28 maio 2010

Capítulo XIV: O Outro Lado

Em casa de Mina, que Dejai ajudara a encontrar, Makoto e Sochin retemperavam as forças. A rapariga, que tinha fome e alguns ferimentos superficiais nos braços e nos joelhos, estava sentada num pequeno sofá forrado de um tecido suave enquanto o irmão lhe cobria os golpes com um adesivo e gaze que encontrara num estojo do carro.
Mina preparava um caldo quente para todos, segurando ao colo o sobrinho carinhosamente. Este adormecera sobre o seu ombro, exausto.
No exterior, abatera-se sobre a ilha uma violenta tempestade.
-Pergunto-me se vão ficar bem. - Disse Sochin em voz baixa. - O vento lá fora está a assustar-me.
Makoto fechou o estojo de primeiros-socorros, deixou-o sobre uma mesinha e foi sentar-se junto a ela. Com um sorriso de alívio passou o braço sobre os seus ombros, abraçando-a contra si, e afagou-a de leve.
-Não te preocupes. De certeza que eles estão bem e devem estar a vir agora mesmo para aqui.

***

Ken'ichi acenou para Kuroi, que surgira à entrada da tenda. Aos seus pés, Hella jazia inconsciente.
-Então era aqui que estavas. - Constatou o mais novo, com uma expressão um tanto vazia. - Até estranhei que tivesses desaparecido sem me aperceber.
-Esta mulher escapou-se atrás dos miúdos.- Respondeu o outro, apontando-a com o olhar. - O Genji?
-Deve ficar inconsciente por um bom bocado. O suficiente para não nos encontrar na ilha quando acordar. Eles estão bem?
-Não deram por nós, a esta hora já devem estar na casa da Mina.
-Ainda... ainda bem.
Saindo pelo portal oculto no muro, percorreram em passos lentos o caminho que ia dar à cidade. Ken'ichi não desviava o olhar do meio-irmão.
-Passa-se alguma coisa.
-Ehm... não, de todo. Estava só a pensar numas coisas.
-Não era uma pergunta, era uma afirmação. Vais dizer-me o que aconteceu com aquele verme ou tenho de te interrogar aqui?
Kuroi suspirou.
-Ele sabe de tudo. De todos os acontecimentos que eu tenho andado a esconder, e ameaçou contar a mais pessoas.
Ken'ichi estacou.
-Estás a referir-te... àquilo?
O rapaz de cabelo castanho acenou com a cabeça.
-Por muito constrangedor que seja, não percebo porque é que ficaste tão preocupado. Se bem te conheço, a opinião dos outros sempre foi a tua última preocupação.
-Tu és meu irmão e conheces-me bem, não foi nenhuma surpresa quando soubeste. Apesar de nem ter sido suposto tu saberes dos rumores. Mas com aqueles dois é diferente, se eles soubessem...
-Tens medo que se afastem?
-Foram os meus primeiros amigos em muito tempo. Para mim isso chega.
O mais velho respondeu com um silêncio e um sorriso compreensivo. Queria sossegar o irmão, dizer-lhe que eles compreenderiam como ele antes fizera, que nada iria mudar mesmo que eles soubessem. Mas a sua idade já lhe permitia ter noção de que não passariam de palavras vãs contra o que era o mais lógico.
O vento rapidamente se tornou numa rajada que carregava consigo grossos pingos de chuva, e as nuvens iluminavam-se em relâmpagos violentos. Apressaram-se no caminho de terra batida por entre as ervas, tentando chegar à cidade para se abrigarem.

