03 setembro 2009

Capítulo VII: A segunda luz

Os pingos de chuva batiam com força na janela do quarto. O vento gemia baixinho enquanto os primeiros raios de luz tentavam irromper pelas cortinas.
Kuroi sacudiu ligeiramente a cabeça ensopada e apertou com força o cobertor enquanto abria os olhos com uma expressão de desagrado.
"Esqueci-me outra vez da janela aberta durante a noite... que porcaria", pensou para consigo, ajoelhando-se na cama para a fechar.
Depois de trancar o fecho deixou-se cair para trás sobre o colchão e suspirou. Os dias de tempestade como aquele acalmavam-no, mas deixavam-no cansado..
Alguns minutos depois saía já da pensão, embrulhado num sobretudo e com o chapéu a cobrir a cabeça da chuva que parecia engrossar a cada momento.
Saiu de debaixo do toldo da porta e apressou-se na direcção da casa dos Kime, respirando com dificuldade o ar pesado e húmido.

***

-Ainda está a dormir?! Mas como é possível?
-Estou a dizer-te, mãe, ela não acorda nem por nada!
Ame respirou fundo e saiu da cozinha disparada em direcção ao quarto dos dois irmãos. Makoto seguia-a com passadas largas.
-Sochin, estás aí? Vou entrar! - Gritou, abrindo a porta.
Sochin remexia-se por entre os lençóis, aparentemente alheia aos gritos da mãe e aos abanões do irmão. Tinha as maçãs do rosto e o nariz bastante corados.
-Está a arder em febre. - Disse outra voz.
Voltaram-se. Kuroi encontrava-se atrás deles, pendurando o sobretudo e o chapéu molhados no trinco da porta.
-Senpai, como é que...
-A porta estava mal trancada e eu entrei. Mas não é altura para falar disso, deviam chamar um médico. - Disse, olhando para Sochin, que agora gemia qualquer coisa que não conseguiam perceber.
-O meu marido já trabalhou como médico, vou chamá-lo. - Respondeu Ame prontamente, dando meia volta e saindo apressada.
Makoto fitou Kuroi, que se encontrava ainda de pé junto à porta. Fez-lhe um gesto de cumprimento com a cabeça, que logo foi retribuído, e pigarreou para quebrar o silêncio.
-...Achas que é grave...? - Murmurou. - Ela está tão vermelha...
-Ainda agora cheguei, estou a tentar descobrir. Mas acho que agora devias preocupar-te contigo mesmo. Sentes alguma coisa de estranho?
-Não, nada... estou perfeitamente normal.
Foram interrompidos pelo barulho dos passos de Ame e do marido, que entraram preocupados pelo quarto dentro.
-Está mesmo a arder em febre. - Constatou o pai dos dois irmãos, depois de tirar a temperatura a Sochin. Mas não tem os sintomas normais de uma gripe, nunca vi nada assim.
Kuroi, hesitando ligeiramente, aproximou-se da cama.
-Eu... eu já vi esta doença. Não é uma gripe.
Makoto fitou-o, curioso.
-Então o que é isto, Senpai? Eu também nunca vi nada assim.
-Há pouco disseste-me que te sentias bem, não é verdade?
Makoto acenou com a cabeça.
