31 agosto 2011

Capítulo XVIII: Lágrimas de uma Rosa

-Cortar à esquerda na casa de pedra com telhado de colmo...
Makoto desviou os olhos do pedaço de papel para o espaço em seu redor. A frase que acabara de ler parecia simples e fácil de seguir, mas rapidamente se apercebeu de que todas as casas eram de pedra e tinham telhados cobertos de colmo.
"Ele é ainda pior a dar direcções do que a segui-las...", pensou para consigo enquanto erguia os olhos para o céu azul acima de si com um suspiro de resignação.
Seguindo caminho pela movimentada praça numa tentativa de espreitar pelas ruas secundárias em busca de algum ponto de referência, decidiu pedir direcções a algum dos transeuntes. Interpelou primeiro uma velha comerciante que vendia vegetais numa tenda improvisada, tentou depois um homem de feições duras e marcadas que descansava junto a uma pilha de caixotes de madeira, passou para um grupo de crianças que brincavam ali perto, mas não obteve como resposta mais do que meros revirares de olhos, exclamações de indignação, virares de cabeça e ocasionais gestos com a mão junto à testa que punham em questão a sua sanidade mental.
Quis acreditar que se tratasse de alguma diferença cultural que ainda não era capaz de perceber, mas a verdade é que ninguém lhe estava a prestar o mínimo auxílio e começava a sentir-se cansado. Decidiu sentar-se no passeio para retemperar as forças, encostado à parede mal caiada de uma das poucas casas novas, de tijolo, que se viam no centro de Hodes.
-Estás perdido, rapaz? - Perguntou do seu lado esquerdo uma voz rouca e tremida que não conhecia.
Makoto sentiu um arrepio na espinha e não pôde evitar um pequeno salto no lugar quando se voltou e viu um idoso, de pele extremamente enrugada com um tom que pendia para o azul e marcas irregulares de um estranho rosa-pêssego, envergando vestes pobres de camponês em tons berrantes e encimado por um chapéu de palha meio desfeito na aba, que sorria para ele por detrás de uma longa e farta barba grisalha.
-Esse é o meu cantinho para apanhar sol, mas sei sempre apreciar alguma companhia. - Prosseguiu o velho, ignorando a expressão ainda surpresa do loiro e sentando-se a escassos centímetros dele.
-P-peço desculpa, não o tinha visto chegar! - Explicou-se o jovem, acalmando-se finalmente. Depois, imaginando que não poderia fazer mal perguntar a mais uma pessoa, perguntou no seu tom mais delicado se fazia alguma ideia sobre em qual das ruas secundárias vivia o médico da cidade. Para dar ênfase a todo o seu desespero, depositou de forma dramática no regaço do velho o papel escrito na caligrafia caótica de Kuroi onde estavam as indicações.
-Ler foi arte que nunca aprendi, - Riu-se o velho ao ver o bilhete - mas se estás à procura do jovem Luke só tens de cortar para aquela rua mais escondida.
Apontou na direcção de uma ruela de aspecto meio abandonado a poucos metros do ponto onde se encontravam.
-Segue por ali e deves encontrar facilmente a casa; é a única que ainda tem porta.
Makoto pestanejou por uns segundos, olhando estupefacto. Não só não notara aquele local por entre as casas que ladeavam a praça, achava também deprimente que alguém vivesse precisamente no extremo mais afastado do centro da cidade numa rua em que todas as casas estavam abandonadas, e começou a compreender que talvez houvesse algo por detrás da renitência dos locais em falar sobre o misterioso curandeiro.
-Muito obrigado, ojii-san! - Agradeceu, levantando-se com os olhos pregados na rua para não a voltar a perder de vista no meio das casas. - Peço desculpa por me ir embora tão abruptamente, mas estou com alguma pressa!
Dito isto largou a correr, voltando-se para trás apenas para acenar em jeito de novo agradecimento.
-Ah!, a juventude destes dias... Sempre a correr... - Suspirou o velho com um sorriso.
