29 novembro 2009

Capítulo X: Voar

-Queres saber como nos conhecemos?
Makoto assentiu.
-O Senpai nunca me contaria a menos que tivesse uma óptima razão para o fazer. Por isso pensei que tu me pudesses contar. Enquanto ele está a dormir, 'tás a ver?
-Hum. - Ken'ichi pareceu pensativo. - Isso é muito típico dele. Leva o seu tempo a confiar totalmente nas pessoas.
Kuroi ainda estava a dormir, estendido sobre a relva molhada.
-Outra coisa incrível é aquela aparente imunidade a constipações. Acho que se não fosse por isso não tinha acreditado que ele não era humano. - Depois pigarreou. - Mas pronto... a verdade é que tinhas feito melhor em ir falar com ele. Não é um assunto em que eu goste muito de tocar.
-Por favor, Ken'ichi-san. Prometo que não falo disto a mais ninguém. É só mais... por curiosidade. - Disse o mais novo, um pouco embaraçado. - Quando se admira alguém é normal querer saber mais sobre essa pessoa, certo?
-Como quando... alguém compra todas as edições de uma revista só para descobrir o tamanho de caixa da Mimi Hizashi?
-Ah, Mimi-chan... - Suspirou. - Mas espera, TU FIZESTE ISSO??? - Depois, olhando em volta, viu que Kuroi começava a mexer-se. Chegou-se para o lado de Ken'ichi e baixou a voz. - Fizeste mesmo isso?
-Eh... claro que não... não! Estava só a... dar um exemplo! É isso! uma situação hipotética. - Respondeu o mais velho, sorrindo com notório embaraço.
"Mas que estou eu a fazer... isto não é algo que se deva dizer em frente a um miúdo.", pensou para consigo.
-Ouvi alguém gritar? - Perguntou Sochin, do interior da sua tenda.
-Não foi nada, maninha! - Respondeu Makoto. - Olha, não queres ir à cidade buscar leite? Esquecemo-nos de trazer algum.
-Não, ainda tenho sono. A hora aqui é totalmente diferente, ainda não me habituei ao Jet Lag. - Balbuciou.
-Está bem, dorme lá. Mas ainda te devo o favor de ontem! - Disse o rapaz, voltando-se depois para o mais velho. - Mas então, contas-me ou não?
-Conta lá isso ao rapaz, não faz mal nenhum. - Disse uma terceira voz que se juntou a eles.
Kuroi acabara de se sentar no chão no mesmo local onde estivera deitado, com as pernas cruzadas. Com uma mão, tentava sacudir a água da cabeça, apoiando a outra na perna.
-Estúpido orvalho. - Resmungou baixinho.
-Senpai! Estavas acordado?
-Com o sol a esta altura era impossível ainda estar a dormir. Pensei que era óbvio que estava só a fazer tempo.
Os outros dois forçaram um sorriso cínico.
-Para ti, tudo é óbvio!!! - Responderam em coro.
-Bah, são mesmo humanos, vocês os dois. - Disse, sorrindo. - Mas podes contar-lhe, Ken. Não vejo porque não.
-Pensei que não quisesses que se soubesse o quanto tu eras um bebé chorão. - Respondeu o mais velho, para o provocar.
-Ah sim? Tem graça, pensei que eras tu que tinhas vergonha de alguém descobrir como tu eras um miúdo mimado!
Fitaram-se um ao outro desafiadoramente durante alguns segundos, mas logo foram vencidos pelo ridículo da situação e rebentaram a rir.
"E eu que achava que tinha uma relação estranha com a Sochin.", pensou Makoto. "Mas pronto, se eles se divertem deixem-nos estar quietos."

