30 julho 2010

Capítulo XV: Nascimento e morte. Decisão.

Cidade de Shinai, Dreffel. Um vulgar dia de Outono sem nada de especial ou empolgante para um rapazinho, de seus sete anos, cabelo castanho e olhos verdes, que vagueava pelos arredores em busca da próxima refeição.
-Corres muito depressa, não é justo! - Ouvia uma criança gritar. Um grupo de quase uma dezena reunia-se na praça e brincava sob o olhar enfadado de Kuroi, que se acomodava sobre um caixote de madeira à porta de uma loja.
-Pst, miúdo, sai daí. - Murmurava o proprietário, embaraçado.
Ao ver-se em confronto directo com o olhar perfurante do rapaz, deu um suspiro e tomou nas mãos uma maçã.
-Se saíres de cima do caixote, dou-te isto.
O pequeno logo pulou para o chão com desenvoltura. O truque de se sentar em frente das lojas nunca o deixara ficar mal.
Começou a afastar-se, saboreando a única refeição do dia, quando ouviu um gritinho vindo do grupo de crianças.
-É O FANTASMA!!!
Virou-se. À saída para uma das ruelas secundárias, avançando a medo, aproximava-se deles um rapazinho de grandes olhos azuis e cabelo totalmente branco. O rosto, única parte do corpo que não estava coberta por agasalhos, era também muito pálido.
-Vai-te embora daqui, assombração! - Gritou outro.
Uma rapariga baixinha, talvez a mais nova do grupo, pegou numa pedra do chão e arremessou-a contra o recém-chegado. Os outros juntaram-se a ela e cada vez mais eram as pedras que o atingiam. O pequeno, importante, caiu sobre os joelhos, protegeu a cabeça com os braços como podia e soltou um gemido de dor e angústia.
-Parem imediatamente com isso. E tu, põe-te a andar daqui. Depressa.
As pedras haviam cessado e o albino levantou o olhar. À sua frente, Kuroi estava de pé com os braços
abertos, protegendo-o com o seu corpo.
-Quem atirar a próxima pedra vai ter de se haver comigo.
-Não digas disparates e sai da frente! - Disse o mais velho do grupo, recomeçando a ofensiva.
Não acertou em nenhum dos dois rapazes, mas deixara clara a sua intenção. Não seria um miúdo da rua a impedi-los.
De imediato surgiu uma aura negra semelhante a fumo em redor dos seus pés. Subiu rapidamente pelo corpo, imobilizando-o, fê-lo desmaiar e desvaneceu-se no ar.
-Mais alguém?
Outro rapaz, um pouco mais novo e com ar de arruaceiro, pegou no corpo inanimado do amigo e colocou-o às costas.
-Vamos sair daqui. - Ordenou ao resto do grupo com voz trémula. - Este tipo não é normal.
Sem mais trocas de palavras mas muitas trocas de olhares, todos desapareceram num ápice.
-Mas... mas porquê? - Perguntou o albino, falando pela primeira vez. - Porque é que me ajudaste?
-Porque não acredito em fantasmas.
O rapaz esboçou um sorriso tímido.
-Obrigado.
-Não tens nada que agradecer. E não devias andar com esta gente. Ninguém merece ser tratado assim. - Continuou Kuroi.
-Sei perfeitamente disso, mas até eu preciso de estar com alguém. A minha família só cuida de mim por pena e na maior parte do tempo finge que eu não estou lá. Devem pensar que sou um erro.
-E tu acreditas nisso.
O pequeno desviou o olhar rapidamente.
-Não és humano?- Murmurou, tentando mudar de assunto.
-Sou mestiço. - Respondeu Kuroi.
-Então... És igual a mim! A minha mãe é humana e o meu pai é de cá!
Kuroi sentiu um sobressalto com estas palavras. "És igual a mim".
-Souka... Podia jurar que eras um humano puro com albinismo. - Respondeu, abstraído.
-Tenho este aspecto porque os genes dos meus pais eram incompatíveis. Dizem-me que é uma doença.
-Uma doença...?
-Não te assustes, isto não se pega. Mas é irrelevante. - Explicou o outro, um pouco embaraçado.
Kuroi afastou dos olhos uma madeixa de cabelo castanho.
-De qualquer modo, sou imune a quase todas.