À medida que penetrava na rua, Makoto sentia um ligeiro desconforto. Era um lugar estranhamente sossegado, sem mais movimento visível que o dos pequenos pássaros que debicavam o passeio, e que Makoto concluiu serem de uma espécie que não existia na Terra.
Chegado, finalmente, à última casa da rua, que pelos vistos terminava em cruzamento com uma avenida secundária que atravessava a cidade, hesitou por uns segundos antes de bater à porta. Esta, já meio solta nos eixos e destrancada, abriu-se à primeira batida com um estalido de metal seguido de um ranger ligeiro.
-Com licença...! - Exclamou, sem qualquer resposta. Empurrou então o resto da porta e deu dois passos em frente para o interior.
-Eu não dei licença nenhuma. Quem diabos és tu? - Interrompeu-o uma voz ríspida vinda das suas costas, que lhe deu a sensação de que ninguém conseguia interpelá-lo pela frente nesse dia.
Voltou-se a tempo de ver, sentado a uma secretária junto à tímida janela por onde escorria a luz para o interior, um rapaz alguns anos mais velho com um ar pouco amistoso. O seu cabelo era azul quase negro, um pouco comprido e penteado para o lado, e os olhos, de um violeta frio, pareciam trespassá-lo com hostilidade contida. Parecia ter interrompido a sua tarefa de escrever com invejável alinhamento (para sua admiração, em caracteres romanos) num rolo de pergaminho novo com uma pena mergulhada em tinta que agora respingava para a margem.
-Eu perguntei se podia entrar, como ninguém me resp...
-"Quem cala, consente"? Não vais ser tu a ensinar-me essa frase, mas não penses que podes aplicá-la fora do teu mundo quando te apetece. - Cortou o jovem em tom grave, levantando-se e apontando a Makoto um dedo acusador. - Quem és tu, afinal?
O loiro, ainda surpreendido pelo aparente conhecimento da cultura e escrita humanas que o outro, indubitavelmente um dreffeliano, parecia possuir, preparava-se para se explicar quando foi novamente interrompido. Desta feita, era uma voz bem sua conhecida que o fez respirar de alívio.
-Calma, d'Evans. Ele está comigo. - Apaziguou Kuroi, vindo de um dos quartos enquanto acabava de vestir o casaco de sarja preta sobre a t-shirt vermelha, com um sorriso de embaraço. Dirigiu-se então ao mais novo:
-E tu, chegaste cá bastante depressa! Com as instruções que te tinha dado, estava à espera de ter pelo menos mais meia hora para avisar o d'Evans que vinhas aí.
O rapaz conteve no seu interior um misto de indignação e resignação a que já se habituara desde que conhecia Kuroi. "Devia ter imaginado que era mais um dos testes dele", pensou. Olhou então para o anfitrião, que ainda não se voltara a sentar mas parecia ter abandonado alguma da hostilidade do seu olhar inicial, aparentando agora estar meio aturdido pela presença de tantas pessoas na entrada da sua casa, que calculou não ser algo muito habitual.
-Makoto, este é o médico de quem te falei. - Disse Kuroi, acenando para o dreffeliano numa tentativa de quebrar o silêncio.
-Kime Makoto, prazer em conhecer-te. - Disse o mais novo por mera formalidade, estendendo a mão esquerda na direcção do outro e trocando depois para a direita ao aperceber-se da sua distracção.
-Luke d'Evans. E não sou médico, sou feiticeiro. - Respondeu este sem olhar e ignorando qualquer uma das mãos que o rapaz lhe estendia, debruçado sobre a secretária para acabar as suas notas e rasgando do pergaminho um canto com algo escrito em letra apertada que se apressou a entregar a Kuroi.
-Estão aqui assentes os ingredientes para a infusão de tratamento. Quando os tiveres passa por aqui para podermos concluir a remoção da energia vestigial. Deves conseguir comprá-los facilmente a uns quarteirões daqui, mas tem cuidado com a velha Zirka. Aquela coruja decadente gosta de enganar os forasteiros quanto aos preços, e é especialmente desonesta com humanos.