***

Sete anos atrás. Numa pequena localidade a sul do Japão, uma figura sombria e fugaz atravessava as ruas sem despertar as atenções dos que passavam. Saltou por cima de uma poça de água que estava no chão e continuou a correr até parar em frente ao portão do muro do jardim de uma vivenda.
-É aqui. - Disse baixinho para consigo, com uma voz decidida e que parecia pertencer a uma criança.
Empurrou o portão verde de ferro pintado e dirigiu-se com um passo ansioso para a porta da casa. Saltou para alcançar a campainha e esperou que alguém abrisse.
-Quem é? - Perguntou uma mulher loira com sotaque americano, abrindo prontamente a porta. Ao não ver ninguém à sua frente, olhou para baixo.
A criança retirou o capuz do manto castanho que o cobria. Era um rapazinho de oito anos, com o cabelo castanho um pouco comprido e em desalinho e enormes olhos verdes. Por baixo da capa que lhe caía quase até às sandálias envergava uma espécie de túnica beige presa por um cinto de cabedal e uns calções abaixo do joelho. Toda a roupa parecia muito larga para a sua estatura.
-Bom dia! - Disse. - O meu pai está aqui?
A mulher pareceu atrapalhada, provavelmente surpresa pelo estranho visitante. Não parecia japonês, mas a sua pronúncia era impecável para uma criança tão pequena.
-Não, acho que te enganaste. É a minha família que vive nesta casa.
-Mas tenho a certeza que ele está aqui! - Exclamou o pequeno.
Cada vez mais perturbada, ela recuou um passo.
-Rapazinho, isto não tem piada. Onde estão os teus pais?
Ao ouvir esta pergunta, o pequeno baixou o olhar.
-A minha mãe morreu há três anos. E já lhe disse que o meu pai está aí dentro! - Respondeu, mudando repentinamente de tom de voz.
Ao fundo do corredor da casa surgiu outra criança, surpreendida pelas vozes.
Tinha o cabelo preto e curto e uns olhos castanho-avermelhados que transbordavam curiosidade. A pouco e pouco, foi-se chegando para perto da mãe.
-Diz-me lá, como é que se chama o teu pai? - Perguntou esta, já perdendo a paciência.
-Seishin. - Disse. - O apelido dele é Seishin.
Mãe e filho ficaram escandalizados.
-Não pode ser... Querido, vem aqui um minuto! - Chamou, voltando-se para dentro de casa.
Um homem alto, com cabelo escuro e um rosto severo, surgiu por detrás dos dois.
Tinha ar de ter sido interrompido nalguma coisa.
-Que se passa, mulher? Não te disse que não queria ser incomodado?
-Espero que tenhas uma excelente explicação para isto.
Afastou-se, permitindo que o marido visse a entrada da casa.
-Este miúdo diz que é teu filho.
-Kuroi... Não pode ser! - Exclamou, surpreendido. - Mas o que raio é que está a fazer aqui?
-Então conheces esta criança?
O rapazinho de cabelo preto olhava para ambos os pais, sentindo a tensão que crescia.
-Mamã, quem é este menino? - Perguntava, assustado.
-O que é que fizeste durante aqueles cinco anos? - Gritava ela, ignorando o filho. - Será que estiveste mesmo a trabalhar no estrangeiro? Abandonaste a tua família de repente e voltas da mesma maneira... e agora vem bater à porta um outro filho teu de quem eu nem sequer sabia! O que é isto?
O rosto entediado do homem endureceu numa expressão de desdém.
-A vida é minha. Faço o que bem me apetecer com ela.
A mulher levou uma mão ao rosto, que se tornou repentinamente rubro.
-Ken'ichi, vai para o teu quarto com este menino e fiquem lá até eu vos dizer para saírem.
-Não quero, mamã! Ele é esquisito! - Exclamou o pequeno, indignado.
-Faz o que te digo!
Contrariado, o rapazinho pegou em Kuroi pelo braço e arrastou-o atrás de si até ao quarto.
A casa era ao mesmo tempo cheia de luz, mas surpreendentemente sombria. O mais pequeno sentiu um nó no estômago, ao mesmo tempo que começava a compreender o que se passava.
Os dois rapazes entraram para o quarto, fechando a porta atrás de si, e Ken'ichi deixou Kuroi de pé no meio da divisão, indo sentar-se junto à parede para se afastar dele.
Passaram alguns minutos imersos no mais profundo silêncio. Kuroi começou a ficar cansado e sentou-se também no chão de soalho.
-O meu pai é só meu pai. - Murmurou Ken'ichi. - És um mentiroso.
Kuroi baixou o olhar.
-Então também é teu pai...?
-Cala-te! - Gritou o mais velho, irritado. - Já disse que ele é só meu pai!
-Eu não estou a mentir, sou mesmo filho dele! Desde que eu nasci que esteve comigo e com a minha mãe em Dreffel, e depois de ele se ir embora... alguém a matou.
-Isso é estúpido, estás a inventar. Para começar, o que é essa Dreffel?
-É um mundo muito parecido com este, foi onde eu nasci. Só se pode lá chegar através de portais dimensionais.
-Além de mentiroso és um extraterrestre. Que parvo.
-Estou a dizer a verdade! Se não queres acreditar, não acredites.
Suspirando, o mais velho desviou o olhar e tentou agir como se Kuroi não estivesse ali.
Por vezes, os seus pais discutiam, especialmente desde que o seu pai regressara misteriosamente após cinco anos de ausência. Mas desta vez ele sabia que era diferente. O que quer que tivesse feito a sua mãe chorar, tinha alguma relação com aquele rapazinho. E com uma traição que faria com que nada voltasse a ser o mesmo.
Mas... até que ponto uma criança de oito anos, ainda por cima ingénua, podia ter alguma culpa de tudo aquilo?
"Bolas...", pensou para consigo. "Mesmo que a culpa não seja dele, custa-me não o odiar. Mal chegou aqui e já começou a criar problemas. Mas se estiver a dizer a verdade..."
-Hey, miúdo. - Chamou, voltando a olhar em frente. - Kuroi, não é?
Kuroi olhou para ele com surpresa e assentiu.
-Estavas mesmo a dizer a verdade quanto ao meu pai? És filho dele?
-Sim. - Respondeu o pequeno. - Mas se eu soubesse que ele tinha outra família tinha ficado em Dreffel.
-Mas sendo assim não quer dizer que somos irmãos?
Ken'ichi começava a ultrapassar o primeiro choque, mas não estava bem certo de conseguir aceitar aquele desconhecido como seu irmão. No entanto, ao ver que Kuroi o fitava com um misto de surpresa e admiração, não pôde evitar esboçar um sorriso tímido.
De repente ouviram gritos e uma porta a bater violentamente.
-Nem sabes o que vais fazer com ele? Que belo monstro me saíste! - Exclamava a mulher.
-Já te disse que não quero saber. O filho é meu, Lily, e depois? Vais obrigar-me a tomar conta dele?
-Seu grandessíssimo... ouve bem, não importa o que faças, eu vou ficar com esta casa e com a custódia do nosso filho. E fico também com o teu rapaz, mas só porque tenho pena do que ele se tornaria nas tuas mãos. Mas só até ele fazer dez anos, e nem mais um dia! Entendido?
-Faz o que quiseres, mulher. Eu vou-me embora daqui.
Ao ouvir estas palavras, Kuroi sentiu um arrepio na espinha. Algo tão simples como rever o seu pai acabara por se tornar no catalisador da destruição de uma família.
-Lamento muito. - Murmurou.
O mais velho engoliu em seco, tentando conter a sua angústia.
-Esquece. Não podias saber de nós.
-Mas tu estás a pensar que a culpa é minha.
Era verdade, Ken'ichi sentia que a culpa era dele. Mas sabia ao mesmo tempo que o pequeno não fizera nada de mal.
-E se for preciso vou viver com isso cá dentro. Temos tempo de sobra para aprendermos a ser amigos... ou irmãos.
Dito isto, levantou-se e pendurou-se na janela. Através do vidro gelado, teve um rápido vislumbre das costas do seu pai, enquanto este caminhava serenamente já no fim da rua com uma gabardine pendurada nas costas. Não havia remorsos nem hesitações nas suas passadas. Apenas uma grande e dolorosa indiferença.
Deixou-se cair novamente até ao chão com um soluço.
-Foi... foi melhor assim.

