12 fevereiro 2011

Capítulo XVII: Prova de Fogo

O Sol já começava a dar sinais de avermelhar em Hodes quando Makoto e Sochin penetraram numa pequena praça escura e abandonada. As casas nesse lugar estavam envelhecidas, as suas velhas paredes descascadas e recobertas de musgo e líquenes. Num canto ou outro era visível um orifício que serviria, talvez, de ninho a algum roedor.
O rapaz franziu o nariz com estranheza.
-Já me podes explicar o que viemos fazer aqui?
A rapariga desviou o olhar para os pés, tentando inventar uma desculpa.
-Queria mostrar-te uma casinha linda que tinha encontrado algures por aqui, - Mentiu com desembaraço - mas acho que quando voltei para trás à tua procura me perdi.
Makoto suspirou, enfadado.
-Tens a certeza disto? - Sussurrou Ken'ichi para trás de si, observando os dois irmãos a partir de um beco meio oculto na penumbra.
-Que escolha tenho? É a única forma justa de lhe dar uma segunda oportunidade. - Respondeu do fundo do beco um rapaz pálido, de cabelo branco como a neve e olhos azuis-claros, dando os últimos nós num lenço vermelho que trazia ao pescoço. Sacudiu um pouco a poeira das calças de bombazine castanha, respirou fundo e fitou o outro.
-Conto contigo para observares de fora. - Continuou, dando um passo em frente e colocando a mão no ombro do mais velho. - Vou precisar também da tua opinião, Ken.
O outro sorriu, não sem alguma estranheza ao fitar o rosto do irmão.
-Não te preocupes, vou estar de olho em tudo. Faz o que tens de fazer, "Ryo".
Kuroi assentiu, retribuindo com um sorriso nervoso e olhou na direcção de Makoto, determinado. Avançou para a praça a passos largos e decididos, acabando de prender atrás, no seu cinto, um revólver que Ken'ichi lhe emprestara.
"Que comece o teatro!"
Foi Sochin que chamou a atenção do irmão.
-Nii-chan, acho que não estamos sozinhos...
Makoto voltou-se a tempo de ver surgir na esquina a figura alta e esguia de um albino com o olhar frio parcialmente oculto pela sombra e pelas madeixas de cabelo claro. Este sorria de forma inquietante, com a cabeça baixa.
-Humanos... o que é que pensam que estão a fazer num sítio como este?
A rapariga afectou nervosismo, lembrando-se do que Kuroi lhe dissera antes de se separarem. Enviaria um amigo, Ryo Daisuke, para tentar desencadear uma luta, e garantira-lhe que estaria a observar tudo.
-Perdemo-nos, chegámos ontem à cidade e ainda não a conhecemos bem. - Respondeu Makoto com toda a calma que conseguiu achar dentro de si.
-Eu posso ajudar-vos... a não encontrar o caminho de volta.
Retirou o revólver do cinto com um gesto rápido e apontou-o a Sochin, que não sabendo que estava descarregado abafou um grito de surpresa.
-Hey, o que é que estás a fazer? - Gritou o loiro, alarmado.
-Dá-me o que eu quero e a miúda não se magoa.
-Mas que brincadeira é esta? O que é que tu queres? - Berrou o outro, já quase em pânico. Sochin tremia ao seu lado, paralisada com medo da arma.
Kuroi, na figura de Daisuke, fez um esforço para manter o tom sereno e inquietante.
-Quero um combate, pura e simplesmente um combate até às últimas consequências. Tenho sede de sangue e suor.
Makoto engoliu em seco. Tinha medo, mas não poderia permitir que Sochin se magoasse.
-Com que armas? - Perguntou com voz trémula.
-As únicas armas de que precisamos são as que nasceram connosco. - Respondeu o falso albino. - Anda para aqui, e nada de gracinhas. Quando estiveres perto o suficiente para não te escapares, eu guardo o revólver.