-Mas eu não sou humano. - Argumentou Kuroi com um ligeiro tom de ofensa tomada.
-Mas ela vai achar que és. - Respondeu Luke, olhando-o com desinteresse. - Em qualquer caso, é tudo.
Com um simples aceno, os dois rapazes saíram da pequena casa de pedra e cortaram para a avenida, no sentido da saída da cidade.
-Não é muito amável. - Sussurrou Makoto para Kuroi, enterrando as mãos nos bolsos das jardineiras.
-Tem um feitio muito peculiar, tenho de admitir. - Respondeu este. - Mas não é má pessoa. É normal que acabe por se descuidar um pouco com os modos, vivendo aqui isolado não deve conviver com muita gente...
-E, pela forma como as pessoas reagiram quando tentei perguntar por ele, diria que quando tenta fazê-lo a coisa não corre bem.
Kuroi encolheu os ombros e apressou o passo em direcção à saída da cidade, diante da qual se estendia um caminho de terra batida que entrava por um bosque denso e irregular por onde a luz parecia não ter passagem. O mais novo deu alguns passos em corrida para o apanhar.
Seguindo pelo caminho, pouco antes de o mato adensar, chegaram junto a uma árvore de porte impressionante. Tapando o sol dos olhos com uma mão, o mais velho olhou-a desde a base até ao topo e sorriu, satisfeito.
-É perfeita. - Disse, voltando-se para o amigo. - Espera por mim aqui um segundo, OK?
Despindo o casaco de cima da t-shirt, lançou-se ao tronco e começou a subir com desembaraço, deixando atrás de si um Makoto indignado.
Poucos minutos depois parava junto a um ramo espesso para respirar fundo.
-Mas o que raios estás a fazer? - Perguntou o loiro, olhando para cima.
Kuroi, ignorando-o, esticou-se pelo ramo até chegar a um ninho cheio de ovos enormes, salpicados de pequenas manchas azuladas. Tirou um ovo com cuidado, segurou-o debaixo do braço e lançou-se de costas do cimo do ramo.
Makoto susteve a respiração por um segundo ao vê-lo cair mas logo suspirou, ainda trémulo, quando este aterrou perfeitamente sobre as duas pernas dobradas e a mão livre, segurando ainda o ovo na outra.
-N-não voltes a fazer isso! - Gritou-lhe, correndo na sua direcção. - Pode ser perfeitamente seguro para ti, mas assusta!
Kuroi riu-se da expressão atarantada do amigo.
-Hai, hai, desculpa! Era a maneira mais rápida de descer. De qualquer forma, viste por onde subi e onde estava o ninho?
Makoto passou novamente os olhos pela árvore e acenou afirmativamente com a cabeça.
-Mas não acho bem andar a roubar ovos, sejam do que forem. - Comentou com voz baixa.
-Oh, não te preocupes. - Respondeu o rapaz de cabelo castanho, passando-lhe o grande ovo para os braços com um sorriso. - A tua tarefa vai ser pô-lo de volta no sítio.
-O QUÊ?!
Makoto fitou, ainda uma outra vez, a grande árvore com desconsolo. "Nunca vou conseguir trepar àquilo com um ovo na mão!", pensou.
-Não te preocupes, - Disse-lhe o amigo, como que adivinhando os seus pensamentos - Não tens de levá-lo na mão. A única utilidade dele é servir de peso extra.
-Como é que ISSO é suposto reconfortar-me? - Respondeu em tom irónico. - Já subi a algumas árvores quando era pequeno, mas isto é...
Suspirou, sabia que argumentar não serviria de nada e que estava ali por sua vontade.
-Posso voltar à cidade para ir buscar algo?
-À vontade! - Respondeu Kuroi, encolhendo os ombros inocentemente e sentando-se no chão de terra com as pernas cruzadas. - Eu espero.
Minutos depois o loiro regressava, com um lençol enrolado sobre um ombro.
-Depois vou ter de o ir devolver, mas por agora serve. - Disse, dobrando-o  em forma de saco. Amarrou-o à tiracole e colocou o ovo cuidadosamente nas suas costas. - Já agora, o que é suposto este treino fazer?
-A primeira coisa que precisas de desenvolver é a força superior. Não vou insistir muito nela porque acho que tens outros pontos fortes a trabalhar, mas não servem de nada se não conseguires imobilizar ou atingir um adversário. Escalar uma árvore destas é um bom exercício para isso, e também desenvolve uma boa quantidade de destreza, portanto...
Makoto assentiu e voltou-se para a grande árvore.
-De qualquer maneira, alguém teria de voltar a pôr o ovo lá em cima.
Procurou um primeiro ramo para se segurar e começou a subir. Apesar de cansativo, não era assim tão difícil como parecera à primeira vista.
Rapidamente chegou a meio da árvore e segurou-se com mais firmeza para recuperar o fôlego. Sentiu então, de repente, que algo nas suas costas se mexia e ouviu o som de algo a estalar.
-Está a eclodir! - Exclamou Kuroi, de certa forma divertido com a situação.
Makoto voltou a cabeça para trás a tempo de ver sair, do lençol que trazia amarrado às costas, uma cria de pássaro de olhos gigantescos e bico pequeno, extremamente feia e ainda recoberta dos líquidos do ovo, que encostou a cabeça a si carinhosamente.
-Oh, não... - Disse o rapaz com voz trémula, olhando entre o recém-nascido e o chão e incapaz de se mover mais um milímetro. - Não sei se tenho mais medo da altura em que estamos, ou de esta coisinha pensar que sou a mãe...

***

As horas passaram. Kuroi regressava à cidade sob um céu cinzento que se pusera desde o início da tarde, procurando o local onde Luke dissera que podiam comprar os ingredientes para a infusão. O mais novo caminhava lentamente atrás de si com o corpo cheio de bicadas de ave pequena, arranhões de ave adulta, algumas nódoas negras nos braços e os ouvidos a estalar do sermão que ouvira de uma dona de casa ao devolver o lençol cheio de líquidos de ovo.
Cruzaram-se, inesperadamente, com Sochin e Ken'ichi, que se juntaram a eles a correr.
-Já íamos à vossa procura! Então, o treino foi duro? - Troçou o mecânico, dando uma palmada forte nas costas de Makoto.
-Está quieto, tenho o corpo todo dorido! - Reclamou este, suspirando.
-O que é que vocês andaram a fazer? - Perguntou a rapariga, olhando para os arranhões do irmão.
-Eu mandei-o apenas escalar uma árvore. Ele decidiu também lutar com bestas selvagens. - Respondeu Kuroi, encolhendo os ombros, enquanto o grupo se aproximava da banca de Zirka, a comerciante de plantas.
Sochin abraçou-se com força ao irmão, fazendo-lhe ainda mais dores.
-Onii-chan! - Disse, arrastando a voz de propósito. - Tem mais cuidado contigo!
-Sim, Sochin, e tu tem cuidado comigo também... - Gemeu o irmão mais velho, afectando uma exagerada expressão de sofrimento.
Kuroi deu um passo em frente, debruçando-se sobre a banca e quase não dando tempo para o resto do grupo se aperceber de que tinha parado. Do sítio em que estavam não conseguiam ver muito bem a figura da velha comerciante nem ouvir o que diziam, mas poucos segundos depois o rapaz juntava-se de novo a eles com uma expressão de satisfação estranhamente inquietante.
-Tão rápido... quanto é que te custou esse saco de ingredientes? - Perguntou Makoto, afastando lentamente o braço da irmã mais nova dos seus ombros doridos.
-Foi por conta da casa! - Respondeu o rapaz de cabelo castanho, voltando-se para o amigo com o mesmo sorriso.
O mais novo sentiu um pequeno arrepio espinha acima e decidiu não tentar imaginar o que se teria passado durante aquele curto espaço de tempo.
No céu, as nuvens adensavam-se. Os quatro amigos seguiram caminho, distraídos.
"Não podia ser uma melhor oportunidade... Todos reunidos, rodeados apenas de civis e totalmente indefesos..."
Um vulto deslizou silenciosamente ao longo da sombra de uma casa. Na escuridão do final de tarde cinzento, apenas os grandes olhos felinos, da cor do âmbar, tremeluziam com o nervosismo.
-Gomen... ne... - Soou lentamente, de forma quase inaudível, a sua voz quente e melancólica.
Prosseguiu, invisível por entre a multidão, colocando sobre a cabeça um capuz de tecido etéreo, suave que lhe escondia o rosto e as formas.
O grupo continuava a avançar lentamente. Estavam agora em silêncio, cansados.
O badalar de um sino afastado do local onde se encontravam, intenso, soou seis vezes como se de uma povoação cristã na Terra se tratasse. Abafou uma exclamação admirada vinda detrás, sensivelmente do meio de Sochin e Ken'ichi.
Kuroi voltou-se imediatamente, pressentindo que algo não estava bem. Makoto estava demasiado exausto para proferir qualquer som, a menos que...
-Há quanto tempo, Mera.
A rapariga de cabelos negros removeu o capuz com a mão livre, prendendo com o outro braço o pescoço do mais novo, que tentava debater-se com o resto das suas forças. Fitou o outro Sucessor com deleite e nos seus olhos côr do âmbar pareceu iluminar-se uma centelha.
-Surpreende-te veres-me aqui? Estou decepcionada. Nunca pensei que baixasses a guarda com tanta facilidade, Kuro-chan...
Kuroi sentiu um duplo arrepio percorrê-lo de baixo para cima. Estava realmente vulnerável, com o corpo ainda impossibilitado de se submeter à carga que era o seu poder. Com Ken'ichi desarmado e Makoto no limite das suas forças, não havia nada que impedisse Mera de cumprir finalmente o seu objectivo. Mas, e sentiu-se ridículo por isso nesse momento, enervava-o também que alguém o tratasse por "Kuro-chan".
-Larga-o. O teu problema é comigo, certo? - Disse pausadamente, com tanta calma quanta conseguiu encontrar dentro de si. Mera aliviou a pressão no pescoço de Makoto, permitindo-lhe soltar-se.
-Oh, estás a propor um combate de um-para-um? Muito corajoso da tua parte... Especialmente vendo como estás quase tão desprotegido como qualquer um dos humanos à tua volta...
O tom de voz sarcástico da rapariga fê-lo estremecer por momentos. Sabia que as suas probabilidades de a vencer naquelas condições eram quase nulas, mas não havia opção. Tinha de tentar.
-Kuroi, espera! Não podes lutar nesse estado! - Exclamou Ken'ichi, colocando-se em frente aos dois irmãos como que a protegê-los. - Ela é uma Sucessora!
O rapaz de cabelo castanho cerrou os punhos junto às ancas e baixou a cabeça.
-Nem vocês. Saiam daqui enquanto têm tempo.
Os outros três não se moveram um centímetro. Makoto sentia-se inútil, impotente perante aquela situação. Não passava de um miúdo, um mero humano que seguira até ali alguém que tanto admirava. Não suportava a ideia de ver Kuroi sucumbir às mãos da assassina sem poder agir, que parecia aproximar-se dele demasiado depressa.
-A vossa preocupação comove-me. - Disse a rapariga, assumindo uma postura erecta e rígida e fazendo surgir no chão à sua volta uma circunferência de chamas baixas. Deste saiu outra linha na direcção de Kuroi a uma velocidade quase impossível de seguir com o olhar que explodiu ao chegar junto dele, mal lhe dando tempo para se desviar.
-Não tentes tornar isto ainda mais lento. Batalhas longas contra um Sucessor sem poderes são simplesmente tediosas.
Kuroi rangeu os dentes e fitou Mera, concentrando-se por um momento. Quando uma segunda explosão alcançou o chão debaixo de si, já o seu corpo tinha desaparecido no ar e reaparecido atrás da jovem.
-Quem te disse que eu estava sem poderes?!
Lançou um soco na sua direcção, concentrando nele toda a sua força. Mera só teve tempo de se voltar, segurar no punho do rapaz e repelir o próprio corpo com os braços antes de este a afastar também com o impulso, forçando-a a inclinar-se para a frente para não perder o equilíbrio.
-Se ele continuar assim pode não vir a recuperar... - Gemeu Sochin, trincando o lábio inferior e abraçando-se com mais força ao braço de Makoto. O seu irmão estava bem consciente de que Kuroi estava a ir para além do limite que o seu corpo ainda mal sarado lhe permitia. Ken'ichi, porém, era o mais nervoso dos três. Cerrava um punho com toda a força, impedido de sacar do revólver que deixara na estalagem, e desejava entrar na luta e ajudar o meio-irmão.
-Não podemos fazer nada. - Disse, enervado, para os mais novos e para si próprio. - Se nos metêssemos só iríamos piorar a situação e atrapalhar...
A rua começara a ficar deserta aos primeiros sinais da luta. Assustadas, as pessoas correram para as suas casas e só uma janela ou outra permanecia entreaberta, revelando olhares de temor ou ansiedade.
Kuroi voltou a preparar-se para atacar, apostando tudo em terminar rapidamente a luta antes que começasse a sentir as suas feridas a reabrir por dentro. Quando isso acontecesse, estaria perdido. Correu, decicido, contra Mera, saltando e lançando contra ela um pontapé à cabeça. A rapariga bloqueou o ataque com os antebraços como pôde, fazendo neles surgir labaredas antes de tombar com a força do golpe absorvido. Kuroi caíra cerca de um metro atrás de si, sentindo uma queimadura tomar-lhe conta da perna direita, e quase incapaz de erguer o tronco com os braços para se levantar. Estava a começar a perder as forças.
Mera levantou-se rapidamente, respirando fundo e olhando para o rapaz caído no chão com uma mistura de expectativa e nervosismo.
Esticou à sua frente as mãos, meio trémula, e começou a proferir uma espécie de encantamento à medida que uma esfera alaranjada muito brilhante se formava mas palmas. Esta crescia, aumentava de brilho e de intensidade a cada instante. Sochin abraçou-se ainda mais ao irmão e enterrou a cara no seu peito, incapaz de se mover. O encantamento aumentou de tom:
-Erguei-vos, forças do Fogo, e obedecei-me, pois sou em quem vos detém!
Kuroi gemeu de forma quase inaudível, tentando ainda levantar-se a tempo de quebrar a magia mas ficando cada vez mais fraco à medida que uma dor insuportável tomava novamente conta do seu corpo.
-Ordeno-vos que sigais o meu comando! AGORA...!!!
Um relâmpago seguido de um trovão quase em simultâneo cortaram os céus nesse preciso momento em que a esfera incandescente nas mãos de Mera iluminou o chão e as casas escurecidas com um ruído ensurdecedor que fez estremecer tudo em volta. O céu, já mais negro que cinzento, parecia de repente desfazer-se sobre eles de repente em grossos pingos de chuva que batiam no chão com pequenos estalos.
Makoto era o único que continuara a olhar e a sua respiração parara, estarrecido. Entre Mera e Kuroi erguera-se, num intervalo não maior que um segundo, uma barreira de gelo grande o suficiente para conter o ataque, que agora se precipitava em água e vapor graças ao choque com a magia de fogo da rapariga. O tempo pareceu parar por instantes para todos eles e Kuroi, que não conseguia já quase mover-se, abafou uma exclamação ao olhar atrás de si.
Uma figura envolta numa longa capa negra, fechada por um brasão de um metal acobreado que protegia um dos ombros e com o capuz colocado, botas e luvas sem dedos em tons de castanho e negro, segurando numa das mãos um bastão de madeira gravado com a figura de uma serpente enrolada e encimado por uma lâmina tripla de metal adornada com uma pedra brilhante semelhante a um rubi, e estendendo a outra mão após o gesto de erguer a parede de gelo, suspirou longamente e num tom familiar.
-Esta rapariga é outra sucessora, presumo...?
-D'Evans?! - Perguntou Kuroi a custo, reconhecendo-lhe a voz e voltando a tentar levantar-se. - O que é que estás a fazer aqui?
-O feiticeiro? Mas o que é que... - Balbuciou finalmente Makoto, sem fôlego, à medida que Sochin e Ken'ichi se apercebiam do sucedido.
-Estava a passar quando comecei a ver as pessoas virem na direcção contrária a esta e decidi dar uma vista de olhos no que se estava a passar. Não foi assim tão mal pensado, hã? - Respondeu Luke, erguendo o olhar sério para a rapariga de cabelo negro que se refazia ainda da surpresa, limpando do rosto as gotas de chuva.
-Um dreffeliano? Como é que conseguiu parar o meu ataque tão facilmente?
O feiticeiro recuou um dos pés para ganhar equilíbrio e segurou o bastão firmemente com ambas as mãos.
-Vocês os três aí ao canto, ajudem o Seishin a levantar-se. Eu consigo tratar disto. - Ordenou sem se voltar para os três humanos.
Ken'ichi reagiu de imediato, correndo para o meio-irmão e ajudando-o a por-se de pé. O mais novo deu a mão a Sochin para a erguer e foi para junto dos outros rapazes.
-D'Evans, o que é que estás a pensar fazer? Não vais conseguir ganhar contra uma Sucessora, a diferença de poder é simplesmente... - Começou Kuroi.
-Sem problemas. Ela esgotou a maior parte da sua energia com aquele ataque preparado e eu tenho vantagem contra Fogo com esta chuva. Posso não estar ao nível de um de vocês, mas não sobrevivi até agora só com feitiços de recuperação.
Luke fez um gesto rápido com o bastão e logo a água das poças que se formavam no chão em seu redor se concentrou no ar junto à lâmina. Com outro movimento, a água disparou em pequenas agulhas que se tornavam em gelo à medida que voavam na direcção de Mera.
A rapariga de cabelos negros levantou uma barreira de fogo para derreter o gelo do ataque, mas esta pouco durou graças à chuva no chão. Desviou-se de algumas das últimas agulhas baixando o corpo e apoiando uma das mãos no chão molhado, até que sentiu essa mão ficar rígida e fria.
Olhou para baixo. Um maciço de cristais de gelo estendia-se desde o chão em frente a Luke, aumentando de tamanho até lhe apanhar o braço até ao cotovelo. Com os dedos e o pulso totalmente imobilizados, viu o feiticeiro arremessar contra si uma coluna de água.
Só teve tempo de derreter o gelo junto ao braço com a mão livre e resvalar pelo chão para se desviar do ataque, e concluiu que não poderia ficar na defensiva contra aquele adversário. Respirando fundo, transportou-se uns metros adiante e investiu contra ele com um punho envolto em chamas.
O rapaz, apanhado de surpresa, colocou o cabo do bastão entre os seus corpos e deflectiu-a novamente para o chão.
-Selo!!
No instante em que as mãos da rapariga tocaram o chão, a água da chuva que lhe caía em cima solidificou até a prender por completo. O gelo alastrou até lhe cobrir a maior parte do peito e os seus pés ficaram também presos por outro maciço de gelo. Estava perfeitamente imobilizada e impedida de usar os seus poderes.
-C-como é que é possível? Um dreffeliano comum... - Gemeu.