***

O silêncio instalara-se entre os três rapazes. O ambiente tornara-se pesado de súbito.
-A tua irmã não está a dormir há demasiado tempo? - Perguntou Ken'ichi, tentando quebrar o gelo.
Sorrindo como quem está a tramar algo, Makoto voltou-se para trás e abriu um pouco do pano que cobria a entrada da tenda de Sochin.
-Maninha, hora de acordar!!!! - Gritou. Depois, já com os olhos habituados à escuridão do interior, assistiu a uma estranha cena.
Sochin encontrava-se ajoelhada no meio dos sacos-cama, com uma expressão aterrorizada e a tremer. Num canto da tenda via-se uma forma escura com dois olhos que reluziam.
-Tira isto daqui, nii-chan! Por favor! - Balbuciou ela, agarrando com força um cobertor. - Tenho medo de fazer alguma coisa!
Makoto aproximou lentamente a mão do monte negro e peludo, tentando pegar-lhe.
-OUCH!!!
Kuroi e Ken'ichi amontoaram-se na entrada, acorrendo aos gritos do rapaz.
-O que se passa?
Olhando com raiva para a criatura, este apertava a mão debaixo do outro braço para não sangrar.
-Aquela coisa mordeu-me, bolas!
Mostrou-lhes o dedo indicador, que tinha marcas como as de um bico e sangrava um pouco.
Kuroi rastejou um pouco mais para dentro da tenda. O pequeno vulto, que parecia negro recortado contra o tecido da cobertura, fitava-o com os seus olhos brilhantes. Esticou um braço para o agarrar e logo sentiu um bico aguçado cravar-se-lhe na pele do dedo e rasgá-la. O mais novo trincou o lábio para não voltar a gritar, mais impelido pela sugestão do que pela dor física.
Mas o rapaz nem sequer alterou a sua expressão. Saiu da tenda tirando a mão em último lugar, com o animal pendurado no dedo, para grande arrepio de todos, que olhavam ora para o sangue que escorria, ora para a indiferença do amigo.
-Larga. - Disse ele, sacudindo violentamente a mão.
O animal caiu na relva, sendo finalmente possível identificá-lo.
Parecia ser a cria de uma ave de rapina; no entanto, a sua plumagem tinha uma cor estranha muito próxima ao lilás claro.
-Parece um falcão. - Disse o mais velho. - Mas tem uma cor bastante estranha.
Kuroi assentiu. Olhou para cima, procurando algo com o olhar.
No alto da muralha via-se um ninho e ao longe ouviam-se os pios de um falcão adulto.
Sochin sentiu um nó na garganta.
-Foi rejeitado?
-Sim. - Respondeu Kuroi, com um tom de voz subitamente grave. - É provável.
-Coitadinho...
-Não tenhas pena dele. É uma ave com as suas próprias asas. Acabará por aprender a voar.

Sem comentários: