preocupes. De certeza que eles estão bem e devem estar a vir agora mesmo para aqui.

***

Ken'ichi acenou para Kuroi, que surgira à entrada da tenda. Aos seus pés, Hella jazia inconsciente.
-Então era aqui que estavas. - Constatou o mais novo, com uma expressão um tanto vazia. - Até estranhei que tivesses desaparecido sem me aperceber.
-Esta mulher escapou-se atrás dos miúdos.- Respondeu o outro, apontando-a com o olhar. - O Genji?
-Deve ficar inconsciente por um bom bocado. O suficiente para não nos encontrar na ilha quando acordar. Eles estão bem?
-Não deram por nós, a esta hora já devem estar na casa da Mina.
-Ainda... ainda bem.
Saindo pelo portal oculto no muro, percorreram em passos lentos o caminho que ia dar à cidade. Ken'ichi não desviava o olhar do meio-irmão.
-Passa-se alguma coisa.
-Ehm... não, de todo. Estava só a pensar numas coisas.
-Não era uma pergunta, era uma afirmação. Vais dizer-me o que aconteceu com aquele verme ou tenho de te interrogar aqui?
Kuroi suspirou.
-Ele sabe de tudo. De todos os acontecimentos que eu tenho andado a esconder, e ameaçou contar a mais pessoas.
Ken'ichi estacou.
-Estás a referir-te... àquilo?
O rapaz de cabelo castanho acenou com a cabeça.
-Por muito constrangedor que seja, não percebo porque é que ficaste tão preocupado. Se bem te conheço, a opinião dos outros sempre foi a tua última preocupação.
-Tu és meu irmão e conheces-me bem, não foi nenhuma surpresa quando soubeste. Apesar de nem ter sido suposto tu saberes dos rumores. Mas com aqueles dois é diferente, se eles soubessem...
-Tens medo que se afastem?
-Foram os meus primeiros amigos em muito tempo. Para mim isso chega.
O mais velho respondeu com um silêncio e um sorriso compreensivo. Queria sossegar o irmão, dizer-lhe que eles compreenderiam como ele antes fizera, que nada iria mudar mesmo que eles soubessem. Mas a sua idade já lhe permitia ter noção de que não passariam de palavras vãs contra o que era o mais lógico.
O vento rapidamente se tornou numa rajada que carregava consigo grossos pingos de chuva, e as nuvens iluminavam-se em relâmpagos violentos. Apressaram-se no caminho de terra batida por entre as ervas, tentando chegar à cidade para se abrigarem.

***

Quando finalmente alcançaram a entrada da cidade, depararam-se com uma surpresa desagradável.
Os portões, encerrados a partir de fora, estavam guardados por uma multidão armada que parecia ter vindo do acampamento de Genji. Maioritariamente homens de constituição física bastante desenvolvida, estavam munidos de bastões, adagas, correntes, espadas, mocas e algumas, poucas, armas de fogo.
-Não esperava um comité de boas-vindas. Kyrial tem realmente um povo hospitaleiro. - Ironizou Ken'ichi.
-São subalternos do Genji. - Respondeu Kuroi. - Não devem estar muito contentes agora que lhes resgatámos o ganha-pão.
-Não vão entrar vivos nesta cidade! Vão pagar bem caro a ofensa que fizeram ao nosso líder! - Gritou uma voz rouca e violenta do meio do grupo.
-Ken, fica aqui e ataca-os de longe. Vou tentar acabar com eles a partir dos extremos.
O rapaz de cabelo preto assentiu com a cabeça e retirou, com um gesto rápido, a enorme bazooka da faixa em que a transportava. Esperou que o irmão se dirigisse ao grupo da esquerda e atirou com ressalto contra o centro do bando antes que se dispersassem.
A explosão desviou a atenção dos mais isolados à esquerda, facto que Kuroi aproveitou. Usando a sua capacidade de transporte para se deslocar rapidamente entre eles, depressa tinha dado conta de um número considerável de inimigos. No entanto, os números não estavam do lado dos dois rapazes. Além disso, o mais novo começava a ressentir-se da luta contra Genji, sentindo dores perfurantes no estômago, músculos e articulações. Já Ken'ichi sucumbia ao peso da arma e aos ressaltos e começava a ficar sem munições.
"Isto é mau.", pensou Kuroi. "Já não aguentamos muito mais e eles são demasiados."
Um homem ainda bastante novo colocou-se à sua frente. Sem hesitação, o rapaz empurrou-o com um pontapé lateral, sentindo o desgaste a pesar-lhe, e fê-lo embater contra outros três.
A dor que sentiu nesse momento fê-lo aperceber-se de que estava fora de forma devido ao tempo de relativa calma de que gozava desde que saíra da Fighters Union.
-Kuroi! Recua!!! - Gritou Ken'ichi atrás dele.
Ao ouvir estas palavras, o rapaz socou um último indivíduo e transportou-se para junto do meio-irmão.
-Que aconteceu? - Perguntou, ofegante e limpando uma pequena mancha de sangue do lábio.
-Estou sem munições e já só tenho o revólver. Não vamos durar muito mais.
Kuroi assentiu.
-Também já estou nas últimas. Precisamos de outro plano.
-Cuidado! - Exclamou o mais velho, empurrando-o e disparando um tiro do revólver que retirou do cinto a uma velocidade incrível. Puxou o gatilho a tempo de atingir a perna de um dos homens que se aproximava por trás com um punhal.
-Obrigado... - Balbuciou o rapaz, atordoado.
A chuva e o vento tornaram-se mais fortes e um relâmpago cortou a escuridão da noite. À sua luz conseguiram avistar quase metade do bando que ainda restava de pé.
-Pergunto-me se é desta. - Murmurou o mais velho.
Kuroi levantou-se, enervado e batido pelos pingos de chuva grossa e fria. Caso o seu próximo ataque não surtisse efeito, estariam realmente condenados.
-Recuso-me a desistir agora. Recuso-me a morrer às mãos daquele cretino antes de descobrir quem matou a minha mãe.
Sem mais uma palavra, voltou à carga contra o grupo. Levou à sua frente quase uma dezena de homens ao abrir caminho até à porta com a sua força bruta, usando os seus corpos como defesa contra os restantes. Afastando-os com um movimento, respirou fundo e fixou o olhar no único que sobrava, o mesmo jovem que pontapeara há pouco atrás. Dirigiu-se a ele cambaleando e estacou à sua frente, de cabeça baixa e olhar sombrio e inexpressivo parcialmente oculto pelo cabelo que lhe tombava sobre o rosto em desalinho encharcado.
Pela maneira de andar e pelos movimentos Ken'ichi logo se apercebeu que o irmão já não estava plenamente consciente. O seu corpo movimentava-se de forma quase automática e forçada. Levantou um braço e ergueu-o atrás da cabeça.
-Es-espera! - Disse o homem, temendo pela sua vida. - Sei de uma coisa que te vai interessar!
Kuroi manteve-se estático, pronto a atacar.
-É algo que te vai ser muito útil! - Reforçou o outro, coberto por frias gotas de suor disfarçadas pela chuva.
Os olhos verdes-esmeralda do rapaz surgiram por entre as madeixas do cabelo castanho e encharcado, reavivando uma centelha de consciência.
Vendo que tinha a atenção do atacante, continuou:
-Genji-sama não é o único. Ouvi de um dos nossos informadores que a Deusa tomou medidas para reunir todos os Sucessores em Dreffel.
-Que queres dizer com "Sucessores"?
-As crianças que foram banidas... todos vocês... é o nome por que vos chamam agora. É tudo o que sei, juro!
-Então prossiga a festa.
Concentrando toda a sua energia restante no punho erguido, o rapaz tentou não se desequilibrar. A sua mão e antebraço adquiriram repentinamente uma estranha aura de luz negra. Com uma força irreal, desferiu um golpe a alta velocidade e o último homem tombou.
O rapaz de cabelo preto correu na direcção do irmão, amparando a sua queda, quando um grito de terror cortou os céus.
-É O FILHO DE ZHAI!!!!
Kuroi ouviu estas últimas palavras e tudo pareceu desmoronar-se à sua volta à medida que os seus sentidos se esvaíam.
"Fui descoberto."

***

-Sochin, acorda!!! Parou de chover durante a noite!!!
A rapariga abriu os olhos lentamente, afastando uma manta de lã que a cobria. Demorou uns segundos a aperceber-se de onde estava, até que finalmente se recompôs.
-Oh, céus... acabei por adormecer! - Exclamou, levantando a cabeça. - O Kuroi-kun e o Ken'ichi-san já voltaram?
Makoto acenou negativamente com a cabeça.
-Começo a achar que se passou algo, ainda não tivemos mais notícias deles.
-Também tenho um mau pressentimento. - Interrompeu Mina, que entrava no quarto nesse momento. - Ken'ichi-san garantiu-me que viriam logo para aqui quando tivessem desmantelado o acampamento deles.
-Talvez devêssemos ir procurar por eles nas nossas tendas, visto que ficam pelo caminho. - Declarou o rapaz. - De qualquer forma temos de estar preparados para partir ao anoitecer e ainda não temos as malas arrumadas e carregadas no carro.
-Carro...? - Interrogou-se Mina, meio confusa.
Sochin assentiu para o irmão, um pouco abalada. Sentia um aperto no estômago por ter passado a noite a dormir quando dois dos seus companheiros podiam estar em dificuldades.
Após um breve almoço preparado por Mina, os dois irmãos seguiram para o acampamento. À entrada da cidade depararam-se com sinais de luta e algumas zonas que pareciam ter sido chamuscadas do lado de fora do portão.
-Passou-se mesmo algo, eles estiveram aqui! - Exclamou o mais velho, alarmado.
Largou a correr, seguido de perto pela irmã, até chegarem às tendas. Ken'ichi encontrava-se sentado no chão à entrada de uma delas, tentando não se deixar vencer pelo cansaço.
-Ken'ichi-san!!! Que aconteceu? - Perguntou a rapariga, correndo para junto dele. Makoto juntou-se aos dois logo de seguida.
-Fizeram-nos uma espera à entrada e não conseguimos chegar à cidade sem lutar contra eles.
-E o senpai?
-Conseguiu desbloquear o caminho, mas receio que tenha sido demasiado para o corpo dele. Esteve demasiado tempo sem praticar a sério. Perdeu os sentidos e não sei se terá alguma fractura, por isso decidi trazê-lo para aqui e não o mexer muito.
O loiro entrou na tenda silenciosamente.
Kuroi estava deitado sobre um saco-cama, respirando com dificuldade. O seu rosto e braços tinham alguns golpes que não pareciam inspirar grandes cuidados.
Um aperto no estômago tomou conta do rapaz. Nunca esperou ver naquele estado o jovem que, além de ser a pessoa mais forte que conhecia, era seu amigo e companheiro.
"Se até ele ficou neste estado, como é que eu alguma vez poderia... neste mundo..."
-Já o vi em situações piores. - Comentou Ken'ichi. - Ele costumava ser um arruaceiro de primeira. Tenho a certeza de que vai estar em forma daqui a algumas horas para embarcar. Quando chegarmos ao continente poderemos preocupar-nos à vontade em arranjar-lhe cuidados médicos.
Sochin fitava-os de fora da tenda. Respirando fundo deu meia volta e começou a juntar as suas coisas. Destapou o jipe encostado à muralha e colocou um saco sobre o porta-bagagens, tentando distrair-se.
"Afinal ele também tem fraquezas. É mesmo estranho vê-lo assim, vulnerável. Normalmente está sempre tão calmo, parece inatingível, quase arrogante... E de repente parece-me tão humano."
Olhou para o irmão, que lhe devolveu o olhar. No fundo, ambos estavam de certa forma aliviados.

***

Ao fim de algumas horas, os preparativos estavam terminados. Makoto carregava as últimas malas para o carro com a ajuda de Ken'ichi. Sochin descansava sentada sobre o relvado, aproveitando os últimos raios de sol do dia.
-Yo.
Todos se voltaram na direcção da voz. Kuroi, já acordado e de pé, saía da tenda ainda com alguma dificuldade e apertando o estômago com um braço.
-Senpai! - Exclamou Makoto com um sorriso de alívio, indo ajudá-lo a manter-se de pé.
-Então, estás inteiro? - Perguntou o mais velho num tom divertido.
-Sem problemas. - Respondeu o rapaz, ganhando finalmente algum equilíbrio sobre os pés. - Devo ter sido atingido num ponto vital, mas nada que não possa aguentar até chegarmos ao continente.
-Nem sabes o susto que eu apanhei... - Suspirou o mais novo, afastando dos olhos a franja loira com um movimento rápido.
O outro espreguiçou-se como se de nada se tratasse.
-Preocupas-te demais, meu.
Makoto olhou para Ken'ichi, procurando algum apoio na sua indignação com aquela resposta, mas apenas obteve de volta um sorriso com um misto de troça e consternação. Sochin atirou o casaco azul, pendurado num dos bancos do carro, para cima de Kuroi.
-Não é altura para estarem com essas conversas, ainda vamos ter de meter o carro a bordo antes da partida.
O rapaz assentiu com um suspiro de resignação. Vestiu o casaco por cima da camisola cinzenta e dirigiu-se para o carro.
-Ela tem razão, vamos apressar-nos. - Disse, dando uma palmadinha no ombro de Makoto. - E acorda, precisamos de alguém sóbrio para conduzir.