***

Quando finalmente alcançaram a entrada da cidade, depararam-se com uma surpresa desagradável.
Os portões, encerrados a partir de fora, estavam guardados por uma multidão armada que parecia ter vindo do acampamento de Genji. Maioritariamente homens de constituição física bastante desenvolvida, estavam munidos de bastões, adagas, correntes, espadas, mocas e algumas, poucas, armas de fogo.
-Não esperava um comité de boas-vindas. Kyrial tem realmente um povo hospitaleiro. - Ironizou Ken'ichi.
-São subalternos do Genji. - Respondeu Kuroi. - Não devem estar muito contentes agora que lhes resgatámos o ganha-pão.
-Não vão entrar vivos nesta cidade! Vão pagar bem caro a ofensa que fizeram ao nosso líder! - Gritou uma voz rouca e violenta do meio do grupo.
-Ken, fica aqui e ataca-os de longe. Vou tentar acabar com eles a partir dos extremos.
O rapaz de cabelo preto assentiu com a cabeça e retirou, com um gesto rápido, a enorme bazooka da faixa em que a transportava. Esperou que o irmão se dirigisse ao grupo da esquerda e atirou com ressalto contra o centro do bando antes que se dispersassem.
A explosão desviou a atenção dos mais isolados à esquerda, facto que Kuroi aproveitou. Usando a sua capacidade de transporte para se deslocar rapidamente entre eles, depressa tinha dado conta de um número considerável de inimigos. No entanto, os números não estavam do lado dos dois rapazes. Além disso, o mais novo começava a ressentir-se da luta contra Genji, sentindo dores perfurantes no estômago, músculos e articulações. Já Ken'ichi sucumbia ao peso da arma e aos ressaltos e começava a ficar sem munições.
"Isto é mau.", pensou Kuroi. "Já não aguentamos muito mais e eles são demasiados."
Um homem ainda bastante novo colocou-se à sua frente. Sem hesitação, o rapaz empurrou-o com um pontapé lateral, sentindo o desgaste a pesar-lhe, e fê-lo embater contra outros três.
A dor que sentiu nesse momento fê-lo aperceber-se de que estava fora de forma devido ao tempo de relativa calma de que gozava desde que saíra da Fighters Union.
-Kuroi! Recua!!! - Gritou Ken'ichi atrás dele.
Ao ouvir estas palavras, o rapaz socou um último indivíduo e transportou-se para junto do meio-irmão.
-Que aconteceu? - Perguntou, ofegante e limpando uma pequena mancha de sangue do lábio.
-Estou sem munições e já só tenho o revólver. Não vamos durar muito mais.
Kuroi assentiu.
-Também já estou nas últimas. Precisamos de outro plano.
-Cuidado! - Exclamou o mais velho, empurrando-o e disparando um tiro do revólver que retirou do cinto a uma velocidade incrível. Puxou o gatilho a tempo de atingir a perna de um dos homens que se aproximava por trás com um punhal.
-Obrigado... - Balbuciou o rapaz, atordoado.
A chuva e o vento tornaram-se mais fortes e um relâmpago cortou a escuridão da noite. À sua luz conseguiram avistar quase metade do bando que ainda restava de pé.
-Pergunto-me se é desta. - Murmurou o mais velho.
Kuroi levantou-se, enervado e batido pelos pingos de chuva grossa e fria. Caso o seu próximo ataque não surtisse efeito, estariam realmente condenados.
-Recuso-me a desistir agora. Recuso-me a morrer às mãos daquele cretino antes de descobrir quem matou a minha mãe.
Sem mais uma palavra, voltou à carga contra o grupo. Levou à sua frente quase uma dezena de homens ao abrir caminho até à porta com a sua força bruta, usando os seus corpos como defesa contra os restantes. Afastando-os com um movimento, respirou fundo e fixou o olhar no único que sobrava, o mesmo jovem que pontapeara há pouco atrás. Dirigiu-se a ele cambaleando e estacou à sua frente, de cabeça baixa e olhar sombrio e inexpressivo parcialmente oculto pelo cabelo que lhe tombava sobre o rosto em desalinho encharcado.
Pela maneira de andar e pelos movimentos Ken'ichi logo se apercebeu que o irmão já não estava plenamente consciente. O seu corpo movimentava-se de forma quase automática e forçada. Levantou um braço e ergueu-o atrás da cabeça.
-Es-espera! - Disse o homem, temendo pela sua vida. - Sei de uma coisa que te vai interessar!
Kuroi manteve-se estático, pronto a atacar.
-É algo que te vai ser muito útil! - Reforçou o outro, coberto por frias gotas de suor disfarçadas pela chuva.
Os olhos verdes-esmeralda do rapaz surgiram por entre as madeixas do cabelo castanho e encharcado, reavivando uma centelha de consciência.
Vendo que tinha a atenção do atacante, continuou:
-Genji-sama não é o único. Ouvi de um dos nossos informadores que a Deusa tomou medidas para reunir todos os Sucessores em Dreffel.
-Que queres dizer com "Sucessores"?
-As crianças que foram banidas... todos vocês... é o nome por que vos chamam agora. É tudo o que sei, juro!
-Então prossiga a festa.
Concentrando toda a sua energia restante no punho erguido, o rapaz tentou não se desequilibrar. A sua mão e antebraço adquiriram repentinamente uma estranha aura de luz negra. Com uma força irreal, desferiu um golpe a alta velocidade e o último homem tombou.
O rapaz de cabelo preto correu na direcção do irmão, amparando a sua queda, quando um grito de terror cortou os céus.
-É O FILHO DE ZHAI!!!!
Kuroi ouviu estas últimas palavras e tudo pareceu desmoronar-se à sua volta à medida que os seus sentidos se esvaíam.
"Fui descoberto."

