06 junho 2009

Capítulo V: Os espinhos da rosa

Kuroi encontrava-se sentado no chão de um quarto de hotel apertado, mas confortável, remexendo num sem-fim de papéis e pressionando as têmporas com uma mão e sublinhando e sublinhando nomes atrás de nomes com a outra. A luz fraca e alaranjada do candeeiro cansava-lhe os olhos e o chiar das páginas do velho caderno a roçar nas argolas metálicas estava a deixá-lo louco.
-Senpai, já é tarde... devíamos ir dormir. - Balbuciava Makoto, estendido ao comprido no sofá de módulos da pequena entrada.
Esfregava os olhos energicamente, tentando manter-se acordado mas apenas conseguindo que lhe ficassem vermelhos.
Kuroi levantou o olhar dos papéis e fitou o amigo.
-Talvez tenhas razão. - Disse. - Acho que neste estado não vou muito mais longe. Mas é como se tivesse a obrigação de fazer o mais que consigo. Depois de todo o tempo que perdi...
Makoto baixou o olhar compreensivamente.
-Mas não vais fazer nada nesse estado.
-Se a festa da empresa ali de baixo fizesse menos barulho até podíamos passar pelas brasas, mas assim é inútil. - Respondeu Kuroi. - Vou arrumar isto por hoje e buscar algum café. Queres?
-Pode ser. - Acenou o outro. - Mas não tragas um demasiado forte para mim, não estou muito habituado a café.
Kuroi assentiu, abriu a porta do quarto 666 e saiu, voltando a fechá-la atrás de si.
Makoto suspirou e olhou para a lista que Kuroi tinha estado a examinar. Estava cheia de nomes e localizações e alguns dos nomes estavam sublinhados a cor. Outros estavam cortados por linhas a todo o comprimento.

***

Kuroi chegou ao fim das escadas e procurou uma máquina de café na área circundante.
"Ali!", pensou, ao avistar uma máquina preta perto do salão de festas. Acercou-se dela e colocou duas moedas com um gesto rápido.
Do salão vinham ruídos de conversas e risos pouco sóbrios. Kuroi bebeu o seu café de um único trago e deu um passo na direcção da festa para dar uma vista de olhos, mas voltou para trás. Afinal, Makoto não o perdoaria se se fosse divertir e não o chamasse.

***

-Você tem a certeza do que está a dizer? - Soou uma voz grave e ameaçadora.
-Sim, tenho. eu não roubaria o seu precioso tempo se não soubesse que é mesmo ele, Edgar-sama.
Edgar retirou com uma só mão do seu oleado verde-seco um fósforo e acendeu o pequeno cachimbo que tinha na boca, perante o olhar respeitoso e assustado do dono do hotel.
-Mera-sama vai ficar feliz com essa novidade.
Largou o pescoço do homem e riu maldosamente.
Com um clique, a porta da apertada e escura arrecadação abriu-se, chiando nas dobradiças.
-Edgar, já lhe arrancaste o que queríamos saber? - Perguntou uma voz feminina e suave. No mesmo momento uma figura esguia passou pela porta, mantendo-se na sombra.
-Sim, senhora. O miúdo está hospedado aqui.
-Excelente. Podes matar este infeliz. - Respondeu, apertando contra si o comprido casaco de gola felpuda e atirando para trás o cabelo negro.
Edgar voltou a rir.
-Como queira, Mera-sama.
Com um golpe de punhal o gerente do hotel deixou de suplicar pela sua vida e o sangue escorreu pelo chão. Mera acercou-se dele, agachou-se e, antes que ficasse dura, fechou-lhe na mão uma rosa azul. Depois voltou a endireitar-se e perfilou-se ao lado do companheiro.
-Agora sim, o quadro está completo. Vem, Edgar, temos mais espectáculo para dar. Estou ansiosa por reencontrar o "nosso" miúdo...

