07 janeiro 2010

Capítulo XI: Ameaça

-Muito bem agora, ataca-me com tudo o que tens!
-Hai!
Makoto calmamente deu três passos de costas para Kuroi. Rodou sobre os calcanhares, voltou-se de repente e começou a correr na sua direcção. Kuroi curvou ligeiramente o corpo para a frente, preparando-se para receber o golpe, mas com as mãos nos bolsos das calças.
O mais novo concentrou toda a sua força no braço direito, ergueu o punho e preparava-se para o lançar contra o outro assim que o alcançasse.
Com apenas uma mão, o rapaz agarrou o punho de Makoto e impediu o golpe. Com um gesto do pulso, largou-o e empurrou-o de volta para trás, nunca tirando a outra mão do bolso.
-Ainda está muito fraco. Tens de te concentrar mais. - Disse. - Não podes dar espaço para uma defesa.
-Eu sei! - Respondeu o loiro, ofegante. - Mas por onde quer que eu ataque tu acabas sempre por te defender, e já estamos nisto há meia hora!
Kuroi deliberou por uns segundos.
-Agora ataco eu, e tens de te tentar defender. Observa todos os movimentos que eu fizer para passar a tua defesa e depois tenta copiá-los.
-O quê, vais atacar-me? - Perguntou o outro, alarmado. - Se me acertares não vou conseguir mexer-me durante uma semana. Além dos teus poderes ainda tens essa força descomunal!
-Já te disse que me ia conter. Nem te vou acertar, só quero que memorizes a maneira como deves anular uma defesa.
Com um suspiro, Makoto acenou com a cabeça e preparou-se para defender.
Kuroi afastou-se três passos e correu para Makoto, como este tinha feito anteriormente. Tentando não ser demasiado veloz disparou um murro, que o outro desviou para a sua esquerda com um movimento rápido do braço. Vendo-se atirado na direcção do chão, o mais velho abriu a mão e apoiou-se sobre ela, estabilizou o apoio com a esquerda e arriscou um golpe com a perna na direcção de Makoto, que parou a escassos centímetros do seu nariz.
O rapaz tremia ligeiramente, refazendo-se daquele falso golpe inesperado.
-Percebeste a ideia? - Disse Kuroi, voltando a apoiar-se nos pés e esfregando as mãos para limpar a terra.
-A-acho que sim. Se o primeiro golpe falhar, tenho de usar uma parte livre do meu corpo para fazer outro antes que o adversário tenha tempo de redireccionar a defesa.
-Errado. O primeiro golpe vai quase sempre falhar se estiveres a lutar com alguém experiente, então não te deves concentrar nele. Ao correr, concentra a tua energia no ataque real e utiliza o primeiro como um engodo. Assim que fores travado, tens menos de um segundo para penetrar a defesa, dependendo do tempo de reacção da outra pessoa.
-Waaah... isso é muito confuso, já me dói a cabeça! - Exclamou Makoto.
Kuroi deu uma pequena gargalhada. Deixou-se cair para o chão coberto de relva, sentou-se e inspirou fundo.
-Nunca esperei um dia ser eu a ensinar isto a alguém. Foi o meu pai que me ensinou a lutar, durante o pouco tempo que vivi com ele. Nessa altura era bem mais difícil, ele queria que eu vivesse para isto.
-Porque é que ele te ensinou? - Perguntou o mais novo, sentando-se junto ao amigo. - Pensei que ele não se importava.
-Porque tinha a ganhar com isso. Com as minhas capacidades, ele achou que poderia fazer bom uso de mim pondo-me a trabalhar para a máfia, como ele.
-Já se esperava.
-Pois.
-Nii-chan! Kuroi-kun!
Os dois rapazes voltaram-se. Sochin voltara da cidade e trazia-lhes um cesto com o almoço.
-Ainda estão aqui? Mas vocês não descansam nunca?
-Ora essa, estamos a descansar agora mesmo. - Replicou Makoto.
-Sochin, sabes do Ken'ichi? - Perguntou Kuroi. - Pensei que ele te tinha ido acompanhar.
-Ele disse que ficava a dar uma volta pela cidade e almoçava por lá, por isso vim eu trazer-vos isto. - Respondeu a rapariga, sentando-se sobre os pés e poisando o cesto na relva.
Começou a distribuir algumas sanduíches sobre uma toalha, até que reparou em Kuroi.