-Isso significa que ela esteve nalgum lugar onde apanhou a doença mas que tu não estiveste com ela.
-Mas isso é impossível! Sabes bem que nos últimos tempos andámos sempre juntos!
Na expressão séria de Kuroi abriu-se um leve sorriso.
-Esta noite parece que não.
-Estás a dizer que a minha filha saiu de casa esta noite e ninguém reparou? - Indignou-se Ame. - E onde teria ela ido?
Kuroi voltou-se para ela e fez sinal para que não falasse alto. Remexeu nos bolsos do casaco até encontrar um pequeno frasco cheio de um líquido arroxeado pouco homogéneo e fez com que Sochin o bebesse. A rapariga tossiu ligeiramente e abriu os olhos com uma expressão sonolenta.
-...Kuroi-kun!!! - Exclamou, abraçando-o a tremer.
Kuroi, apanhado de surpresa, tentava libertar-se dos braços de Sochin.
-Bolas, os humanos reagem mesmo bem a isto!
Makoto correu para a irmã, aliviado.
-Sochin, o que aconteceu? - Perguntou, puxando a irmã, que ainda tremia, para longe do amigo. - Nem sabes o susto que nos pregaste!
-Eu estive lá, mano, eu estive lá! Tenho a certeza! - Depois, olhando para Kuroi, sorriu timidamente. - Eu cheguei a Dreffel, também sou capaz!
Kuroi, já refeito do susto, sorriu de volta para Sochin.
-Isso são boas notícias. Consegues lembrar-te de como o fizeste?
Sochin acenou.
-Consigo lembrar-me bem, mas é estranho... eu estava a dormir e quando acordei já não estava no quarto. Acho que fui parar a uma espécie de ruela numa cidade, vi até algumas pessoas que não repararam em mim, mas depois perdi os sentidos e retornei aqui.
-Acho que apanhaste uma doença que é muito comum por lá, e como não tinhas defesas ficaste em mau estado. - Respondeu Kuroi. - Ainda bem que me restava este frasco de remédio. Trouxe-o quando vim para cá mas nunca precisei dele.
Sochin levantou-se lentamente e ia calçar um par de chinelos quando Kuroi a olhou reprovadoramente e empurrou para trás, voltando a deitá-la.
-Nada de sair da cama antes de eu deixar. - Murmurou. - Não tenho paciência para uma epidemia mundial.
Sochin fez uma expressão intimidada e encolheu-se entre os cobertores.
-Então... partimos quando ela recuperar? - Perguntou Makoto.
-Ainda não, há algumas coisas que eu tenho de fazer antes disso. - respondeu Kuroi, tirando o chapéu do trinco da porta e colocando-o. - Quando ela estiver curada ainda preciso de falar com uma pessoa. Com um pouco de sorte consigo convencê-lo a vir.
Makoto estava prestes a perguntar "Que pessoa?", quando foi interrompido por Kuroi, que continuou a falar.
-Já agora, podes vir comigo um minuto? Precisamos de comprar alguns mantimentos e preciso de ajuda para colocar tudo na mala do carro. Além disso devias afinar o motor para ter a certeza de que aguenta a viagem, porque o caminho até à cidade para onde vamos é longo e não temos sítios onde parar.
-O.K.! - Respondeu o rapaz, levantando-se dos joelhos e seguindo Kuroi.