O loiro assim fez, avançando em passos lentos e mantendo o olhar preso na arma de fogo que agora o ameaçava a si. A Kuroi custava sobretudo assustar o amigo dessa maneira, mas sabia que Sochin era a única razão através da qual poderia forçá-lo a lutar, ameaçá-la o único tabu que o faria perder o sangue-frio. Não sabia como Makoto se tentaria escapar da situação, ou se tentaria, mas estava decidido a esperar até ao final para dar o seu veredicto.
O início da resposta não tardou em surgir. Sem que tivesse reparado, o rapaz fizera um sinal muito discreto à irmã, por trás das costas, para que esta se baixasse. Com um gesto brusco alarmou Kuroi, que inconscientemente disparou para o ar, e de um pontapé certeiro sacou-lhe a arma da mão. Agarrou-a, mas antes que se pudesse aperceber de que estava descarregada e continha apenas pólvora seca pelo seu peso o outro deu-lhe um soco que o deixou atordoado por uns segundos.
A arma caiu no chão, e o mais velho decidiu que assim deveria ficar até ao final do teste.
O loiro recompôs-se rapidamente, satisfeito com a situação de igual para igual de que agora gozava, mas não deu sinais de contra-atacar. Em vez disso, recuava muito lentamente para junto da irmã para fugirem antes que pudesse reaver o revólver. Sochin ficara agachada, muito quieta, junto ao objecto. Sentiu que lhe competia agora a função de terminar o combate quando o considerasse demasiado perigoso para qualquer um dos dois.
-Nem penses que vais fugir! - Exclamou o falso Daisuke, lançando-se contra ele e segurando-o pelos braços o melhor que conseguia com aquele corpo sem poderes. Enrodou nele uma perna, com o objectivo de o derrubar, mas Makoto tomou uma atitude inesperada: agarrou-o pela manga da t-shirt preta e branca, deu-lhe um puxão brusco e desequilibrou-o com a sua própria estratégia. Tendo-o quase no chão, surpreendido e agarrado pelo cachecol para não se magoar, pousou-o e imobilizou-lhe os membros.
-Desculpa, mas não vai haver sangue aqui e agora.
Kuroi, sem a sua força habitual, deixou-se ficar, ofegante. Makoto estava também visivelmente cansado, mas continuava a segurá-lo com firmeza.
Sochin, percebendo que haviam atingido uma situação de impasse, decidiu agir. Pegou no revólver e, apercebendo-se então do seu peso, disparou para o ar.
-Acabou! - Gritou, apontando a arma ao mais velho. - Nii-chan, podes soltá-lo. Se ele fizer algum movimento brusco eu atiro!
Makoto assentiu, assombrado com o sangue-frio da irmã. Largou o outro cuidadosamente e recuou para junto dela.
Kuroi levantou-se com os braços erguidos com um sorriso, desta vez sincero e gentil. O mais novo estranhou esta mudança tão repentina, mas ainda mais o facto de Sochin ter largado a arma logo de seguida, respirando fundo.
O mais velho passou a mão pelo cabelo alvo e um pouco longo com uma expressão de alívio. Recompondo-se, recomeçou a sua actuação como Daisuke.
-Podes acalmar-te, miúdo. - Disse para Makoto. - Não era a sério.
Este voltou-se para Sochin, indignado.
-Mas o que é que se passa aqui? - Perguntou, ofegante. - Tu sabias disto?
Sochin assentiu, com os olhos postos nos pés.
-Desculpa.
-Calma, - Interrompeu o outro. - Foi o Kuroi que lhe pediu que não te contasse nada e que arranjasse uma desculpa para te trazer aqui. Não te zangues com a tua irmã.
-E tu quem és? O que raios se passou aqui afinal?
-O meu nome é Ryo Daisuke, eu e o Kuroi somos amigos desde pequenos. Encontrámo-nos nesta cidade por acaso e ele pediu-me que te pusesse à prova. Acho que queria ver qual era a tua resposta a uma situação em que fosses forçado a lutar.
O mais novo cerrou os punhos, enfurecido.
-Mas qual é a dele? Primeiro trata-me como uma criança e agora anda a testar-me? Isto já foi longe demais!
-Nii-chan, ele está a tentar dar-te uma oportunidade! - Gritou a rapariga de repente.
-Eu compreendo a tua reacção, mas o que ela diz está certo. - Interveio Kuroi, tentanto não se desmascarar diante dos dois. - Não me parece que isto tenha sido apenas um "teste", mas mais um pretexto para te dar uma segunda oportunidade. O Kuroi sabe muito bem o quanto tu queres continuar aqui.
Makoto baixou a cabeça.
-E manda alguém fazer isso por ele?
-Se ele te desafiasse cara-a-cara, tu aceitavas sequer? Tendo conhecimento dos poderes dele, achas que eras capaz de considerar o combate justo? Até eu tive de me conter um pouco, apesar de te teres defendido muito bem.
-Realmente... Se ele aparecesse à minha frente em vez de o enfrentar eu tinha acabado a dizer coisas que não sinto. Começo a achar que ele tinha razão, sou mesmo um miúdo parvo. - Respondeu o loiro, arrastando tristemente a voz com raiva de si mesmo.
-Isso não é verdade! - Exclamou o mais velho, colocando a mão no seu ombro talvez com demasiada familiaridade. - A tua reacção a este teste foi muito boa, tenho a certeza de que o Kuroi achou o mesmo.
-Onde está ele, agora? - Perguntou a rapariga, curiosa.
-Já deve ter ido embora. Ainda vamos discutir sobre isto mais tarde, mas vocês deviam animar-se... o teste foi passado com distinção! - Respondeu o albino, rindo.
Makoto tentou ergueu o olhar para ele e tentou esboçar um sorriso.
-Afinal, ele importa-se... Acho que lhe fiquei a dever um grande pedido de desculpas depois disto.
-Oh, esquece isso! Não é preciso, a sério! - Exclamou este de repente, com demasiada naturalidade.
-Eh... como é que sabes que não é?
-Quer dizer... - Pigarreou, embaraçado. - Eu conheço o Kuroi muito bem... tenho a certeza de que ele não está chateado e quer esquecer este assunto rapidamente. Em todo o caso, a minha parte nisto já foi cumprida, está na hora de ir andando antes que perca a caravana de volta para a minha cidade. Gostei de vos conhecer, espero que nos voltemos a encontrar em melhores circunstâncias!
Dito isto, deu meia-volta e entrou no beco.
-Ele sabe que aquilo não tem saída para a cidade, certo? - Perguntou Sochin de forma audível.
Sob uma gargalhada silenciosa de Ken'ichi, que se encontrava ali escondido, Kuroi voltou para trás com todo o sangue preso na face pálida, e saiu pelo outro extremo da minúscula praça. Escondeu-se atrás de uma carroça abandonada, esperou que os dois irmãos saíssem de volta para a estalagem e retornou para junto do meio-irmão. Este encontrava-se agachado, apanhando do chão o revolver.
-Foi por pouco, hã? - Comentou em tom de troça.
-Nem me digas nada. Pelo menos acabou por correr tudo bem!
-Sim, o miúdo safou-se em grande estilo!
Kuroi desapertou o cachecol para se refrescar, concentrou-se com os olhos fechados e uma nuvem negra pareceu surgir do nada e apoderar-se do seu corpo.
Quando finalmente desapareceu, uns segundos depois, o rapaz estava de volta à sua forma original. Ajeitou discretamente a franja castanha, irremediavelmente desordenada, e fitou o irmão com os seus próprios olhos verdes, exibindo um semblante exausto.
-Não pareces nada bem. - Comentou o mais velho.
-Estou cansado, isto passa-me. O tratamento e todo este tempo na forma do Daisuke usaram uma grande parte do meu poder... De qualquer modo, agora é prudente esperar um par de horas ou assim antes de voltarmos para a estalagem. Não podemos deixar que aqueles dois desconfiem de nada. - Respondeu o rapaz.
Ken'ichi acenou com a cabeça, suspirando.
-É estranho... já passaram mais de seis anos sobre a última vez que te transformaste no Daisuke, quando o teu poder se descontrolou, mas ainda me dá calafrios, sabias?
-Acredita, Ken... o meu poder não assusta ninguém mais do que a mim.

***

Duas horas mais tarde, Kuroi irrompeu pela estalagem acompanhado pelo irmão. Trocara de roupa desde o teste, envergava agora umas calças de ganga tingida azul-escura com barras elásticas de um tom mais forte ao longo das costuras, uma t-shirt vermelha-escura e um casaco preto, de tecido leve, com detalhes e gola em malha cinzenta, dois bolsos no peito e mangas arregaçadas presas cada uma por uma faixa e um botão metálico. Escondera minunciosamente a queimadura no antebraço esquerdo, enrolado com uma ligadura branca sobre a área da marca.
-Yo! - Saudaram os dois, juntando-se aos Kime em redor da mesa habitual.
Makoto, que até esse momento se encontrara silencioso de volta de uma rã de papel caoticamente dobrada que fazia mais lembrar um monstro disforme e, evidentemente, incapaz de saltar, ergueu o olhar para o amigo ao seu lado. Todo o seu rancor havia desaparecido.
-Posso? - Perguntou Kuroi a este, puxando de uma folha de papel lisa do monte em cima da mesa e começando a dobrá-la com perícia sem esperar resposta. - Creio que é isto que estás a tentar fazer.
Uma pequena rã de papel saltitou sobre a mesa com apenas um toque do seu indicador. Makoto, fascinado, pegou nela e examinou-a.
-Como é que fizeste isto? Já tentei milhões de vezes todas as dobras possíveis e não sou capaz! - Queixou-se.
Depois, lembrando-se dos acontecimentos dessa tarde, baixou o olhar, envergonhado.
-Makoto, está tudo bem. - Disse o outro, dando-lhe uma pancadinha leve no ombro. - Sou eu quem devia pedir desculpa por dizer as coisas sem pensar bem nelas. É normal perder a cabeça de vez em quando, por isso... nenhum de vocês volta a lado nenhum se não quiser.
O loiro hesitou por uns segundos e depois sorriu, mostrando a rã de papel de Kuroi na palma da sua mão.
-Ficamos quites... se me ensinares a fazer uma destas! - Exclamou, satisfeito.
Enquanto Kuroi lhe passava para as mãos uma folha nova e lhe explicava como a dobrar correctamente, Sochin fitava um ponto imaginário no tecto.
-Como é que fazes isso tão facilmente? - Acabou por perguntar, curiosa.
Foi Ken'ichi que respondeu.
-Antes de nos mudarmos para a América, havia um avôzinho no nosso bairro que ocupava o tempo a fazer origami. Durante o tempo que lá estivemos depois de o Kuroi chegar costumávamos visitar a casa dele para aprender. Ao contrário do meu irmãozinho aqui eu já me esqueci de metade dos diagramas com a falta de prática. Mas, convenhamos, ele não é humano.
Kuroi sorriu, embaraçado, coçando a cabeça com uma mão.
-Há algo que me está a intrigar mais neste momento. - Comentou o mais novo. - Quem era, afinal, aquele Ryo Daisuke que encontrámos esta tarde?
O rapaz de cabelo castanho pigarreou, tentando encontrar uma forma simples de explicar que não o denunciasse.
-É um velho amigo meu aqui de Dreffel, conhecemo-nos ainda em miúdos e éramos muito próximos. Eu sei que o... aspecto dele pode surpreender um pouco ao início, mas ele é exactamente como qualquer um de nós e uma pessoa excepcional.
-Sim, pareceu-me ser boa pessoa, apesar de ligeiramente lunático. Foi pena ter ido embora tão depressa. - Respondeu o loiro, dando saltinhos com a sua rã em cima da mesa.
-Pareceu estranho ao início, mas até o achei bastante giro! - Exclamou a rapariga, com os seus grandes olhos azuis reluzindo ao brilho das lamparinas. - O cabelo claro fica-lhe mesmo bem!
-Tu achas 90% dos rapazes giros. - Retaliou o irmão que, entusiasmado, transformava já o resto do monte de papel em pequenas rãs.
-Vocês, homens, não iriam compreender a sensibilidade estética de uma rapariga. - Disse ela com desdém.