-Porque é que és tu que tens ar de ter levado uma sova e não o meu irmão? - Perguntou, admirada.
Kuroi olhou para as suas mãos. Estavam, de facto, bastante sujas e tinham alguns arranhões. Tentou limpá-las um pouco nas calças e afastou uma madeixa de cabelo castanho que lhe tinha caído para os olhos sem que se apercebesse.
-Provavelmente é porque eu nem lhe cheguei a tocar mas deixei-o acertar-me para ele calcular a força de que precisava.
"Deixou-me acertar-lhe... estou a sentir-me tão insignificante de repente.", pensou Makoto para consigo, afectando um sorriso.
Já haviam passado cinco dias desde que estavam em Dreffel. Aos poucos, todos se tinham começado a habituar às diferenças entre os dois mundos. Aproveitando o facto de Mera e Edgar os terem perdido de vista ao entrarem noutro qualquer ponto aleatório daquele mundo, Kuroi começara a treinar Makoto.
No entanto, algo o inquietava. Já não estava habituado à calma, e mantinha-se atento a qualquer pormenor fora do comum.
Sentiu algo a bicar-lhe o joelho amigavelmente. O pequeno falcão lilás, com um lenço vermelho amarrado no pescoço, saltara de dentro da cesta e olhava para ele à espera de alguns restos. Sochin desviou o olhar, embaraçada.
-Sochin, mas tu andas a guardar esta coisa contigo? - Perguntou Makoto, indignado. Ainda não se tinha esquecido das dores que a bicada do animal lhe causara. - Puseste-lhe um lenço e tudo... Este bicho não é um animal de estimação! É uma besta em miniatura! Um monstrinho!
Enquanto falava, a cria de falcão banqueteava-se no seu prato com a apetitosa sanduíche de presunto. Ao olhar para baixo, viu-a acabar com as últimas migalhas que haviam restado do pão de forma.
Ainda mais envergonhada, Sochin pegou-o nos seus braços, voltou-se ligeiramente na outra direcção e ficou completamente vermelha.
-Devíamos deixá-lo ir, é um animal selvagem. - Disse Kuroi.
-Eu tentei! - Respondeu a Rapariga. - Mas sempre que o poisava no chão e ia embora ele seguia-me. Não fui capaz de o deixar ali, ainda é tão pequenino e frágil... E é tão fofinho...
-Bah, és mesmo rapariga. - Atirou o rapaz mais novo. - Agora não nos vai largar! E quero saber como é que essa bestazinha me vai compensar pela sandes.
-Bom, se tem estado sempre connosco já não vale a pena tentar libertá-lo... Deve pensar que somos as mães dele, ou coisa parecida. - Constatou o mais velho. - Nesse caso vamos ter de cuidar dele até ser adulto.
Makoto fez uma expressão de indignação, voltando-se para o amigo como quem não esperava ser traído daquela forma.
-E devíamos dar-lhe um nome! - Exclamou Sochin, sorrindo de felicidade.
-Eu tenho o nome perfeito para essa coisa. - Cortou o irmão. - Almoço.
-Nii-chan! Não estás a pensar... Há ali mais sandes! Não te deixo comê-lo!
Com a mente cheia de pensamentos maquiavélicos, o rapaz fez uma expressão inocente e esforçou-se por pegar carinhosamente no falcão.
-Estava só a brincar, até simpatizei com ele!
-Ah, que bom que gostas dele! - Exclamou a rapariga, acreditando em cada palavra do que o irmão disse.
Kuroi suspirou. Não acreditava minimamente que o amigo tivesse repentinamente começado a gostar do pequeno animal lilás, mas também sabia que ele não seria capaz de o comer.
-Mas então... continuamos a treinar? - Perguntou o mais novo, largando o falcão que lhe começava a bicar os dedos com uma evidente antipatia.
-Agora não, mais daqui a pouco. - Respondeu Kuroi. - Lembrei-me de que precisamos de comprar passagens de barco ou vamos ter de esperar mais uma semana para chegar ao continente. Pelo caminho vou ver se encontro o Ken'ichi.
Os dois irmãos assentiram.
-Nós ficamos aqui a tomar conta do acampamento. - Disse Sochin.
O rapaz assentiu, cobriu-se com uma capa que guardava dentro da sua tenda e caminhou na direcção da entrada de Kyrial.

***

Ken'ichi vagueava pela cidade, aborrecido.
Fazia-lhe falta a acção, as lutas inesperadas a que se habituara sempre que estava com o irmão mais novo.
Com um suspiro, empurrou a porta de uma taberna e entrou.
Os clientes e o barman, um velho de aspecto quase humano e barba grisalha, olhavam para ele com estranheza. Uma jovem de longos cabelos côr de vinho envergando um avental aproximou-se dele apreensivamente.
-B-boa tarde, deseja alguma coisa?
Mirou-a de alto a baixo. Era muito bonita, com a pele ligeiramente morena e uma figura delicada, mas aparentemente passava-se algo de errado com ela.
-Um prato de carne e arroz e uma caneca de cevada. - Disse. Sentou-se e apoiou a cara numa mão. Ao seu redor todos demonstravam o mesmo receio.
"Pergunto-me se o Kuroi e os miúdos terão reparado nisto. Esta gente dá a impressão de que vai fugir a sete pés se eu levantar um dedo."
-Aqui tem. - Disse ela, pousando um tabuleiro na mesa e dando meia-volta rapidamente.
-Espera aí! - Ordenou Ken'ichi, tomando-a pelo pulso para que não fugisse.
A rapariga abafou um grito, tentando libertar-se com um movimento repentino.
-Hey, não te vou fazer mal! - Sussurrou-lhe. - Porque é que toda a gente está assim desde que eu entrei?
Ela limitava-se a tremer, fitando-o com um misto de choque e pavor. Os outros, distribuídos pelos cantos, murmuravam entre si sem se atreverem a intervir.
-Oh, tanto faz. - Disse, largando-a com uma expressão de profunda indiferença. - Se não queres responder, não vale a pena obrigar-te.
De súbito, a jovem pareceu mais calma.
-Não é um deles, pois não? - Perguntou timidamente.
-"Um deles"?
-Peço-lhe, tem de desculpar a Mina. - Intrometeu-se o barman, com a sua voz rouca. - As coisas andam muito tensas entre nós e alguns humanos. Há poucos dias chegou um grupo do continente que raptou o sobrinho dela e estão a usá-lo para nos chantagear.
Mina assentiu.
-Cuido do Dejai desde pequeno, porque a minha irmã morreu durante o parto. Apanharam-no à saída de casa e ameaçaram-nos com coisas como essa. - Explicou, apontando para o cinto de Ken'ichi, onde escondia um pequeno revólver.
-Eu trago isto para me defender. - Explicou, mostrando-lhes a arma segurada pelo cano. - Não vou matar ninguém.
Voltou a guardá-lo, pegou na caneca e tomou uma golada, mantendo-se incrivelmente calmo. - Em que direcção foram depois?
-Montaram um acampamento a sul da muralha.
-O meu grupo está a leste. Vou falar com o meu irmão e de certeza que ele estará disposto a ajudar-vos também. Prometo que vamos resolver isto.
Continuou a refeição, sob os olhares intensos de todos os clientes. Pareciam fitá-lo como a um louco. Apenas Mina parecia mais reconfortada, olhando-o de soslaio com esperança. Ao terminar, deixou um saco com dinheiro em cima da mesa e abalou sem uma palavra.
-Não sabe o que diz. - Murmurou um homem.
-Estão a cavar a sua sepultura... - Lamentava-se uma idosa, por entre baforadas de um cachimbo.