O albino sorriu. Sentia-se estranhamente feliz por ter encontrado alguém que não parecia importar-se com a sua aparência.
-Eu... já te vi por aqui, sei que não tens onde viver. A minha casa é muito grande e podes ficar por lá, se quiseres.
-Isso é demasiado. Eu só fiz o que estava correcto fazer, nada mais.
-Por favor! - Insistiu o rapaz. - Pensa bem, não tinhas de voltar a passar fome. E além disso... gostava muito de voltar a falar contigo.
O outro levantou os olhos para o céu alaranjado de fim de tarde.
-Não quero ser um incómodo para ninguém.
-De maneira nenhuma! A nossa produção chega e sobra para sustentar mais um, e se isso te deixar com a consciência mais tranquila o meu pai está à procura de mais ajudantes para os trabalhos leves. A minha família é produtora de vinha. Podes ajudar a troco de estadia, e assim ficamos todos a ganhar!
-Isso seria óptimo! - Exclamou Kuroi. - Tens mesmo a certeza?
-Claro que sim! - Respondeu o outro, com um aceno de cabeça. - Não te vais arrepender!
Nesse momento, Kuroi apercebeu-se pela sua expressão que aquele tímido rapazinho, que demonstrava uma aparente dificuldade em lidar com a aceitação, era na verdade um pouco mais velho que ele.
-Agora lembrei-me... ainda não sei o teu nome! - Prosseguiu o rapaz. - Como te chamas?
-Seishin Kuroi. - Respondeu.
Depois, achando que deveria dizer algo mais, acrescentou:
-E tu?
-Ryo Daisuke.

***

Quase um ano havia passado desde que Kuroi conhecera Daisuke. Vivia desde então num anexo da casa da família Ryo, onde fazia pequenos serviços a troco de comida e tecto. Era de longe o mais novo de todos os ajudantes, mas extremamente prestável. Afinal de contas, a maior parte dos trabalhos eram fáceis para ele graças à sua força.
Preparava-se para mais um dia de colheita na vinha quando a porta do anexo se abriu de par em par.
-Kuroi, Kuroi!!! Tenho boas notícias!
Era Daisuke que entrava, ofegante. Crescera muito no espaço de um ano, o bastante para que fosse impossível confundi-lo com alguém mais novo. Já não se fazia sentir o calor do verão mas ainda se apresentava descalço, com uma camisola leve e calções.
-Acordaste cedo hoje! - Admirou-se o mais pequeno, enfiando pela cabeça uma camisola. - Que se passou?
-A colheita está bastante adiantada este ano, por isso hoje estás dispensado! - Respondeu Daisuke com um sorriso rasgado.
-Genial! Qual é o teu plano?
O rapaz pensou por momentos.
-Gostava de ir à cidade. Desde que vieste para cá que não saio da herdade dos meus pais.
-À cidade... Tens a certeza?
O albino assentiu.
-Já não me assusta a reacção das pessoas. Se estiveres comigo, sei que sou capaz de enfrentar tudo.
-Não me considero assim tão motivador. - Respondeu Kuroi, embaraçado. - Mas se tu o dizes...
Antes de sair passaram pela cozinha da casa.
A mãe de Daisuke, uma bonita mulher de longos cabelos negros, entregou a cada um deles uma pequena mala com uma caixa de comida e um cantil de sumo de uva.
-Tenham cuidado, meninos! - Aconselhou.
-Claro, mãe! Já sabemos! - Respondeu o mais velho com um sorriso de troça, puxando o amigo por um braço.
Kuroi sentia-se feliz. Havia sido acolhido pelos Ryo como um outro filho, e Daisuke era como um irmão. Parecia ter-se tornado noutra pessoa muito diferente desde aquele dia, estava mais alegre e confiante, e até a atitude dos seus pais em relação a ele mudara graças a isso. Conseguiam finalmente vê-lo como uma criança igual a tantas outras da sua idade.
Olhou para o cantil que a mulher lhe dera. Era muito comum darem-lhe sumo de uva ao lanche, visto que a família cultivava vinha, e nunca se cansava. Achava-se capaz de beber sumo de uva para o resto da vida.
O dia passou estranhamente depressa. Ninguém se atrevera a provocar Daisuke com Kuroi por perto, e por isso os dois divertiram-se a passear pelas ruas da cidade.