***

-Levantar âncora!!! - Exclamou o velho capitão ao sinal afirmativo de Kuroi, que surgira no topo das escadas que levam ao porão. Os outros três juntaram-se a ele.
-Vou tentar pôr o sono em dia. - Disse o mais velho. - Até amanhã.
-Boa noite. - Despediram-se os outros três num coro dessincronizado.
-Nós também devíamos ir dormir. - Constatou Makoto. - Temos um longo dia de viagem pela frente amanhã. Além disso, quanto mais tempo passar a dormir dentro deste barco, melhor.
A rapariga abafou um risinho. O irmão estava com uma expressão profundamente afectada, enjoado com o balanço do barco.
-Vão andando. Eu fico aqui mais um pouco a tomar ar, provavelmente estou com os sonos trocados depois de um dia a dormir.
-Boa noite, então. - Disse o loiro. Sochin despediu-se com um breve aceno e seguiu-o para as cabines, deixando Kuroi sozinho no convés.
Debruçou-se sobre a balaustrada. O sol acabava de desaparecer no horizonte, deixando o barco à mercê da escuridão da noite e de uma aragem fresca que se levantava.
Um piar tímido vindo do chão cortou o silêncio teatral. Baixou o olhar. Junto aos seus pés, um pequeno vulto lilás batia as asinhas atarracadas para atrair a sua atenção.
-Com que então era aqui que estavas. - Constatou, pegando em Almoço com uma mão e colocando-o sobre o corrimão de madeira, fitando-o com um olhar ausente. - Quem diria que ias acabar por me seguir a mim depois de ter tentado deixar por tua conta.
O pequeno falcão voltou a piar, como se entendesse o que lhe dizia o rapaz.
Kuroi apoiou-se nos cotovelos e enterrou a cara nos braços.
A brisa fresca começava a ganhar força, mas não tinha frio. Aquela sensação fazia-o sentir-se sóbrio.
-Pergunto-me se não terei ido longe demais com isto tudo. Coloquei o Ken em risco, agora também aqueles dois... Tudo por algo que aconteceu há mais de 10 anos e que os outros já conseguiram ultrapassar. E ainda sou demasiado fraco.
Sentiu uma bicada amigável nos dedos e ergueu a cabeça. À sua frente, o animal pairava batendo as asas a custo e olhava-o com os seus dois olhos negros e brilhantes.
-Aprendeste depressa para uma cria sem mãe. Mas acho que percebi o que tenho a fazer, se realmente quiser um dia poder viver a minha vida como qualquer outra pessoa.