***

-Cinco pesos por pessoa?!
-A partida é amanhã à noite. Não posso cobrar menos a passageiros de última hora. - Respondeu o capitão, um velho de barba e bigode fartos e grisalhos, que usava um uniforme de marinheiro pelas costas.
"Velho fuínha, claro que pode cobrar menos. O navio é dele.", pensou Kuroi, procurando o dinheiro nos bolsos do interior da capa. Entregou-lho com um suspiro disfarçado e voltou as costas, caminhando com as mãos nos bolsos, entediado.
Vagueou durante alguns minutos pelas ruas, totalmente alheio aos olhares indiscretos dos habitantes. Quando chegassem ao continente não seriam decerto tratados com tanta estranheza, por isso não o incomodava.
Desviou o olhar para uma esquina. O seu irmão Ken'ichi acabara de passar a correr.
-Oy, Ken!!! - Exclamou, acenando para lhe chamar a atenção.
O outro respirou de alívio ao vê-lo e juntou-se a ele.
-Estava mesmo à tua procura. - Disse. - Enquanto estava a almoçar contaram-me uma coisa bastante curiosa.
Enquanto caminhavam para o seu pequeno acampamento, o mais velho foi explicando aquilo que ouvira na taberna. Kuroi ouvia atentamente, sem pronunciar uma palavra.
-Então passa-se mesmo algo. - Disse o mais novo por fim.
-Sim. Estava a pensar se há algo que possamos fazer. Devemos ser capazes de ajudar esta gente.
-Talvez, mas francamente não me apetece.
Ken'ichi mostrou-se indignado.
-Porque é que dizes isso? Podemos perfeitamente tentar acabar com esta situação!
-Duas razões muito simples. - Continuou Kuroi, mantendo-se indiferente. - Em primeiro lugar, o navio parte amanhã à noite e o capitão não nos vai devolver o que paguei pelas passagens caso não embarquemos. E em segundo... Não vejo porque me hei-de meter num problema entre humanos e dreffelianos. Não me diz nada.
-Achas que eu acredito nessas desculpas? - Exclamou o mais velho. - Conheço-te bem o suficiente. Porque é que estás a reagir assim?
O rapaz suspirou.
-Chegámos aqui há muito pouco tempo. Gostava de conseguir prolongar a calma que tivemos até agora por mais algum. Além disso, sabes tão bem como eu que fui banido com a minha mãe. Ninguém aqui me reconhece, mas se usar os meus poderes a notícia vai espalhar-se e podemos acabar por ser perseguidos.
Ken'ichi sentiu um ligeiro nó no estômago. O irmão estava certo. Caso fizessem algo para chamar as atenções, podia ser a última coisa que faziam.
-Mas eu fiz uma promessa. E ao que me disseram, os raptores são humanos. Talvez não tenhas de os usar.
Com um aceno de cabeça, Kuroi pensou por momentos.
-Podemos tentar. Mas espero que tenhas noção do que está em jogo.
Ken'ichi assentiu.
-Só temos umas horas. Vamos voltar para o acampamento e apressar-nos.
Enquanto isso, uma misteriosa figura espiava-os da sombra. Viu-os cruzar uma esquina, e com um esgar de malícia desvaneceu-se no ar.
Enquanto o vento se agitava, a espuma das ondas invadia aos poucos a praia perto do cais. Muito como no mundo que conheciam, as aves marinhas reuniam-se na areia húmida. Aproximava-se um estranho e inquietante temporal.

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