-Esperemos que não! - Exclamou Ken'ichi, coçando a cabeça com descontracção por entre o cabelo curto, farto e negro. - Se compreendêssemos, era para desconfiar.
Os outros dois assentiram, com um sorriso de troça. Depois, parecendo lembrar-se de algo, Kuroi tornou ao seu semblante sério e fitou o amigo.
-Makoto, podes vir comigo lá acima? Precisava de te dar uma palavrinha a sós.
-Hey, miúdo, o que é que vocês vão fazer lá acima os dois? Que é isso, lembrei-vos de alguma coisa? - Gozou o mais velho, fracassando redondamente ao tentar parecer sério.
-Ken, cala a boca.
Já no quarto, os dois rapazes fecharam no trinco a porta atrás de si.
-É algo sobre esta tarde? - Adiantou-se o mais novo, sentando-se na cama.
-De certa forma. Sim. - Respondeu o outro, sentando-se no chão. - Quero saber o que achas de avançar o teu treino para o nível seguinte. Sei que é algo que consegues superar, mas precisas de estar disposto a fazê-lo.
-Porque não? - Disse Makoto. - Estou contigo para aprender.
-Makoto, isto não tem comparação possível com o nosso treino até agora. Aquilo que temos feito, simples imitação, vai parecer uma brincadeira. O próximo nível consiste numa regularização do treino e uma orientação específica para a condição física, visto que já dominas a estratégia a um nível para além do que eu esperava. Achas-te preparado para isto?
-A minha resposta mantém-se. Por agora podes preocupar-te contigo mesmo e com o teu tratamento, eu aguento o que for preciso e não quero encontrar-te em baixo de forma. Estou ansioso para ficares bem e podermos começar!
Kuroi meditou sobre estas palavras por uns segundos, sacou de um pequeno bloco e um lápis mal afiado do bolso das calças, escreveu uma série de indicações, rasgou a folha e entregou-a a Makoto com um movimento rápido.
-Tens aqui as indicações de como chegar à rua onde estou a fazer o tratamento com o curandeiro da cidade. Amanhã quando acordares tenta despachar-te a ir lá ter e vamos para o bosque fora da cidade onde podemos treinar em paz.
Vendo, então, a surpresa do amigo, sorriu e acrescentou:
-Não te preocupes, para o tipo de treino que vai ser nos primeiros dias eu aguento na perfeição sem intervir fisicamente. Tudo o que tenho são dores.
O rapaz assentiu, entusiasmado.
-E COME. Tu és só altura e ossos, e assim não vamos a lado nenhum contigo. - Acrescentou o mais velho.
-Diz à Sochin que me entregue o Almoço, e terei a minha dose de carne fresca!
Nesse momento, uma bola lilás e penugenta saiu de debaixo da almofada com um pio agudo e sofrido.
-Sim, saco de penas com bico, estava a falar de ti!
Kuroi não pôde, apesar das dores que sentia, evitar uma gargalhada quando a cria de falcão bateu as asinhas desajeitadas com rapidez e se atirou a Makoto, acoplando na sua cabeça.
-Parece que encontrou o ninho perfeito!
Por entre grunhidos, dos quais se podiam apenas discernir as palavras "avezinha estúpida", tentava tirar o animal da cabeça, sem sucesso. Este retaliava, bicando-lhe os dedos até sangrarem.
-Almoço, anda cá! - Ordenou-lhe Kuroi, divertido.
O monte de plumas lilás saltitou displicentemente do seu loiro poleiro para junto dos pés do outro rapaz, que lhe parecia mais confiável.
-Essa coisinha é demoníaca! - Grunhiu o mais novo, esfregando a cabeça.
-O teu treino vai ser pior. - Advertiu-o Kuroi. - Se fosse a ti pensava em ir deitar-me mais cedo esta noite, vais querer descansar.
-Estás a assustar-me, Senpai! O que é que vamos fazer assim de tão puxado que possa ser equiparável a levar com esta coisa bicuda em cima?
-Nada, esquece, não te preocupes agora com isso... - Respondeu o outro, distraído. -Vai andando lá para baixo, estão quase a servir o jantar. Eu já me junto a vocês depois de consultar aqui uns mapas.