***

-Sochin, acorda!!! Parou de chover durante a noite!!!
A rapariga abriu os olhos lentamente, afastando uma manta de lã que a cobria. Demorou uns segundos a aperceber-se de onde estava, até que finalmente se recompôs.
-Oh, céus... acabei por adormecer! - Exclamou, levantando a cabeça. - O Kuroi-kun e o Ken'ichi-san já voltaram?
Makoto acenou negativamente com a cabeça.
-Começo a achar que se passou algo, ainda não tivemos mais notícias deles.
-Também tenho um mau pressentimento. - Interrompeu Mina, que entrava no quarto nesse momento. - Ken'ichi-san garantiu-me que viriam logo para aqui quando tivessem desmantelado o acampamento deles.
-Talvez devêssemos ir procurar por eles nas nossas tendas, visto que ficam pelo caminho. - Declarou o rapaz. - De qualquer forma temos de estar preparados para partir ao anoitecer e ainda não temos as malas arrumadas e carregadas no carro.
-Carro...? - Interrogou-se Mina, meio confusa.
Sochin assentiu para o irmão, um pouco abalada. Sentia um aperto no estômago por ter passado a noite a dormir quando dois dos seus companheiros podiam estar em dificuldades.
Após um breve almoço preparado por Mina, os dois irmãos seguiram para o acampamento. À entrada da cidade depararam-se com sinais de luta e algumas zonas que pareciam ter sido chamuscadas do lado de fora do portão.
-Passou-se mesmo algo, eles estiveram aqui! - Exclamou o mais velho, alarmado.
Largou a correr, seguido de perto pela irmã, até chegarem às tendas. Ken'ichi encontrava-se sentado no chão à entrada de uma delas, tentando não se deixar vencer pelo cansaço.
-Ken'ichi-san!!! Que aconteceu? - Perguntou a rapariga, correndo para junto dele. Makoto juntou-se aos dois logo de seguida.
-Fizeram-nos uma espera à entrada e não conseguimos chegar à cidade sem lutar contra eles.
-E o senpai?
-Conseguiu desbloquear o caminho, mas receio que tenha sido demasiado para o corpo dele. Esteve demasiado tempo sem praticar a sério. Perdeu os sentidos e não sei se terá alguma fractura, por isso decidi trazê-lo para aqui e não o mexer muito.
O loiro entrou na tenda silenciosamente.
Kuroi estava deitado sobre um saco-cama, respirando com dificuldade. O seu rosto e braços tinham alguns golpes que não pareciam inspirar grandes cuidados.
Um aperto no estômago tomou conta do rapaz. Nunca esperou ver naquele estado o jovem que, além de ser a pessoa mais forte que conhecia, era seu amigo e companheiro.
"Se até ele ficou neste estado, como é que eu alguma vez poderia... neste mundo..."
-Já o vi em situações piores. - Comentou Ken'ichi. - Ele costumava ser um arruaceiro de primeira. Tenho a certeza de que vai estar em forma daqui a algumas horas para embarcar. Quando chegarmos ao continente poderemos preocupar-nos à vontade em arranjar-lhe cuidados médicos.
Sochin fitava-os de fora da tenda. Respirando fundo deu meia volta e começou a juntar as suas coisas. Destapou o jipe encostado à muralha e colocou um saco sobre o porta-bagagens, tentando distrair-se.
"Afinal ele também tem fraquezas. É mesmo estranho vê-lo assim, vulnerável. Normalmente está sempre tão calmo, parece inatingível, quase arrogante... E de repente parece-me tão humano."
Olhou para o irmão, que lhe devolveu o olhar. No fundo, ambos estavam de certa forma aliviados.

***

Ao fim de algumas horas, os preparativos estavam terminados. Makoto carregava as últimas malas para o carro com a ajuda de Ken'ichi. Sochin descansava sentada sobre o relvado, aproveitando os últimos raios de sol do dia.
-Yo.
Todos se voltaram na direcção da voz. Kuroi, já acordado e de pé, saía da tenda ainda com alguma dificuldade e apertando o estômago com um braço.
-Senpai! - Exclamou Makoto com um sorriso de alívio, indo ajudá-lo a manter-se de pé.
-Então, estás inteiro? - Perguntou o mais velho num tom divertido.
-Sem problemas. - Respondeu o rapaz, ganhando finalmente algum equilíbrio sobre os pés. - Devo ter sido atingido num ponto vital, mas nada que não possa aguentar até chegarmos ao continente.
-Nem sabes o susto que eu apanhei... - Suspirou o mais novo, afastando dos olhos a franja loira com um movimento rápido.
O outro espreguiçou-se como se de nada se tratasse.
-Preocupas-te demais, meu.
Makoto olhou para Ken'ichi, procurando algum apoio na sua indignação com aquela resposta, mas apenas obteve de volta um sorriso com um misto de troça e consternação. Sochin atirou o casaco azul, pendurado num dos bancos do carro, para cima de Kuroi.
-Não é altura para estarem com essas conversas, ainda vamos ter de meter o carro a bordo antes da partida.
O rapaz assentiu com um suspiro de resignação. Vestiu o casaco por cima da camisola cinzenta e dirigiu-se para o carro.
-Ela tem razão, vamos apressar-nos. - Disse, dando uma palmadinha no ombro de Makoto. - E acorda, precisamos de alguém sóbrio para conduzir.

***

-Levantar âncora!!! - Exclamou o velho capitão ao sinal afirmativo de Kuroi, que surgira no topo das escadas que levam ao porão. Os outros três juntaram-se a ele.
-Vou tentar pôr o sono em dia. - Disse o mais velho. - Até amanhã.
-Boa noite. - Despediram-se os outros três num coro dessincronizado.
-Nós também devíamos ir dormir. - Constatou Makoto. - Temos um longo dia de viagem pela frente amanhã. Além disso, quanto mais tempo passar a dormir dentro deste barco, melhor.
A rapariga abafou um risinho. O irmão estava com uma expressão profundamente afectada, enjoado com o balanço do barco.
-Vão andando. Eu fico aqui mais um pouco a tomar ar, provavelmente estou com os sonos trocados depois de um dia a dormir.
-Boa noite, então. - Disse o loiro. Sochin despediu-se com um breve aceno e seguiu-o para as cabines, deixando Kuroi sozinho no convés.
Debruçou-se sobre a balaustrada. O sol acabava de desaparecer no horizonte, deixando o barco à mercê da escuridão da noite e de uma aragem fresca que se levantava.
Um piar tímido vindo do chão cortou o silêncio teatral. Baixou o olhar. Junto aos seus pés, um pequeno vulto lilás batia as asinhas atarracadas para atrair a sua atenção.
-Com que então era aqui que estavas. - Constatou, pegando em Almoço com uma mão e colocando-o sobre o corrimão de madeira, fitando-o com um olhar ausente. - Quem diria que ias acabar por me seguir a mim depois de ter tentado deixar por tua conta.
O pequeno falcão voltou a piar, como se entendesse o que lhe dizia o rapaz.
Kuroi apoiou-se nos cotovelos e enterrou a cara nos braços.
A brisa fresca começava a ganhar força, mas não tinha frio. Aquela sensação fazia-o sentir-se sóbrio.
-Pergunto-me se não terei ido longe demais com isto tudo. Coloquei o Ken em risco, agora também aqueles dois... Tudo por algo que aconteceu há mais de 10 anos e que os outros já conseguiram ultrapassar. E ainda sou demasiado fraco.
Sentiu uma bicada amigável nos dedos e ergueu a cabeça. À sua frente, o animal pairava batendo as asas a custo e olhava-o com os seus dois olhos negros e brilhantes.
-Aprendeste depressa para uma cria sem mãe. Mas acho que percebi o que tenho a fazer, se realmente quiser um dia poder viver a minha vida como qualquer outra pessoa.

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