Luke aproximou-se, empunhando o bastão como uma lança, com a lâmina ameaçadoramente apontada a ela.
-Podes causar problemas onde quiseres, mas quem ameaçar a segurança nesta cidade tem de se haver comigo. Espero que não penses que vocês, os Sucessores, são os únicos capazes de se enfrentar.
A rapariga suspirou, consternada.
-Um feiticeiro, hã... Julguei que estivessem extintos.
-Seishin! - Gritou o rapaz, voltando-se para o grupo. - O que fazemos com ela?
Kuroi levantou o olhar para os dois, atarantado pelo desfecho da luta. Fez sinal a Ken'ichi e Makoto para que o deixassem andar sozinho, e caminhou a custo na direcção de Mera.
-Porque é que estás a fazer isto? - Perguntou com voz sumida.
Mera fitou-o, surpreendida.
-É a missão que tenho de cumprir.
-Não sejas ridícula... Conheço-te melhor do que isso!
Makoto seguia as expressões de ambos atentamente. Ao contrário do que esperava, Kuroi não lhe parecia enraivecido, mas antes fitava Mera com um olhar inquisitivo, de pena. Esta aparentava esconder algo, mas preservava o seu orgulho naquela situação de total derrota.
-O Edgar... ele traiu-me e ficou na Terra. Se regressar sem provas de ter cumprido esta missão, o próximo alvo serei eu.
Kuroi cerrou os punhos ao longo do corpo, enervado.
-Mas porquê essa missão? Porquê tu? Não estamos na Terra para te ouvirem, diz-me ao menos isso!
Ao terminar a frase, perdeu por instantes a força nos joelhos e tossiu um fiapo de sangue. No entanto, o seu olhar estava cravado nela.
-Seishin, não piores a tua situação. Vais perder demasiado sangue se te continuares a esforçar assim. - Advertiu-o Luke, indo para junto dele com ar severo.
O rapaz de cabelo castanho não respondeu. Continuava com os olhos verdes postos em Mera, que baixara os seus para o chão e soluçava baixinho. Não era capaz de distinguir por causa da chuva cada vez mais forte, mas pareceu-lhe que a jovem chorava.
-Mera...
-Se não fosse eu, outro assassino viria... Eu não podia permitir... Pensei, até, que pudesse arranjar alguma forma de evitar tudo isto, mas ainda não tinha a confiança dos meus companheiros, que enviaram o Edgar para observar a missão... - Começou a rapariga, não conseguindo dizer mais nada por entre soluços.
-D'Evans, podes libertá-la. - Disse o rapaz em voz baixa, para grande surpresa do feiticeiro.
-Assim, sem mais nem menos? Ela ainda consegue lutar! - Contrapôs-se este.
-Por favor. Eu sei que ela não vai tentar mais nada.
Luke suspirou, retornando o gelo à sua forma líquida mas mantendo a guarda.
Mera, agora livre, limpou com uma mão o rosto molhado mas não se levantou.
-Arigato... Kuro-chan...
-Já te disse que odeio que me chames isso? - Disse o rapaz, sorrindo levemente e baixando-se para junto dela. - Se o que queres é uma prova, dar-ta-ei. Isto tem de ficar por aqui!
A jovem sacudiu a cabeça, em sinal de negação.
-Não posso... não quero regressar lá. A dívida que tenho com eles não se compara ao que estive quase a deixar para trás...
Kuroi suspirou de alívio, fechou os olhos e tombou no chão, sem sentidos. Os amigos aproximaram-se dele a correr, alarmados.
-Vamos levá-lo para minha casa.  - Disse Luke. - Ele precisa urgentemente de repouso. E quanto a ti...
Mera pôs-se de pé, enxugando em vão as lágrimas que se misturavam com a chuva com a ponta molhada da capa. Procurou em si coragem para continuar a falar e fitou o feiticeiro, que aguardava pela sua resposta.
-Não terão de se voltar a preocupar comigo.

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