Makoto assentiu, nervoso, deixando-o a sós com o pequeno falcão lilás.
Kuroi não chegou a aparecer à mesa para jantar, Ken'ichi assegurou aos Kime que não lhe tinha ouvido falar em sair durante o serão.
-Então porque não vem ter connosco? Ele disse que ia consultar uns mapas, não era suposto demorar tanto.
Ken'ichi proferiu um "pois" em surdina e apoiou a cabeça numa mão. Sabia que, naquele momento, o meio-irmão estaria muito provavelmente deitado sobre a cama, imóvel, talvez mesmo sem sentidos depois de passar no mesmo dia pelo rigor do tratamento e por ter possuído o corpo de Daisuke durante tanto tempo. O seu poder devia estar quase totalmente esgotado.
-Deve ter adormecido... - Disse, por fim, com um suspiro. - Vou ao quarto ter com ele, já não tenho mais fome.
-Então... não vais comer isso? - Inquiriu o loiro, olhando cobiçosamente para o prato meio cheio do mecânico onde se espraiava um apelativo monte dourado de batatas fritas.
-Nii-chan! - Censurou-o a rapariga, envergonhada com a falta de cerimónia do seu irmão mais velho.
-Que foi? - Respondeu este, já enfiando na boca uma mão-cheia de fritas. - Foi o Senpai que me disse para comer bastante!
-São todas tuas. - Respondeu o outro com um sorriso. - Mas não toques no bife, a sério. Está demasiado passado.
Makoto assentiu. Gostava de carne bem passada, mas não ao ponto de de assemelhar ao monte de carvão parcialmente oculto por uma batata que se lhe apresentava no prato.
Finalmente a sós com Sochin, o rapaz parou por um momento de comer.
-O que é que o Senpai te disse sobre aquele Daisuke? - Perguntou, voltando-se para ela.
Esta, surpresa, recordou-se do que ouvira nessa tarde.
-Contou-me basicamente o mesmo que a ti, mas falou noutra coisa... Falou em "usá-lo"...
-Que te pareceu isso no contexto?
-Eu entendi que se tratasse de um favor. Porquê?
-Nada, devem ser coisas da minha cabeça. - Respondeu o rapaz. - Aquele tipo parecia mesmo que nos conhecia, não achaste...?
-É natural que o Kuroi-kun lhe tenha falado de nós antes de o enviar para isto.
-Sim, pensei o mesmo. É o mais certo.
Terminado o jantar, ambos subiram em silêncio para o quarto ao lado do dos irmãos Seishin.
-Amanhã de manhã vou treinar com o Kuroi. - Informou o rapaz, sentado na sua cama e atirando para o ar um ténis que custara a arrancar do pé inchado pelo incidente com a caixa de ferramentas que preenchia agora os seus pesadelos mais negros.
-Uau, vais acordar cedo! Que coisa rara! - Brincou Sochin, já metida no seu pijama com nuvens cor-de-rosa e pronta para se deitar.
-Pelo menos eu não passei por uma experiência com "Jet-lag" interdimensional, maninha! - Respondeu o loiro. Depois, acrescentou - Ele pediu-me que fosse ter à casa do curandeiro antes de irmos, não percebi muito bem porquê.
A rapariga engoliu em seco e falou com voz sumida:
-Hoje, pouco depois de teres saído, ele voltou do primeiro tratamento e veio ter connosco. Quase se arrastava, não sei como se aguentou a tarde toda...
Cortando a conversa por aí, ambos se deitaram com um "Boa Noite" e apagaram as lamparinas que tinham à cabeceira.
A mais nova adormeceu de imediato, mas Makoto ficou ainda absorto nos seus pensamentos por algum tempo. Suspirou ao lembrar-se do que ela acabara de lhe contar.
"Grande palerma, Senpai... Depois de me chamares irresponsável, fazes-me acreditar que tudo está bem e andas assim por aí... Mas hoje consegui surpreender-te e ao Daisuke, e amanhã juro que darei o meu melhor para o fazer novamente!"

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