***

-Mas achas que nos deixam entrar na festa sem mais nem menos? - Perguntou Makoto, acabando o seu café.
-Se não nos quiserem lá podemos ir escondidos, roubamos uns fritos e já não fica tudo perdido. - Gozou Kuroi. - Vá, anda, não deve haver problema.
Makoto sorriu, acenou com a cabeça e levantou-se do sofá.
Quando os dois amigos chegaram ao salão, a primeira coisa que viram foi uma mesa ricamente decorada com um buffet de marisco.
-Ostras... estou a ficar enjoado... - Gemeu Makoto, recuando um passo e fazendo uma careta.
-Então isto é uma festa de humanos... - Murmurava Kuroi para consigo. - Pensei que fossem piores.
-MATARAM O GERENTE!- Gritou uma das empregadas do hotel, chegando espavorida à entrada do salão.
Com o barulho, poucos foram os que ouviram, mas quando o grito se repetiu todos se calaram de repente, olhando para a mulher que estava encharcada em suor e lágrimas de terror.
-Chamem a polícia! - Gritou Kuroi. Depois aproximou-se da empregada a correr, seguido de Makoto, ainda meio atarantado. - Minha senhora, acalme-se e mande isolar o edifício, não deixe ninguém entrar ou sair. Onde está o corpo?
A mulher, ainda a soluçar, voltou-se e apontou a porta escancarada da arrecadação, ao fundo do corredor.
-Makoto, vai acordar a Sochin e fica com ela, tenho um mau pressentimento acerca disto!
Makoto balbuciou qualquer coisa como "Também queria dar uma olhadela ao morto" e correu para o quarto da irmã.
Kuroi aproximou-se da porta da arrecadação e aquilo que viu confirmou a sua pior suspeita. No centro de uma mancha de sangue ainda fresco, por entre os dedos rígidos do cadáver, encontrou uma rosa azul bem sua conhecida.
-Mera. - Murmurou. - Mas o que é que ela pretende com isto?
Suspirou e seguiu para o seu quarto. Se bem a conhecia, não iria demorar a descobrir o que se passava, além de que não seria capaz de a encontrar mesmo que vasculhasse todo o hotel.
Sem pensar muito no assunto, entrou na casa-se banho e molhou a cara para acordar um pouco mais. Quando pegou na toalha sentiu uma presença atrás de si.

-Kohaku Mera... já estava a estranhar a demora.
Mera sorriu provocadoramente.
-Há quanto tempo. Tive de parar para ver qual era o teu quarto, Kuro-chan... e o dos teus amiguinhos novos. São muito espirituosos, é pena que...
-Se aquele teu ajudante nojento lhes tocar... - Cortou Kuroi - ...vou fazer-vos voltar para o buraco de onde vos desenterraram.
-Que rude! - Exclamou a rapariga, irritada. Era um pouco mais velha e tinha a mesma altura que Kuroi, apesar de o casaco justo a fazer parecer mais alta. - Eu só disse ao Edgar para os divertir por um bocadinho...
-Tu és doente. - E, dito isto, saiu a correr do quarto, ignorando a expressão indignada da jovem, na direcção do quarto onde se encontravam os dois irmãos.
A porta tinha sido arrombada brutalmente e no interior era visível apenas a figura larga de Edgar recortada contra a luz do candeeiro.
Com uma força desproporcional à sua estatura, Kuroi puxou o braço do homem, abrindo caminho e obrigando-o a voltar-se.
Makoto agarrava o varão do guarda-roupa em gesto de defesa e Sochin encontrava-se atrás dele, apertando as mangas da sua camisa, aterrorizada.
-Senpai! - Exclamou ele. - Ainda bem que chegaste. Podes dar-me uma ajuda com este "penedo"? Não nos quer deixar sair.
Kuroi, a princípio, ficou surpreendido, mas depois sorriu levemente.
-Estava a pensar em ver como te saías. Só por um bocadinho, se é que me entendes.
Makoto assentiu, retribuindo o sorriso com uma expressão de satisfação, e rodou o varão nos dedos. Olhando para Sochin, fez sinal para que a irmã o largasse por um pouco e se afastasse. Kuroi foi ter com ela, sempre olhando para Makoto.
-Ora onde é que eu ia... - Dizia Edgar para consigo. - Ah, sim. Limpar o sebo a estas pestes.
Avançou pesadamente na direcção de Makoto, que tinha pouco espaço para recuar.
-Não tão cedo.
Encostando o varão no tronco de Edgar, Makoto tomou impulso para se desviar, atirou-se para o lado, rodou nos calcanhares e disparou um pontapé na direcção do corpulento adversário.
Este levou o impacto, contraiu-se ligeiramente e voltou à carga na direcção do rapaz.
-Bolas que é resistente! - Exclamou Makoto. - Por pouco quem se magoava era eu!
Edgar deu um pesado salto sobre Makoto, golpeando-o a partir de cima com o punho fechado. Makoto colocou o varão entre si e ele, mas a força do murro desferido quebrou-o e acertou-lhe em cheio na cabeça.
-Mano!!! - gritou Sochin, correndo alguns passos em frente. Kuroi agarrou-a por um braço.
-O que é que está sa fazer? Queres morrer assim tanto? - Gritou Kuroi reprovadoramente. - Eu trato disto a partir de agora.
Makoto tombara com o impacto e levantava-se agora, levando a mão à cabeça. Edgar puxou da faca que utilizara no assassinato e caminhou lentamente na sua direcção, brincando com ela nas mãos.
Kuroi largou o braço de Sochin, correu para Edgar e atirou um dos ombros contra as suas costas com força. O homem perdeu o equilíbrio por um momento e varreu o ar com o braço desocupado, tentando atingir Kuroi.
Makoto aproveitou para se escapar pelo chão e levantar junto do amigo, e ambos esperaram novo ataque de Edgar.
De repente, Mera assomou à entrada.
-Ora, ora... dois contra um parece-me um pouco desequilibrado, não, Kuro-chan?
-Este idiota tem o tamanho de TRÊS!!! - Gritou Makoto.
Edgar esboçou um sorriso malicioso e recuou para junto de Mera. A jovem juntou as mãos e, nas suas palmas, surgiram faíscas que em breve formavam um círculo incandescente no chão à sua volta.
-Isto não é nada bom. - Comentou Kuroi entredentes.
Sochin trincou o lábio inferior. Estava paralisada com medo mas sentia uma necessidade enorme de ajudar os dois rapazes.
As chamas em redor de Mera começavam a alastrar ao chão do quarto a pouco e pouco.
Kuroi desapareceu e reapareceu no ar, bem em frente de Edgar, e lançou um pontapé dirigido ao meio das suas pernas com toda a força.
-Senpai!!! Isso doeu até a mim! - Exclamou Makoto, escandalizado.
-Humanos... tão vulneráveis. - Comentou Kuroi.
Depois, com um movimento rápido do braço e a mão bem firme, atingiu-lhe um ponto no meio das peludas sobrancelhas. Deixou-se cair apoiado na outra mão, voltou-se e fitou Mera.
-Agora já posso tratar de ti.
Makoto observava, abismado, enquanto o corpo gigantesco de Edgar caía, inanimado, no tapete. Depois, reparando nas chamas, correu para a casa-de-banho.
-Mano, o que é que estás a fazer? - chamou Sochin, de um canto do quarto.
-É mesmo um desperdício... - lamentou-se Mera - ...mas parece que é aqui que nos despedimos, Kuro-chan.
-Sua BESTA! - Gritou Sochin, pegando numa das metades do varão partido e atirando-a a girar contra Mera.
A barra metálica abrandou a meio do vôo e incendiou-se, desfazendo-se em cinzas.
-Eu posso queimar qualquer coisa, querida. Mas foi um bom esforço. - Gozou a jovem.
Da casa-de-banho ouviu-se um ruído de pancadas fortes com um martelo e, da porta que se abriu, jorrou um enorme jacto de água. Makoto assomou à porta, retirando da cara um par de óculos de protecção encharcados.
-Também queimas isto? - Ironizou. - Agora, Senpai, enquanto ela não pode atacar!
Kuroi sorriu para o amigo e correu para Mera, surpreendida, imobilizando-lhe os braços.
A jovem tentava desesperadamente libertar-se, e de repente impeliu a cabeça para trás, acertando em Kuroi e fazendo-o tombar.
O fumo denso espalhado pelo quarto fazia Sochin e Makoto tossir, mas parecia não a afectar.
Alguns segundos depois, os três desmairam.

***

Kuroi abriu lentamente os olhos. Sentia uma toalha molhada na testa. Tentou erguer o corpo, mas mal conseguia respirar.
-Não te mexas. - Disse a voz de sochin. - A enfermeira deve estar quase a chegar.
-...Enfermeira...? - Murmurou.
Quando finalmente a névoa nos seus olhos desapareceu, olhou em volta. Estava deitado numa cama de hospital, ensopado até aos tornozelos e cheio de fuligem. A parte interior do seu braço esquerdo ardia-lhe.
-Vocês estão bem? - Acabou por perguntar.
-Não te preocupes. Conseguimos cobrir a boca e não respirámos muito fumo.
-E aqueles dois...?
-Foram-se. Desapareceram sem deixar rasto. - Intrometeu-se Makoto. - A polícia diz que provavelmente tivemos um acidente com um isqueiro ou coisa parecida e não acreditam no que lhes dizemos.
-Como era de esperar. - Respondeu Kuroi, finalmente capaz de se erguer. - Não vale a pena. aquela rapariga também é filha de uma das ninfas e desde que está neste mundo que me lembro de ser uma assassina. Agora deve ter uns... acho que 17 anos. Ao fim deste tempo todo, não me admira que já tenha o poder a este nível... temos de ter muito cuidado com ela.
Sentiu novamente uma pontada no braço e arregaçou a manga da camisola. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Os dois amigos ficaram sem respiração.
No seu braço via-se uma queimadura enorma formando letras, e uma frase.
"Um a um, todos vão morrer."

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