No entanto, ao fim da tarde, o mais velho sentiu uma tontura fortíssima. Tentando manter-se em si, chamou o amigo.
-Kuroi, não estou bem. Preciso de voltar para casa.
O outro acenou com ar preocupado.
-Que se passa?
-Estou a sentir-me fraco. Só isso.
Com algum esforço, conseguiram regressar.
A mãe de Daisuke foi ajudá-lo a deitar-se enquanto Kuroi esperava à porta do quarto por mais notícias, mas quando a mulher saiu do quarto parecia abalada e não proferiu uma palavra. O rapaz entrou e foi sentar-se junto do amigo.
-Como estás agora? - Perguntou, preocupado.
O rapaz balbuciou qualquer coisa imperceptível devido à voz fraca e arrastada, aninhou-se na cama e não respondeu mais nada. Adormeceu com uma expressão de sofrimento estampada no rosto pálido.
Ao passo que um dormiu durante toda a noite, o outro não foi capaz de fechar os olhos por um momento. Já vira Daisuke doente e mesmo acamado, mas nunca durava tanto tempo. E estava a ser demasiado violento desta vez.
Os primeiros raios de sol entraram lenta e pesadamente pela janela, anunciando o nascer do dia.
A algum custo, o mais velho conseguira acordar e manter-se consciente. No entanto, não parecia haver melhorias no seu estado. Tentava dizer algo.
-Daisuke, não te esforces... - Pediu Kuroi, lutando contra o sono.
-Por favor, deixa-me falar. Há algo que nunca te contei... - Murmurou o outro.
-O que queres dizer? O que é que não me contaste?
-A minha doença... bem... é degenerativa. Sempre que atinge um órgão, é irreversível. Ontem tentei dizer-te depois de a minha mãe sair, mas não tive forças...
-Mas o que...
Kuroi não sabia o significado de "degenerativa". Era apenas uma criança da rua sem escola nem experiência. Mas compreendeu que algo de muito errado se passava.
-Temo que ontem tenha começado a atingir o coração.
Estas palavras foram como um soco no estômago para o rapaz. De imediato percebeu tudo.
-Não, não pode ser. Não pode... Diz-me que estás a mentir!!!
Daisuke desviou o olhar para o tecto, pesarosamente.
-Já há mais de oito meses que se esperava esta evolução. O único mistério é mesmo como sobrevivi até agora. Mas tudo tinha de acabar um dia, até a minha sorte...
-Não pode ser! NÃO!!!
-Já me custa a falar, sinto uma pontada mesmo forte no peito. É insuportável.
-DAISUKE, PÁRA COM ISSO! ESTÁS A ASSUSTAR-ME! TENHO A CERTEZA DE QUE VAIS FICAR MELHOR E SOBREVIVER!!!
A mão fria e fraca do rapaz agarrou a mão trémula e quente de Kuroi.
-Não vale a pena tentares iludir-nos aos dois. Só te peço que ouças o que te vou dizer. Eu quero agradecer-te.
O mais novo engoliu em seco. Tentava a todo o custo não chorar, mas os seus grandes olhos verdes começavam a transbordar em lágrimas.
-Agrade...cer-me?
-Há um ano atrás, todos teriam ficado indiferentes. Para mim seria como adormecer durante muito tempo. No entanto... - Suspirou. - ...agora que chegou o momento não consigo pensar assim. Obrigado, meu amigo. Por teres sido uma outra família... e por me fazeres, neste momento, desejar permanecer vivo mais do que qualquer outra coisa.
Kuroi respirava fundo para não começar a soluçar.
-IDIOTA, NÃO ME POSSO CONSIDERAR AMIGO DE NINGUÉM SE DEIXAR QUE OUTRA PESSOA IMPORTANTE PARA MIM MORRA À FRENTE DOS MEUS OLHOS!!!
Colocou as mãos nos ombros de Daisuke e segurou-o com força, deixando de se preocupar em esconder o choro que teimava em sair. Concentrou-se, e nas suas mãos surgiu uma aura negra em forma de chama descontrolada.
-Por favor aguenta só um pouco! Com o meu poder, eu acho... eu tenho a certeza que te posso salvar!!!
A escuridão tornou-se em luz e preencheu o quarto com um brilho ofuscante.
-Não feches os olhos por nada!
Daisuke sentia uma sobrecarga no seu corpo frágil, que não estava preparado para receber o mesmo tipo de energia com que o de Kuroi lidava, mas não disse nada e nem sequer gemeu. Do fundo do seu coração, queria acreditar no amigo até ao fim. Faria o seu segundo milagre.
Sabendo que chegara o fim, fechou os olhos e pronunciou as suas últimas palavras:
-Obrigado.
A luz estilhaçou-se como um vidro, em mil pedaços ínfimos que choveram sobre o chão. No ar, apenas uma sufocante sensação de vazio. O corpo do rapaz desaparecera.
Kuroi caiu sobre os joelhos, em choque.
-Daisuke... não é possível... não...
Os estilhaços de luz juntaram-se em seu redor e poisavam sobre si, desaparecendo sobre ele como lágrimas que secavam.
Parte de si desejava gritar a plenos pulmões, libertar a tristeza e a frustração. Mas um novo lado que surgia no seu interior refreava-lhe os nervos e cessava a sua angústia. Transmitia-lhe uma inadequada paz interior que fazia esquecer tudo o resto. De certa forma, tinha a sensação de que nada mudara. Ryo Daisuke permanecia vivo através e dentro de si.
"O que eu fui fazer... não queria nada disto! Só queria salvá-lo! O que me vai acontecer agora?"
Limpou os olhos húmidos com o braço e dirigiu o olhar para a porta. Estava aberta e de pé, estarrecida, a mãe de Daisuke fitava-o com olhar incrédulo.
Não sabia desde quando é que ela estaria a assistir, mas podia ver pela sua expressão que não ouvira a conversa que tiveram.
Pensou em dizer algo como "não é o que possa estar a pensar, acalme-se", mas sabia perfeitamente que era inútil dizer fosse o que fosse. Diante de si estava uma mãe que acabara de perder o filho.
-Lamento muito. - Disse, sem que a voz lhe saísse da garganta.
-És um monstro. - Respondeu ela, com a voz embargada pelo choque e pela tristeza.
Com estas palavras, Kuroi sentiu impotente que o que restava do seu mundo acabara de se desmoronar.
Argumentar só iria agravar a ferida no coração daquela mãe que também fora a sua, só queria desaparecer. Esvair-se no ar e sair dali, recomeçar tudo e apagar as memórias que deixara nos últimos momentos e que o magoavam mais do que a ninguém.
Queria partir, para bem longe dali...
Pestanejou lentamente. Já não estava dentro do apertado quarto, nem em nenhum lugar que conhecesse. Nos seus ouvidos ecoava o choro desgostoso da bela mulher de cabelos negros, entre a tristeza e o desespero, mas já não a podia ver.
Agindo quase por instinto, levantou um braço. A ponta dos seus dedos tocou uma superfície distorcida no ar, fria e inquietante.
Um arco tomou forma à sua frente, convidando-o a passar.
Mentira. Era ele que suplicava ao arco que o deixasse atravessá-lo.
Naquele mundo nada mais lhe restava.
Só queria fugir e esquecer, não importava para onde.

***

Acordou repentinamente.
Já era de manhã. Estava a bordo do navio que partira de Kyrial na véspera, quase a tombar da cama, com os lençóis no chão. Ouvia um chiar irritante junto ao ouvido esquerdo.
-Almoço, deixa-me em paz! Já estou acordado! - Resmungou, enfiando os pés nos ténis trocados.
Suspirou e voltou a calçá-los correctamente. O pequeno falcão saltou-lhe para o colo, tentando atrair a sua atenção.
-Não olhes para mim assim. Nem desconfio o que comem os falcões.
Voltou a chiar insistentemente, sem resposta, e voou ofendido pela janela entreaberta.
O rapaz tinha mais com que se preocupar.
Teria de tomar uma decisão difícil e, quanto mais depressa o fizesse, melhor. A recordação dessa noite só viera agravar o seu humor.
Fechou a porta da cabine atrás de si. Não poderia adiar por mais tempo o que decidira.
Foi encontrar Makoto e Sochin no exterior, sentados nas escadas do convés.
-Senpai, bom dia! - Disse o loiro, tentando sorrir. Ainda estava enjoado pelo balanço do barco.
-Bom dia. - Cumprimentou Kuroi, abstraído.
Sochin acenou.
-Vou comer qualquer coisa. - Disse, levantando-se.
-Makoto, preciso de falar contigo. - Chamou o mais velho.
-Uh... claro! - Respondeu o outro. - Que se passa?
-Vou ser o mais directo possível... Assim que chegarmos a terra, tu e a tua irmã devem abandonar Dreffel. Sem demoras.
-O QUÊ? Estás a gozar, certo?
O rapaz acenou negativamente.
-Deixar-vos acompanhar-me foi um erro. Depois de ver a tua atitude anteontem apercebi-me de que não posso responsabilizar-me por vocês dois. Só poria em perigo as nossas vidas e o meu objectivo.
-Que estás a dizer...
-És um irresponsável, Makoto. Não tens noção do perigo e falta-te a maturidade para ponderar calmamente as situações. Ainda por cima com as tuas capacidades de combate actuais, podias ter morrido!
-Mas não morri! - Exclamou o mais novo, furioso.
-Ias morrer se eu não tivesse chegado a tempo!
Makoto aproximou-se de Kuroi, cada vez mais enervado.
-Caso não tenhas reparado, posso tomar conta de mim sem a tua ajuda!
Kuroi afastou-o com uma forte cabeçada.
-Nota-se! Nota-se perfeitamente!
-O facto de seres o líder do grupo não te dá o direito de escolher por nós!
-O facto de ser o líder do grupo dá-me o dever de vos manter A SALVO!
-Não arranjes desculpas esfarrapadas, eu responsabilizo-me por tudo o que me possa acontecer! Se o teu problema é outro, di-lo na cara!
-Ai é isso que achas? Pois bem, se é isso que queres ouvir, já não te aguen...
-PAREM OS DOIS COM ISSO, JÁ!!!
Sochin regressara a correr ao ouvir os gritos e separou-os. Chocava-a ver os dois amigos discutir daquela forma.
-Hey, diz o que ias a dizer! Continua se tiveres lata! - Desafiava ainda o mais novo.
Kuroi suspirou e baixou o olhar.
-Makoto, se gostas assim tanto da tua irmã aprende a dar-lhe ouvidos quando ela tem razão. Esta conversa já foi longe demais.
Voltou as costas e deixou-os, parando apenas ao passar junto à rapariga, colocando a mão no seu ombro.
-Lamento que tenhas tido de assistir a isto. - Murmurou.
Esta fitou-o até entrar dentro da cabine e bater com a porta.
-O que foi isto? - Perguntou com voz fraca.
Makoto olhou para o chão com uma expressão cerrada.
-Vais ficar feliz com o assunto da discussão. Ele quer que o deixemos e voltemos ao nosso mundo.
Sochin ficou sem resposta. Não era, de facto, minimamente próxima de Kuroi. Na verdade, por vezes ele irritava-a. Mas sabia como estar com ele era importante para o seu irmão e aprendera a aceitar a situação com o tempo. Começava mesmo a sentir-se bem junto daquele pequeno grupo.
-Não, não estou feliz. Mas também não percebo o porquê de estarem quase a pegar-se à pancada, logo vocês os dois.
-Não estás a ver, Sochin? É tal e qual como antes. Quando parece que tudo corre bem, há sempre alguma desculpa para me mandarem embora quando já não sou preciso. Pensei que o Senpai fosse diferente do resto das pessoas. Como é que pude ser tão parvo?!
A mais nova suspirou. Apesar de Kuroi ser uma pessoa difícil de compreender, sabia que ele não era assim.
-Vou tentar falar com ele.
Makoto voltou a sentar-se nas escadas e encostou a cabeça ao corrimão de madeira com violência. Fitava o mar sem uma palavra, de semblante carregado e ainda com algum enjôo.
Ken'ichi saía desse momento da cabine que partilhava com o meio-irmão.
-Que se passou? O Kuroi entrou ali com uma expressão muito séria e não me responde!
-Discutiu com o meu irmão porque quer que eu e ele regressemos ao nosso mundo. - Respondeu Sochin.
-Então foi isso... ele falou-me nessa possibilidade, mas nunca pensei que tivesse coragem de levar a ideia avante.
-Vou tentar falar com ele agora, para esclarecer umas coisas. Sei que é pedir muito, mas podes ficar com o meu irmão e tentar acalmá-lo? Tenho medo que faça algum disparate.
-Não há problema. Ele deve dar-me ouvidos.
A rapariga acenou com um sorriso triste no rosto e continuou para a cabine.
Abriu a porta silenciosamente e esperou que os seus olhos se habituassem à escuridão. Kuroi fechara as janelas ao entrar.
Estava sentado no chão, junto a um canto, fitando algum ponto no tecto. Apertava o estômago com os braços, esboçando uma expressão de dor.
-Está a doer muito? - Perguntou a rapariga, mas arrependeu-se a seguir. Talvez tivesse feito melhor em ficar calada.
-Parece que estou a ser estripado vivo. - Respondeu o rapaz com voz grave e surpreendentemente calma.
-Estava a falar do teu corpo.
-Ah, isso. Por vezes ainda dói um pouco, mas só um médico saberá dizer se é grave.
-Kuroi-kun...
-Não perguntes nada. É o melhor para vocês por agora. O teu irmão ainda é muito impulsivo e imaturo para seguir uma viagem como a que nos espera quando chegarmos ao continente. Talvez se já fosse um, dois anos mais velho... Mas 14 anos é muito pouco para alguém como ele.
-Eu sei que o meu irmão às vezes faz figuras de idiota e se porta como uma criança, mas acho que essa é a maneira de ele demonstrar que se importa com as pessoas. Pode não parecer, mas ele sabe comportar-se como um adulto se for necessário.
Kuroi queria ser sincero, desabafar o seu medo, explicar que poderia ser demasiado arriscado dar ao rapaz uma segunda oportunidade. Mas, como líder do grupo, era o último que poderia dar parte fraca. A sua hesitação afectaria todos.
-Não posso arriscar que aconteça algo de mais grave a um de vocês. - Disse finalmente.
-Sabes, o que o meu irmão ficou a pensar é que não o vês como um amigo e que te fartaste dele. Já passou por muito, e isso afectou a confiança dele.
-Não me compete saber pormenores da vossa vida, por isso não te esforces em dizê-los. Só me custa que ele pense que isto foi uma decisão fácil. Ele age como se pudesse defrontar qualquer um, quando ainda está a muitos treinos de distância de me alcançar sequer.
-Quer afirmar-se, junto de ti e de si próprio. Tu restauraste muita da confiança dele quando se tornaram amigos. Acho que não quer perder isso.
-Sochin, posso perguntar-te apenas uma coisa?
A rapariga acenou afirmativamente, intrigada.
-Diz-me apenas... - Prosseguiu o mais velho - ... qual é a TUA posição em relação a tudo isto. Estás a defender o ponto de vista do Makoto, mas sempre que te vejo pareces estar aqui por obrigação.
Sochin fitou o chão, embaraçada.
-No início não queria nada disto, é verdade. E também não simpatizava muito contigo, mas queria ficar junto do meu irmão. Deves calcular como fiquei quando nos contaste que não eras humano.
-Era mais que óbvio. Gostava de vos ter dito desde o início, mas pensei que iriam reagir mal ou que não iam acreditar.
-É compreensível. Mas se queres saber a verdade... nos últímos tempos mudei de opinião. Ganhei confiança em ti e até começo a gostar deste mundo.
-É bom saber isso. Nesse caso, o problema é o teu irmão, estou enganado?
A rapariga assentiu.
-Ele é muito influenciável e assusta-me um pouco pensar que se pode prender mais a ti como lutador do que como pessoa. Não quero... Não quero que se torne diferente, ele não é uma pessoa violenta. Mas ao mesmo tempo... quero estar aqui junto dele. É muito bom vê-lo tão entusiasmado e alegre. O simples facto de se estar a relacionar com outras pessoas é quase um milagre.
-ESTE MAKOTO tinha problemas com isso?! Ninguém diria.
-É muito bom fingidor, em todos os sentidos... Mas por favor não sintas pena dele, não há nada que ele odeie mais.
-Sinto mais pena por mim próprio, por não saber lidar com um miúdo e acabar por magoá-lo. É patético.
-Ainda podes voltar atrás e dar-lhe uma hipótese, ninguém vai achar que és um fraco por isso. Mesmo que nunca o demonstre, o meu irmão sabe o que faz. Podes até ficar, talvez... surpreendido.

1 comentário:

Anónimo disse...

a tua arte tem evoluido muito . parabens :D