***

-Que interessante... a pirralha consegue abrir portais. Não é divertido, Edgar?
Edgar riu malevolamente.
-Divertidíssimo, Mera-sama. Mal posso esperar para acabar com aqueles anõezinhos de uma vez por todas.
Mera olhou para Edgar com uma expressão ameaçadora.
-Tu só serves o aperitivo. Cabe-me a mim tratar da sobremesa e esmagá-los completamente.
Mera vigiava os acontecimentos do topo de uma árvore com um par de binóculos, encavalitada nos ombros de Edgar.
O homem grunhiu qualquer coisa sobre também gostar de sobremesas.
-Mera-sama...
-O que foi agora? - Indignou-se Mera, baixando os binóculos e olhando para o corpulento ajudante.
-Estou sem lume! - Queixou-se Edgar, apontando para o cachimbo.
Mera suspirou, esticou um dedo e na ponta surgiu uma pequena chama brilhante. Aproximou-a do cachimbo, que logo começou a fumegar, e apagou-a.
-Devias mesmo arranjar uns fósforos, seu idiota.
Edgar grunhiu baixinho novamente e Mera continuou a observar os acontecimentos pela janela.

***

-Senpai, estava aqui a pensar...
-O que foi agora? - Perguntou Kuroi, desviando o olhar das latas de comida das prateleiras do supermercado e olhando para Makoto.
-Bem, tu disseste que Dreffel era um lugar perigoso. - Disse o rapaz.
-Sim, eu sei que disse isso. E então?
Makoto hesitou por um segundo.
-Eu pensei... achas que me poderias ajudar? Isto é, a ficar mais forte. Eu sei que te disse que estava a aprender a lutar, mas a verdade é que sou péssimo. - Disse, olhando para o chão, um pouco envergonhado. - E não quero ter de improvisar para o resto da minha vida. Se o que dizes é verdade, Dreffel não vai ser nenhuma brincadeira e eu não quero ser um fardo!
Kuroi colocou a mão no ombro do amigo.
-Ninguém disse que ias ser um fardo, pára de ser idiota. - Disse, com uma expressão séria. - E não te preocupes, posso dar-te uma pequena ajuda quanto ao treino. Mas aviso-te já: sou melhor aluno que professor, a sério.
Makoto acenou com a cabeça.
-Obrigado. Prometo que me vou esforçar ao máximo! - Disse, entusiasmado.
Kuroi sorriu e continuou a atirar pacotes para dentro do cesto do supermercado.
-Sabes... devias tentar ser um bocado mais autónomo. - Sugeriu. - Às vezes pareces um cãozinho atrás de mim.
Makoto olhou para Kuroi, indignado.
-O que queres dizer com isso?
O outro riu-se.
-Não leves a mal, mas é verdade. Desde que nos conhecemos tenho a sensação de que me andas a seguir cegamente para onde quer que eu vá. És sempre assim?
O rapaz mais novo suspirou conformadamente.
-Acho que me entusiasmei um bocado com isto tudo. - Constatou. - Nem imaginas como é uma sensação estranha ser-se amigo de uma pessoa que se admirou durante tanto tempo.
-Não sei porque é que hei-de ser motivo de admiração, - Respondeu Kuroi, atirando uma lata de feijões para os braços de Makoto, que a apanhou atrapalhadamente e colocou no seu cesto ainda vazio. - mas acho que deve ser mesmo estranho. Ainda bem que não é comigo, detestaria sentir que devia seguir alguém dessa maneira.
Makoto acenou timidamente.
-Mas como já disse, - Acrescentou. - Não quero que leves isto a mal. Só não quero que estejas pouco à-vontade, afinal assim que estivermos em Dreffel vamos passar muito tempo a viajar juntos.
Makoto acenou.
-Sabes, de certa forma estou curioso sobre Dreffel. É muito diferente deste mundo?
-Ora... digamos que não é muito diferente. É um mundo menos vasto e não é tão avançado como o vosso, mas existem muitas coisas semelhantes, até mesmo alguns aspectos da cultura. Mas isso, como é óbvio, varia de região para região. - Respondeu Kuroi. - Além disso, a diferença entre a tecnologia dos dois mundos nem sequer é um problema, visto que Tyfar cuida sempre das necessidades do seu povo. Mas, por acaso, desde que expulsou a minha mãe e as outras ninfas não sei o que se passará por lá... Já somos dois que vão saciar a curiosidade.
-Então e... as pessoas? - Perguntou Makoto, cada vez mais curioso. São humanos ou são todos... tu sabes, como tu?
-Isso é uma pergunta difícil de responder. - Disse o mais velho. - Alguns são filhos de humanos que foram viver para lá, outros são mestiços, mas mesmo entre os nativos há algumas diferenças. São practicamente humanos na maior parte dos casos, mas pessoas com o mesmo tipo de poderes que eu são muito raras.
-A sério?
-Sim. Na verdade, nem sei se haverá mais pessoas assim além de mim e dos outros filhos das ninfas. Talvez alguns nativos com pequenas capacidades, mas não sei mesmo. Nunca estive muito próximo do povo.
Passaram pela caixa e iam já a sair quando Kuroi abrandou o passo e fez uma expressão séria.
-Aconteceu alguma coisa?
-Não, nada. Foi só uma impressão. - Disse, e continuaram a andar.
"A Mera está perto daqui, tenho a certeza. Mas... o que é que ela anda a tramar desta vez? É melhor manter-me atento."

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