12 abril 2010

Capítulo XIII: Resgate

Makoto começava a ficar novamente impaciente à medida que vasculhava as tendas uma a uma. Tentando não ser visto, deslizou por uma passagem até à área seguinte. Engoliu em seco; à sua volta todas as tendas estavam guardadas, como se contivessem algo importante, mais que simples mantimentos. Sochin estaria provavelmente naquela zona, mas seria quase impossível não ser detectado.
Esgueirou-se silenciosamente pelo pouco caminho oculto que lhe restava. Estava quase a conseguir levantar um oleado quando pisou um galho seco que não tinha visto. O barulho alarmou um dos seguranças.
"Raios!", pensou para consigo, vendo a silhueta de um homem surgir por detrás da tenda. "Não vou conseguir escapar-me deste."
Respirou fundo com os olhos fechados, para se concentrar. Quando partira a correr estava bem consciente de que teria que lutar, mas agora que chegara o momento não se sentia preparado para um combate a sério.
"Quem me dera que o Kuroi-Senpai estivesse aqui... Ele sabe sempre lidar com este tipo de situações."
Aproveitou os últimos momentos a salvo para se posicionar, pronto para um ataque. O homem, alto e magro, usando apenas uma camisola sem mangas e umas calças, aproximou-se e estendeu uma mão, agarrando Makoto pelo colarinho sem que este, paralisado pela ansiedade, pudesse reagir. As suas mãos tremiam e nesse momento sentiu uma enorme raiva de si mesmo.
Por ter agido sem pensar.
Por ter deixado que Sochin andasse sozinha.
Por não ter dado a Kuroi oportunidade de o ajudar.
E por, num momento crucial, lhe faltar a coragem necessária.
Afinal, apesar de todo o tempo que passara a practicar, não passava de um miúdo de 14 anos que se metera no meio de um jogo cheio de perigos que nunca tivera em conta.
-Então, pigmeu? - Gozava o homem. - Não dizes nada? O gato comeu-te a língua? Oh, espera. Não me digas. Vieste salvar a menina e agora és tu quem precisa de ser salvo. Que foi? Não tens coragem para dizer nada? - Dizia, sacudindo-o com a mão.
Aquele riso provocador ecoava-lhe nos ouvidos e enchia-o de ainda mais raiva. Levantou um braço e agarrou a mão forte que o segurava, cravando-lhe as unhas na pele.
-Abre essa boca suja outra vez, - Cuspiu com desprezo. - e eu já te digo onde é que vais enfiar o que acabaste de dizer.
O homem ainda não tinha acabado de digerir estas palavras e já Makoto se soltava com um forte pontapé no seu estômago, atirando-se para trás. Retomou o equilíbrio e deu um passo em frente, de cabeça baixa e olhar desafiador cravado no adversário. A respiração ofegante normalizou-se e o ar frio deixou de o incomodar.
-Fedelho. - Cuspiu o homem, estalando os dedos. Levou a mão a uma bolsa que trazia presa às calças e tirou de lá uma ponta-e-mola de cabo vermelho sangue.
O rapaz sentiu um leve arrepio na espinha ao ver a lâmina de aço que reflectia a luz. A luta acabara de se tornar ainda mais desequilibrada.
Recordou-se do treino com Kuroi nessa manhã. Mesmo estando em frente a um adversário armado, não poderia ser demasiado diferente do que o amigo lhe ensinara.
Traçou um plano enquanto se esquivava por pouco a um primeiro ataque directo. Se conseguisse desarmar aquele homem, poderia ter uma hipótese contra ele.
"Um primeiro ataque, para distrair o inimigo... CÁ VAI!!!"
Carregou em frente com um só impulso, evitou a lâmina reluzente da ponta-e-mola e simulou uma tentativa de agarrar a mão que a segurava. Foi imediatamente repelido para o lado com um só movimento, o que não o surpreendeu. Era precisamente o seu plano.
Aproveitou-se da sua agilidade para escapar ao olhar do homem, que num instante o perdeu de vista e ficou sobressaltado. Foi surpreendido por um pontapé nas costas que apenas o magoou ligeiramente. No entanto, a surpresa fê-lo largar a faca da mão, ocasião que Makoto aproveitou. Quando o homem se preparava para a voltar a apanhar, viu o rapaz deslizar pelo chão entre as suas pernas e tomar a arma nas mãos. Rebolou dois metros para a frente e pôs-se de pé com um salto. Na sua mão esquerda brincava com a ponta-e-mola, agora de lâmina recolhida.
-Fedelho desgraçado, vou matar-te!!!
Makoto forçou um sorriso desafiador. O homem já não estava para brincadeiras e seria capaz de jurar que o mataria mesmo se tivesse oportunidade.
Desarmado, o guarda lançou-se em corrida desenfreada contra Makoto.
Este pressentiu a sua grande oportunidade e saltou também em frente, para os ombros do homem. Tudo o resto se desenrolou a uma velocidade incrível.
Em pleno ar, o rapaz sacou a lâmina de dentro do cabo. Passou de raspão pelo ombro do adversário e com o braço esquerdo, onde tinha mais força, agarrou-lhe o pescoço. Colocou-se por trás, apertando o braço fortemente na garganta do guarda e com a ponta-e-mola a postos para desferir um último golpe. Baixou-a repentinamente contra a sua cabeça, mas recolheu a lâmina no último segundo. Um baque do cabo no meio das sobrancelhas fê-lo cair no chão, sem sentidos. Makoto saltou para não cair também e sorriu de satisfação.
Derrubara o seu primeiro obstáculo.
Sem ver mais ninguém que tivesse reparado nele nos arredores, guardou a ponta-e-mola num dos bolsos do cinto e seguiu, com cuidado para não tropeçar no guarda derrubado.
Alguns passos mais adiante, avistou uma tenda quadrada guardada por duas figuras familiares: os mesmos dois homens que patrulhavam a entrada oculta do muro, cada um numa esquina em redor da entrada da tenda. O gordo parecia roer as unhas displicentemente, enquanto que o careca catava uma narina com o dedo mínimo e limpava a mão nas calças.
-Nojentooo! - Murmurou Makoto para consigo, fazendo uma careta e sacudindo a cabeça, arrepiado. Voltou a centrar a sua concentração na irmã e avançou sub-repticiamente para perto da esquina onde estava o gordo.
Contou até 10 para si mesmo e pigarreou de forma audível. Ao ver o homem parar de roer as unhas e dobrar a esquina sem uma palavra, curvou o tronco para baixo e disparou um pontapé semicircular que lhe acertou em cheio no nariz. Caiu no chão e Makoto deu-lhe uma pancada na nuca com o sabre da mão, deixando-o inconsciente antes que pudesse gritar. Voltando a inspirar fundo, o rapaz olhou em volta em busca de algo para neutralizar rapidamente o outro. Encostado à armação de uma tenda próxima estava um monte de tábuas de madeira.
O careca continuava a catar o nariz, parando por vezes para contemplar a massa pegajosa que se prendia na unha amarelada. Atirou-a para a relva e voltou a esfregar a mão na anca.
-Hey, ranhoso!!!
No mesmo momento em que se voltou, o homem levou com uma forte pancada de tábua em cheio na cabeça. Nem teve tempo de se aperceber do que o atingira.
-Que idiota! - Proferiu Makoto, com uma expressão de troça.
Olhou de soslaio pela abertura da lona.
Destacava-se, no chão, a sombra de um rapaz sentado num cadeirão. Logo a seguir apercebeu-se de uma mulher de cabelo preto encaracolado e curto, toda de preto, que mantinha sob vigia duas crianças. A primeira era um rapazinho pequeno, deitado no chão de costas. A segunda era Sochin.
-SOCHIN!!!- Gritou, entrando pela tenda dentro, ofegante. Correu para a irmã, ignorando a mulher, ajoelhou-se junto dela e abraçou-a.
-Onii-chan... - Murmurou a rapariga, enfraquecida. Com uma pequena lágrima no canto do olho, descansou a cabeça no ombro do irmão. - Não devias ter vindo sozinho.
Makoto voltou a cabeça mesmo a tempo de ver Hella brandir um chicote na sua direcção e resvalou para o lado, sendo atingido apenas num ombro.
Já exausto por se ter infiltrado, era incapaz de se esquivar. Era ameaçado por muitos outros golpes, cada vez se desviando menos. A voz sarcástica do rapaz na penumbra rebentava numa gargalhada profunda e sádica com cada chicotada.
-É tão patético!!! - Berrava pelo meio dos risos. - Nem se conseguiu conter ao ver a irmã!
Levado pelo divertimento que sentia, levantou-se e saiu da sombra.
-Podes parar, Hella. Este palerma não se consegue mexer mais.
Ao ver o rosto do rapaz, Makoto cerrou os punhos no chão e o rosto ferido contraiu-se num esgar de ódio. Desejou profundamente não ter entrado a correr, pois nunca poderia vencer aquele adversário.
Sochin trincou o lábio inferior, tentando conter o choro de medo que lhe teimava em sair.
À frente de ambos, Genji juntava-se à estranha mulher com um sorriso vitorioso.
De repente ouviu-se um estampido e algo passou de raspão pelo seu ombro a grande velocidade. Os olhares dirigiram-se para a entrada; um jovem alto, mais velho que Genji, empunhava um revólver contra este. O cano da arma fumegava após disparar um tiro.
-Ken'ichi-san!!! - Exclamaram os irmãos, surpreendidos.
Ken'ichi fez sinal a Makoto para que se levantasse enquanto as atenções estavam centradas em si. O mais novo assim fez, de cabeça baixa, envergonhado.
Atrás do mais velho surgiu Kuroi, com uma expressão séria e inclinando a aba do chapéu sobre os olhos.
-Tal e qual como eu desconfiava... Genji. quem mais se serviria dos seus poderes para impressionar e reunir rufias? - Disse, em tom baixo e muito calmo.
Makoto baixou ainda mais o olhar para evitar cruzá-lo com o de Kuroi. Tentou esgueirar-se para desamarrar Sochin, mas Hella viu-o e aproximou-se dele com o chicote em riste.
Ken'ichi disparou outro tiro de aviso dirigido à mulher.
-Para trás. Garanto-te que o próximo não vai passar ao lado.
Com uma expressão de ódio nos olhos, esta recuou.
Kuroi fitou Genji desafiadoramente.
-Com que então, agora é a sério.
O outro retribuiu o olhar com um sorriso cínico. No instante seguinte estava atrás dele, empunhando uma adaga junto ao seu pescoço, que lhe roubara sem que se desse conta.
Com um movimento rápido do corpo, Kuroi libertou-se com um pontapé para trás. Apesar de o impacto ter sido fraco, foi o suficiente para desequilibrar o outro e fazê-lo desviar a lâmina.
Makoto desamarrou a irmã com desenvoltura e agarrou-a junto a si, aliviado. Esta soluçava de medo, mas a presença do irmão confortava-a.
Kuroi voltou-se por momentos para ambos.
-Não parem aí, saiam deste sítio rapidamente! - Gritou.
Os dois acenaram sem o enfrentar e correram por detrás do amigo. Este mantinha um olho em Genji para que não os seguisse.
O loiro olhou para o céu. Sem se dar conta, o sol tinha-se posto.
Respirou fundo, sentindo-.se horrivelmente. No fim de tudo nem tinha servido para nada.
Ouviu um restolhar na cobertura da tenda e voltou-se. Por debaixo da lona, uma criança de cabelo vermelho-escuro arrastava-se para o exterior, debatendo-se com as cordas que o amarravam.
-Dejai-kun! - Exclamou Sochin, correndo a desamarrá-lo.
-É este o miúdo que raptaram da cidade?
A rapariga acenou.
-Devíamos levá-lo à família.
O pequeno olhava para ambos, meio constrangido. Não disse uma única palavra.
-Seja, E a seguir vamos para o nosso acampamento, visto que já está muito escuro. amanhã ao anoitecer temos de estar prontos para partir.
Sochin pegou no rapaz pela mão com um sorriso e caminharam na direcção da cidade.
-Tenho fome. - Murmurou ele finalmente.
Makoto voltou-se para Dejai e estacou.
-Não é muito, -Disse. - nem grande coisa, mas se quiseres podes comer isto.
Esticou para ele uma mão que segurava uma bola penugenta lilás com dois olhos e um bico.
-Nii-chan!!! Nem penses! - Guinchou Sochin.
O rapaz suspirou.
-Tens razão. Não faz sentido comer o Almoço à hora de jantar.
Calou-se quando a irmã lhe lançou um olhar furibundo. Dejai pegou no animal com as duas mãos e sorriu.
-Um falcão lilás... é a primeira vez que vejo um, são muito raros!
Sochin sorriu de volta.
-Já calculei que fossem. Anda, a tua família deve estar preocupada.
-Está bem. - Respondeu o pequeno, voltando a dar a mão à rapariga e colocando o falcão sobre o ombro.

***

-Fartei-me. Fartei-me de ser sempre o mais fraco e de todos vocês fingirem que eu não existo. Fartei-me de perder contra ti. Fartei-me dos teus sermões e dessa tua maneira de ser, como se fosses um irmão mais velho a bater no mais novo quando ele faz asneira. Estou farto! KUROI!!!
O rapaz de cabelo castanho fitava Genji com seriedade.
-Mais farto estou eu de ti e da tua mania de te armares, e por acaso vês-me a reclamar como um palerma?
-NÃO ME PROVOQUES!!! - Gritou o outro. - Eu faço o que quero, e neste momento quero acabar contigo!
-Boa sorte a tentar. - Respondeu Kuroi. - Não posso deixar que continues a usar os teus poderes para benefício próprio dessa maneira.
Genji soltou uma gargalhada seca.
-Não te faças de santo, Kuroi. Fui pessoalmente à FU para me oferecer como encarregado da tua captura e ouvi alguns rumores bastante interessantes dos teus antigos colegas. Quem diria que o menino bonzinho teve uma fase malvada...
Kuroi sentiu as mãos tremerem e o suor a começar a escorrer na sua testa.
-É claro, - Continuou o outro. - para alguém como eu não seria nada de mais. Mas aposto que tu não queres que se saiba o tipo de coisas que já fizeste, ou queres?
Fora de si Kuroi atirou-se ao outro, que se deixou derrubar calmamente, e agarrou-o pelos colarinhos.
-Sacana!!! O que é que tu sabes? - Berrou, sacudindo-o furiosamente.
Genji sorriu para ele com malícia.
-Quem sabe... Juro que fiquei abismado com o que os teus amiguinhos me disseram de ti!
Voltando a uma normalidade afectada, o rapaz largou o outro e recuou.
-Era só um miúdo, não sabia o que estava a fazer. Eu não...
O rapaz de cabelo preto transparecia puro divertimento. Aproximou-se dele como se não fosse nada de mais e desferiu-lhe um murro no estômago, fazendo-o curvar-se e cair nos joelhos.
-Incrível. Bastou falar-te nisto e ficaste absolutamente sem defesas. Que ridículo.
Kuroi apertava a barriga com um braço e apoiava-se noutro, enraivecido.
"Acalma-te!", pensava para consigo. "Não tens nada a temer. Tu já não és assim!"
Ergueu o olhar ameaçador para Genji, refreando os nervos. Saltou em frente e desapareceu no ar, Genji voltou-se para trás a tempo de o ver reaparecer nas suas costas, desapareceu de novo e foi surgir acima do adversário. Esticou uma das pernas e desceu-a, pontapeando o outro no ombro com o calcanhar usando toda a sua força e saltou para o lado. Voltou-se, correu para ele enquanto caía e desferiu-lhe um último golpe, uma pressão sobre um ponto no lado do pescoço que actuou como um sedativo. Ergueu-se, vitorioso, e olhou em volta à procura de Hella, mas esta aproveitara a luta para escapar.
Inspirou fundo e tentou afastar da sua mente as sombrias recordações que Genji despertara. eram um passado já enterrado, pensou. Não devia pensar mais nisso.
Coçou a cabeça displicentemente, voltou as costas e saiu.
Na sua mente apenas remoía a ansiedade do que poderia acontecer se a Fighters Union tivesse mais enviados em Dreffel. Tinha de ser o mais rápido possível a voltar a casa e seguir com a investigação antes que fosse apanhado por algum ataque em larga escala, mas não era a própria segurança que o inquietava.
Nesse momento apercebera-se de que tinha três pontos vulneráveis que estavam em perigo pelo simples facto de estarem consigo.
Os seus amigos.

01 março 2010

Capítulo XII: Ataque inesperado

Kuroi e Ken'ichi chegaram em pouco tempo ao acampamento. Enquanto Ken'ichi reunia as munições, o mais novo procurava Makoto e a irmã nos arredores.
Foi encontrar o rapaz junto a uma árvore e um pequeno lago, as únicas coisas que se destacavam na paisagem uniforme de ervas altas.
-Então estás aqui! - exclamou.
O loiro voltou-se para ele, assentindo.
-Estava a ver se encontrava a Sochin. Estou preocupado, ela foi dar uma volta com aquele bicho lilás e ainda não voltou. Estou à espera que apareça. Mas passou-se alguma coisa?
Kuroi acenou com a cabeça.
-Eu e o Ken soubemos que um grupo de humanos está a chantagear os cidadãos. Raptaram um miúdo e estão a usá-lo como refém para conseguirem provisões. Sabemos que estão armados, mas não fazemos ideia das capacidades deles. Vamos tentar atacá-los no seu acampamento a sul daqui.
-Eu e a Sochin também...?
-Não. Vocês estão mais seguros aqui. - Respondeu Kuroi, entregando-lhe dois pedaços de pergaminho com inscrições. - Se não voltarmos até amanhã à noite, quero que vão para o porto da cidade e apanhem o navio sem nós.
Makoto mostrou-se visivelmente indignado.
-Nem pensar! - Exclamou, arrancando-lhe os bilhetes da mão bruscamente. - Não vou deixar que vocês fiquem com a diversão toda. Vou também e ponto final!
O mais velho suspirou.
-Nem penses em meter-te em nenhuma luta. Ainda não estás minimamente preparado!
-Bah. Que seja. Só não quero ficar aqui à vossa espera. - Respondeu o loiro.

***

Não muito depois, os três rapazes estavam prontos para partir.
Makoto inquietava-se, cada vez mais desconfiado com a ausência da irmã durante tanto tempo. Queria ter a certeza de que ela estava bem antes de partir.
De relance, viu um pouco do interior da sua tenda. Estava mal fechada.
-Que se passa? - Perguntou Kuroi, ao ver o amigo dirigir-se para o interior. - Esqueceste-te de alguma coisa?
-Não é isso. Alguma coisa está errada com esta tenda.
Deixando Ken'ichi com os últimos detalhes do ataque, foi dar uma olhadela.
A tenda estava mergulhada no caos. Os sacos-cama, já guardados, estavam espalhados no meio de malas e cobertores revirados. A própria estrutura parecia mal encaixada, como se alguém tivesse entrado à força.
Makoto ficou paralisado, adivinhando o que acontecera. Kuroi colocou a mão no seu ombro, tentando acalmá-lo. O rapaz começou a tremer de nervosismo.
-O que é que aconteceu aqui...? - Murmurou, com a voz a tremer. - O QUE É QUE AQUELES MALDITOS LHE FIZERAM???
Levantou-se sem mais uma palavra e largou a correr sozinho, cego de raiva. Kuroi tentou impedi-lo, mas algo lhe disse que seria melhor não o fazer. Só arranjaria problemas.
Correndo a uma velocidade de que nem se sabia capaz, Makoto correu ao longo da muralha até o perderem de vista. Na sua mente, o único pensamento que cabia era agora o de salvar a sua irmã.

***

-O que é que fazemos agora? - Perguntou Ken'ichi, apanhado de surpresa pela súbita fuga de Makoto.
-Parece-me bastante óbvio. - Respondeu Kuroi. - Temos de o alcançar antes que algo de mais grave aconteça.
O mais velho acenou, levantando-se para alcançar o irmão, que já começara a correr.
-Mas não entendo. Porque é que não o impediste?
-Ele não ia parar, fizesse eu o que fizesse. Só se iria enervar ainda mais. - Respondeu o mais novo. - Era capaz de jurar que ele está disposto a dar a vida para trazer a irmã de volta, se fosse necessário.
Ken'ichi sabia bem o que o irmão estava a pensar. Apesar de se tratarem entre si como iguais, estavam longe de ter a mesma proximidade de Makoto e Sochin. No entanto, era estranho como muito provavelmente estariam dispostos a fazer o mesmo.
Aumentaram a velocidade à medida que ganhavam impulso. Ainda era possível ver as marcas das pegadas de Makoto na terra húmida e nas ervas dobradas, apesar de conseguirem perceber que o rapaz já ia bastante à frente. Seria impossível alcançá-lo antes que chegasse ao acampamento.
-Não podes transportar-nos até lá? - Perguntou o mais velho.
Kuroi acenou negativamente.
-Só consigo usar o transporte a distâncias muito curtas e dentro do meu campo de visão. Com estas limitações, demoraríamos mais do que a correr.

***

Makoto continuava a apressar-se na direcção do acampamento. Já o avistava na orla da muralha, distribuído por um espaço surpreendentemente amplo. As tendas, mais do que um simples acampamento precário, pareciam formar um autêntico anexo da cidade rodeado por um alto muro de troncos cheio de farpas que impossibilitavam a escalada. Estavam ali para ficar.
Deu uma volta em redor, sem sucesso. O muro era totalmente fechado.
"Bolas, não contava com isto!", lamentou-se para consigo.
Agora que parara, a sua raiva tornara-se frustração. Sochin estava lá dentro, algures, e não era capaz de a resgatar antes que algo de mal lhe acontecesse.
Sentou-se na terra, encostando-se no muro entre duas farpas e dando uma pequena cabeçada que nem se deu a sentir, absorto no seu desespero, com o rosto e os braços batidos pelo vento gelado. Se não encontrasse rapidamente uma entrada, ia congelar ali.
De repente ouviu um pequeno estalido, parecido com um partir de galhos finos. voltou-se para o muro mesmo a tempo de ver um pequeno animal lilás, meio assustado, que saía do interior e atravessava o muro como se ele não estivesse lá.
-Almoço! - Exclamou, pegando no falcão com ambas as mãos. Este bicava-lhe os dedos suavemente, reconfortado pela presença de alguém conhecido.
Intrigado, foi de gatas até ao sítio onde tinha visto o animal atravessar. Tacteava a madeira quando a sua mão a atravessou completamente num ponto, causando-lhe um enorme arrepio espinha acima.
"Muito bem, é aqui.", pensou. Começava a adiantar-se, quando se lembrou de que Kuroi e Ken'ichi provavelmente viriam no seu encalço e poderiam não dar com a entrada.
Tirou do cinto um rolo de corda, atou uma ponta à farpa mais próxima e atirou o resto para o interior, de modo a que ficasse suspensa entre os dois lados. Desse modo aperceber-se-iam da passagem dissimulada com o portal.
Engoliu em seco e atirou-se repentinamente, para evitar sentir o mesmo arrepio.
Foi cair no chão de terra seca, esfolando a cara e os cotovelos. Pelo menos o ardor distraía-o do nervosismo. Mas agora que entrara, punha-se um novo problema: as tendas eram às dezenas e seria impossível procurar por Sochin numa delas sem ser descoberto.
-Bolas! - Exclamou.
Depois entrou em pânico; ao que parecia, dois homens tinham-no ouvido e aproximavam-se para averiguar de onde viera o som.
-Também ouviste uma voz? - Perguntou um homem, surgindo por detrás de uma tenda.
-Sim, acho que ouvi algo. - Respondeu outro.
Apertado à pressa entre uma tenda e o muro, Makoto sentia que o seu coração lhe ia sair pela boca a qualquer momento.
O primeiro homem era gordo, com o cabelo negro, liso e oleoso a cair-lhe quase até aos ombros. Tinha uma barba também negra e crespa, que parecia não ser aparada há semanas. O outro era alto, muito musculado e calvo. Os olhos minúsculos mal se notavam no meio do rosto cheio e antipático. Os braços estavam cobertos de tatuagens de arame farpado, que parecia rasgar a carne ao enrolar-se sobre ela. Era uma visão particularmente desagradável.
-Olha-me só aquilo! - Exclamou o gordo, apontando para baixo.
Almoço, que seguira Makoto de volta para o interior, não se escondera com ele.
"Se vem ter comigo agora, estou feito!", pensou o rapaz. "Bicho estúpido."
-Achas que foi o pássaro que falou? - Interrogou o careca, coçando a calvície com ar indignado.
-Não é óbvio? Toda a gente sabe que os papagaios como ele conseguem falar!
Makoto fez um esforço para não rebentar a rir. "PAPAGAIO? Mas estes tipos são estúpidos?"
-Talvez tenhas razão. Cá para mim enfiaram-no cá dentro para nos distrair e estão a tentar invadir pelo outro lado!
-Aniki, és tão inteligente! Que perspicácia!
-Vamos, temos de parar esta invasão! Não há tempo a perder!!!
Dito isto, largaram os dois a correr na direcção oposta até o rapaz os perder de vista.
-Mas que dois idiotas. - Murmurou. Saiu de detrás da tenda e recolheu o falcão no bolso das jardineiras. Correu para a tenda mais próxima, ajoelhou-se e levantou um pouco da lona para espreitar. Nem sinais da irmã.
Continuou a fazer o mesmo nas tendas em redor. Enquanto os homens estivessem concentrados no outro extremo, teria tempo de sobra para averiguar.

***

-Porco, traste!!! Vais pagar bem caro por isto, ouviste?! - Gritava Sochin, enfurecida.
Estava de joelhos no chão de uma tenda, com os braços e os pés atados. Uma mulher de cabelo encaracolado, com olhar paralizante e vestida com roupas de couro negro e justo, mantinha-a no chão agarrando-a pelo cabelo. Sentado num cadeirão alto, oculto pelas sombras, estava um jovem cujo rosto não conseguia discernir com clareza.
-Cala-te, sua peste! - Disse a mulher, dando-lhe uma joelhada nas costas que a fez tossir um pouco de sangue. - Mostra algum respeito na presença do nosso líder!
-Não faz mal, Hella. Ela vai aprender. Não a magoes demasiado, é humana. - Interrompeu o rapaz, com uma voz que não lhe era estranha. - Temos de a manter viva... ainda. Será muito mais divertido acabar com ela em frente dos amiguinhos... Não é, Sochin-san?
Seguiu-se um riso escarninho de arrepiar a alma.
-ÉS DESPREZÍVEL!!! - Voltou a proferir a rapariga, calando-se de seguida. Hella começava a puxar-lhe o cabelo com mais força, causando-lhe dores que lhe davam vontade de gritar.
A um canto, um rapazinho amarrado quase passava despercebido. Deitado de lado no chão, voltado para o oleado, o pequeno de cabelo vermelho-escuro que descaía sobre os olhos estremecia com cada palavra, aterrorizado. Murmurava para si mesmo a mesma frase, inúmeras vezes, com a sua voz trémula e embargada de medo:
-Eu quero ir para casa.

07 janeiro 2010

Capítulo XI: Ameaça

-Muito bem agora, ataca-me com tudo o que tens!
-Hai!
Makoto calmamente deu três passos de costas para Kuroi. Rodou sobre os calcanhares, voltou-se de repente e começou a correr na sua direcção. Kuroi curvou ligeiramente o corpo para a frente, preparando-se para receber o golpe, mas com as mãos nos bolsos das calças.
O mais novo concentrou toda a sua força no braço direito, ergueu o punho e preparava-se para o lançar contra o outro assim que o alcançasse.
Com apenas uma mão, o rapaz agarrou o punho de Makoto e impediu o golpe. Com um gesto do pulso, largou-o e empurrou-o de volta para trás, nunca tirando a outra mão do bolso.
-Ainda está muito fraco. Tens de te concentrar mais. - Disse. - Não podes dar espaço para uma defesa.
-Eu sei! - Respondeu o loiro, ofegante. - Mas por onde quer que eu ataque tu acabas sempre por te defender, e já estamos nisto há meia hora!
Kuroi deliberou por uns segundos.
-Agora ataco eu, e tens de te tentar defender. Observa todos os movimentos que eu fizer para passar a tua defesa e depois tenta copiá-los.
-O quê, vais atacar-me? - Perguntou o outro, alarmado. - Se me acertares não vou conseguir mexer-me durante uma semana. Além dos teus poderes ainda tens essa força descomunal!
-Já te disse que me ia conter. Nem te vou acertar, só quero que memorizes a maneira como deves anular uma defesa.
Com um suspiro, Makoto acenou com a cabeça e preparou-se para defender.
Kuroi afastou-se três passos e correu para Makoto, como este tinha feito anteriormente. Tentando não ser demasiado veloz disparou um murro, que o outro desviou para a sua esquerda com um movimento rápido do braço. Vendo-se atirado na direcção do chão, o mais velho abriu a mão e apoiou-se sobre ela, estabilizou o apoio com a esquerda e arriscou um golpe com a perna na direcção de Makoto, que parou a escassos centímetros do seu nariz.
O rapaz tremia ligeiramente, refazendo-se daquele falso golpe inesperado.
-Percebeste a ideia? - Disse Kuroi, voltando a apoiar-se nos pés e esfregando as mãos para limpar a terra.
-A-acho que sim. Se o primeiro golpe falhar, tenho de usar uma parte livre do meu corpo para fazer outro antes que o adversário tenha tempo de redireccionar a defesa.
-Errado. O primeiro golpe vai quase sempre falhar se estiveres a lutar com alguém experiente, então não te deves concentrar nele. Ao correr, concentra a tua energia no ataque real e utiliza o primeiro como um engodo. Assim que fores travado, tens menos de um segundo para penetrar a defesa, dependendo do tempo de reacção da outra pessoa.
-Waaah... isso é muito confuso, já me dói a cabeça! - Exclamou Makoto.
Kuroi deu uma pequena gargalhada. Deixou-se cair para o chão coberto de relva, sentou-se e inspirou fundo.
-Nunca esperei um dia ser eu a ensinar isto a alguém. Foi o meu pai que me ensinou a lutar, durante o pouco tempo que vivi com ele. Nessa altura era bem mais difícil, ele queria que eu vivesse para isto.
-Porque é que ele te ensinou? - Perguntou o mais novo, sentando-se junto ao amigo. - Pensei que ele não se importava.
-Porque tinha a ganhar com isso. Com as minhas capacidades, ele achou que poderia fazer bom uso de mim pondo-me a trabalhar para a máfia, como ele.
-Já se esperava.
-Pois.
-Nii-chan! Kuroi-kun!
Os dois rapazes voltaram-se. Sochin voltara da cidade e trazia-lhes um cesto com o almoço.
-Ainda estão aqui? Mas vocês não descansam nunca?
-Ora essa, estamos a descansar agora mesmo. - Replicou Makoto.
-Sochin, sabes do Ken'ichi? - Perguntou Kuroi. - Pensei que ele te tinha ido acompanhar.
-Ele disse que ficava a dar uma volta pela cidade e almoçava por lá, por isso vim eu trazer-vos isto. - Respondeu a rapariga, sentando-se sobre os pés e poisando o cesto na relva.
Começou a distribuir algumas sanduíches sobre uma toalha, até que reparou em Kuroi.
-Porque é que és tu que tens ar de ter levado uma sova e não o meu irmão? - Perguntou, admirada.
Kuroi olhou para as suas mãos. Estavam, de facto, bastante sujas e tinham alguns arranhões. Tentou limpá-las um pouco nas calças e afastou uma madeixa de cabelo castanho que lhe tinha caído para os olhos sem que se apercebesse.
-Provavelmente é porque eu nem lhe cheguei a tocar mas deixei-o acertar-me para ele calcular a força de que precisava.
"Deixou-me acertar-lhe... estou a sentir-me tão insignificante de repente.", pensou Makoto para consigo, afectando um sorriso.
Já haviam passado cinco dias desde que estavam em Dreffel. Aos poucos, todos se tinham começado a habituar às diferenças entre os dois mundos. Aproveitando o facto de Mera e Edgar os terem perdido de vista ao entrarem noutro qualquer ponto aleatório daquele mundo, Kuroi começara a treinar Makoto.
No entanto, algo o inquietava. Já não estava habituado à calma, e mantinha-se atento a qualquer pormenor fora do comum.
Sentiu algo a bicar-lhe o joelho amigavelmente. O pequeno falcão lilás, com um lenço vermelho amarrado no pescoço, saltara de dentro da cesta e olhava para ele à espera de alguns restos. Sochin desviou o olhar, embaraçada.
-Sochin, mas tu andas a guardar esta coisa contigo? - Perguntou Makoto, indignado. Ainda não se tinha esquecido das dores que a bicada do animal lhe causara. - Puseste-lhe um lenço e tudo... Este bicho não é um animal de estimação! É uma besta em miniatura! Um monstrinho!
Enquanto falava, a cria de falcão banqueteava-se no seu prato com a apetitosa sanduíche de presunto. Ao olhar para baixo, viu-a acabar com as últimas migalhas que haviam restado do pão de forma.
Ainda mais envergonhada, Sochin pegou-o nos seus braços, voltou-se ligeiramente na outra direcção e ficou completamente vermelha.
-Devíamos deixá-lo ir, é um animal selvagem. - Disse Kuroi.
-Eu tentei! - Respondeu a Rapariga. - Mas sempre que o poisava no chão e ia embora ele seguia-me. Não fui capaz de o deixar ali, ainda é tão pequenino e frágil... E é tão fofinho...
-Bah, és mesmo rapariga. - Atirou o rapaz mais novo. - Agora não nos vai largar! E quero saber como é que essa bestazinha me vai compensar pela sandes.
-Bom, se tem estado sempre connosco já não vale a pena tentar libertá-lo... Deve pensar que somos as mães dele, ou coisa parecida. - Constatou o mais velho. - Nesse caso vamos ter de cuidar dele até ser adulto.
Makoto fez uma expressão de indignação, voltando-se para o amigo como quem não esperava ser traído daquela forma.
-E devíamos dar-lhe um nome! - Exclamou Sochin, sorrindo de felicidade.
-Eu tenho o nome perfeito para essa coisa. - Cortou o irmão. - Almoço.
-Nii-chan! Não estás a pensar... Há ali mais sandes! Não te deixo comê-lo!
Com a mente cheia de pensamentos maquiavélicos, o rapaz fez uma expressão inocente e esforçou-se por pegar carinhosamente no falcão.
-Estava só a brincar, até simpatizei com ele!
-Ah, que bom que gostas dele! - Exclamou a rapariga, acreditando em cada palavra do que o irmão disse.
Kuroi suspirou. Não acreditava minimamente que o amigo tivesse repentinamente começado a gostar do pequeno animal lilás, mas também sabia que ele não seria capaz de o comer.
-Mas então... continuamos a treinar? - Perguntou o mais novo, largando o falcão que lhe começava a bicar os dedos com uma evidente antipatia.
-Agora não, mais daqui a pouco. - Respondeu Kuroi. - Lembrei-me de que precisamos de comprar passagens de barco ou vamos ter de esperar mais uma semana para chegar ao continente. Pelo caminho vou ver se encontro o Ken'ichi.
Os dois irmãos assentiram.
-Nós ficamos aqui a tomar conta do acampamento. - Disse Sochin.
O rapaz assentiu, cobriu-se com uma capa que guardava dentro da sua tenda e caminhou na direcção da entrada de Kyrial.

***

Ken'ichi vagueava pela cidade, aborrecido.
Fazia-lhe falta a acção, as lutas inesperadas a que se habituara sempre que estava com o irmão mais novo.
Com um suspiro, empurrou a porta de uma taberna e entrou.
Os clientes e o barman, um velho de aspecto quase humano e barba grisalha, olhavam para ele com estranheza. Uma jovem de longos cabelos côr de vinho envergando um avental aproximou-se dele apreensivamente.
-B-boa tarde, deseja alguma coisa?
Mirou-a de alto a baixo. Era muito bonita, com a pele ligeiramente morena e uma figura delicada, mas aparentemente passava-se algo de errado com ela.
-Um prato de carne e arroz e uma caneca de cevada. - Disse. Sentou-se e apoiou a cara numa mão. Ao seu redor todos demonstravam o mesmo receio.
"Pergunto-me se o Kuroi e os miúdos terão reparado nisto. Esta gente dá a impressão de que vai fugir a sete pés se eu levantar um dedo."
-Aqui tem. - Disse ela, pousando um tabuleiro na mesa e dando meia-volta rapidamente.
-Espera aí! - Ordenou Ken'ichi, tomando-a pelo pulso para que não fugisse.
A rapariga abafou um grito, tentando libertar-se com um movimento repentino.
-Hey, não te vou fazer mal! - Sussurrou-lhe. - Porque é que toda a gente está assim desde que eu entrei?
Ela limitava-se a tremer, fitando-o com um misto de choque e pavor. Os outros, distribuídos pelos cantos, murmuravam entre si sem se atreverem a intervir.
-Oh, tanto faz. - Disse, largando-a com uma expressão de profunda indiferença. - Se não queres responder, não vale a pena obrigar-te.
De súbito, a jovem pareceu mais calma.
-Não é um deles, pois não? - Perguntou timidamente.
-"Um deles"?
-Peço-lhe, tem de desculpar a Mina. - Intrometeu-se o barman, com a sua voz rouca. - As coisas andam muito tensas entre nós e alguns humanos. Há poucos dias chegou um grupo do continente que raptou o sobrinho dela e estão a usá-lo para nos chantagear.
Mina assentiu.
-Cuido do Dejai desde pequeno, porque a minha irmã morreu durante o parto. Apanharam-no à saída de casa e ameaçaram-nos com coisas como essa. - Explicou, apontando para o cinto de Ken'ichi, onde escondia um pequeno revólver.
-Eu trago isto para me defender. - Explicou, mostrando-lhes a arma segurada pelo cano. - Não vou matar ninguém.
Voltou a guardá-lo, pegou na caneca e tomou uma golada, mantendo-se incrivelmente calmo. - Em que direcção foram depois?
-Montaram um acampamento a sul da muralha.
-O meu grupo está a leste. Vou falar com o meu irmão e de certeza que ele estará disposto a ajudar-vos também. Prometo que vamos resolver isto.
Continuou a refeição, sob os olhares intensos de todos os clientes. Pareciam fitá-lo como a um louco. Apenas Mina parecia mais reconfortada, olhando-o de soslaio com esperança. Ao terminar, deixou um saco com dinheiro em cima da mesa e abalou sem uma palavra.
-Não sabe o que diz. - Murmurou um homem.
-Estão a cavar a sua sepultura... - Lamentava-se uma idosa, por entre baforadas de um cachimbo.

***

-Cinco pesos por pessoa?!
-A partida é amanhã à noite. Não posso cobrar menos a passageiros de última hora. - Respondeu o capitão, um velho de barba e bigode fartos e grisalhos, que usava um uniforme de marinheiro pelas costas.
"Velho fuínha, claro que pode cobrar menos. O navio é dele.", pensou Kuroi, procurando o dinheiro nos bolsos do interior da capa. Entregou-lho com um suspiro disfarçado e voltou as costas, caminhando com as mãos nos bolsos, entediado.
Vagueou durante alguns minutos pelas ruas, totalmente alheio aos olhares indiscretos dos habitantes. Quando chegassem ao continente não seriam decerto tratados com tanta estranheza, por isso não o incomodava.
Desviou o olhar para uma esquina. O seu irmão Ken'ichi acabara de passar a correr.
-Oy, Ken!!! - Exclamou, acenando para lhe chamar a atenção.
O outro respirou de alívio ao vê-lo e juntou-se a ele.
-Estava mesmo à tua procura. - Disse. - Enquanto estava a almoçar contaram-me uma coisa bastante curiosa.
Enquanto caminhavam para o seu pequeno acampamento, o mais velho foi explicando aquilo que ouvira na taberna. Kuroi ouvia atentamente, sem pronunciar uma palavra.
-Então passa-se mesmo algo. - Disse o mais novo por fim.
-Sim. Estava a pensar se há algo que possamos fazer. Devemos ser capazes de ajudar esta gente.
-Talvez, mas francamente não me apetece.
Ken'ichi mostrou-se indignado.
-Porque é que dizes isso? Podemos perfeitamente tentar acabar com esta situação!
-Duas razões muito simples. - Continuou Kuroi, mantendo-se indiferente. - Em primeiro lugar, o navio parte amanhã à noite e o capitão não nos vai devolver o que paguei pelas passagens caso não embarquemos. E em segundo... Não vejo porque me hei-de meter num problema entre humanos e dreffelianos. Não me diz nada.
-Achas que eu acredito nessas desculpas? - Exclamou o mais velho. - Conheço-te bem o suficiente. Porque é que estás a reagir assim?
O rapaz suspirou.
-Chegámos aqui há muito pouco tempo. Gostava de conseguir prolongar a calma que tivemos até agora por mais algum. Além disso, sabes tão bem como eu que fui banido com a minha mãe. Ninguém aqui me reconhece, mas se usar os meus poderes a notícia vai espalhar-se e podemos acabar por ser perseguidos.
Ken'ichi sentiu um ligeiro nó no estômago. O irmão estava certo. Caso fizessem algo para chamar as atenções, podia ser a última coisa que faziam.
-Mas eu fiz uma promessa. E ao que me disseram, os raptores são humanos. Talvez não tenhas de os usar.
Com um aceno de cabeça, Kuroi pensou por momentos.
-Podemos tentar. Mas espero que tenhas noção do que está em jogo.
Ken'ichi assentiu.
-Só temos umas horas. Vamos voltar para o acampamento e apressar-nos.
Enquanto isso, uma misteriosa figura espiava-os da sombra. Viu-os cruzar uma esquina, e com um esgar de malícia desvaneceu-se no ar.
Enquanto o vento se agitava, a espuma das ondas invadia aos poucos a praia perto do cais. Muito como no mundo que conheciam, as aves marinhas reuniam-se na areia húmida. Aproximava-se um estranho e inquietante temporal.